segunda-feira, 20 de setembro de 2021

dançarina das palavras

 

Hum. Jogo o corpo por cima do corpo. Ensaiei uma dança erótica com a escrita. Ensaiei de escrever tantas vezes por aqui. Perco o caminho em pensamentos de desistência, falta forças nas mãos pra traduzirem o que o corpo quer. O corpo quer se libertar. Por isso sigo nessas reticências que são caminhos. Profundos ecos dentro do peito. Qualquer coisa pra fazer parar de sangrar. Uma ruptura e pronto, o corpo de deságua inteiro sem rumo. Mas esse não ter rumo é bom, é bom porque permite entrecaminhos. Possibilidades.

Veja, retorno sorrateira.

Nessa dança sem precisão o corpo vai retornando aos seus sentidos mínimos como se acordasse. E a saudade antes latente vai se fazendo quase ou menos presente. Continuo frase a frase porque isso é salvação.

Você já viu um corpo dançar num domingo chuvoso? Então veja.

Pra onde vai minha língua bailando dentro do corpo enquanto procura as palavras, as malditas benditas palavras, já não sei. A língua escorrega numa ou outra vírgula, lambe e lambe o verso e assim dançamos, corpo a corpo, pulsação de palavra que vai nascendo na ponta da boca e eu vou perdendo a timidez.

Não irei mais me esconder. Tiro as roupas das palavras. Nuas elas são mais bonitas diante da luz. Gosto assim.
Mas nenhuma palavra consegue traduzir esse retorno. Talvez redenção? Loucura? Vou procurando e procurando, levanto as cobertas, também não se encontram ali. Nunca fui precisa. Necessito de uma palavra única que sirva como uma luva nessa situação.

Fui dançando tão divertidamente e sozinha que parei aqui, nesse entre espaço. Olá você que lê essas linhas, seja bem vindo ou bem vinda, e veja o corpo dançando em piruetas, liberto de si mesmo, o corpo alcança dimensões surpreendentes.

Que delicia escorregar as mãos pelas palavras, com cuidado, pois se não as danadas fogem.

Retorno porque muito cansei de estar longe.

Retorno porque preciso de espaço e desse espaço pra me estender, pra dançar, alcançar plenitude e gozo no espaço entre as palavras. Não peço permissão, não se engane. Não sou assim.

 

Só preciso dançar. O que vem depois, não sei.


Annabel Laurino



domingo, 19 de janeiro de 2020

Coisa amarela



É a sensação de dirigir um carro. De dirigir pra lugar algum. Não há lugar pra ir. Está tudo fechado, está tudo aceso. A noite é escura e na minha pele arde o frio de uma neblina de possibilidades. Não querer ir pra casa. Não querer nunca parar o carro. Noite escura, eu te comi nesse breu imenso.
Escrevo pra te encontrar? E encontro. Verso ou outro eu te acho coberto pelas minhas palavras secretas. Te escondes muito bem, devo admitir. E devo acrescentar: Não há mais medo de te mostrar quem eu sou. Foram muitos os lugares percorridos pra estar aqui novamente. Te descobrindo nesse meu mundo-poiesis. Aguardaste-me? Não, tenho certeza de que não. Serei mesmo assim. Até que se descubram os dias.
Eram memórias que me faltavam. Não que eu não as tivesse aos montes. Mas precisava visita-las. Numa lenta jornada de minuciosidades. Para que a beleza se fizesse surgir. Nada irá voltar, mon amour. Mas há beleza nisso. Uma flor não renascerá, o que foi já foi e não voltará a ser.
Sorri numa sexta feira a noite quando me deparei com minha suculenta morta em sua xícara amarela. Será triste, sinto que murmurarei muitas vezes ainda a ausência daquele pequeno verde na minha sala. Mas assim foi seu tempo entres os constituintes pertences desse apartamento. Outras belezas virão.
Nada é insubstituível? Pondero sobre substituições uma vez que eu acredito que cada pequena poeira no imenso cosmos é única, especial. Não é possível substituir uma coisa existente em seu espaço-tempo-dimensão. Única, ela ocupa um lugar que não pode ser jamais ocupado novamente. Ainda que, possivelmente, eu coloque outra suculenta naquela xícara amarela.
Sei que faço versos com promessas de eternidade. Adianto: não há promessas. Eternidade há sim, ouso dizer. Um eterno de cor amarela, um momento único, assim como uma segunda feira jamais se repetirá nos nossos calendários que descartamos com raiva nos finais de ano. Te pergunto se tu já pensou nisso? Me dirás que já sabes disso tudo. Mas é que pra mim essa coisa se fez tão nova tão de repente que avanço sobre a vida querendo devorá-la. Sorver das entranhas da vida até encontrar o plasma.
Não te encontrarei no plasma. Nada está no plasma. Lá existem as coisas que não ousamos pronunciar. Sei disso porque quase estive lá. Iria forçar os seguimentos da vida com o fim da força vital. Estive lá, naquele lugar-fim. E como fênix, eu renasci. Fora das chamas, eu continuo. Enquanto a minha hora plasma não chega, percorrerei os rastros, os indícios de que me fiz presente nesse mundo em certos tempos, em certos espaços.
Vou lá encontrar-me. Deveria virar moda. Deveria virar hobby.
Não há nada. Tudo isso é nada. A menos, claro as coisas viventes, germinativas, coisas de coisas. Só há mesmo é nós. É eu. Clariciana, num encontro do eu com o eu. Assim, coisinha no espaço. Foi o que descobri quando fui me encontrar. Que sou tudo sendo nada. E foi uma verdade fascinante.
Morri, morremos. Voltei agora numa dessas aventuranças de repente. Escreverei porque tenho tantas coisas pra dizer! Num regozijo de vida, num alarido incessante, explodo em mil histórias. E não aches que eu me engano: permanecerei enquanto a minha alma tiver fôlego.


                                                                                                                       Annabel Laurino



quarta-feira, 13 de junho de 2018

Viagem de vários regressos


            Talvez tenha sido uma viagem sem grandes propósitos ter vindo até aqui. Paredes cor de rosa não dizem nada, nem mesmo numa tarde de ventania. Eu sento e penso em escrever, mas desisto. A ideia vem com um frase, depois eu reorganizo os pares, mudo as sentenças de lugar, faço um novo trajeto entre as vogais, entre as consoantes solitárias no meio do abismo das palavras.
             Amanhã eu largo meu emprego e volto a escrever.
            Mentira. Acuso a mim mesma. Mentira. Os livros dispostos nas estantes, intocáveis. Uma vida deixada pra trás. Volto a pensar no amanhã, no emprego, na viagem sem propósito.
            É que eles não entendem, me consolo com um copo de coca-cola, quem diria, eles não entendem que não tinha a ver com o espaço, a umidade, as paredes, o chão, a privacidade vendida de forma barata. Tinha a ver com uma coisa antiga, que me fez lembrar numa coisa mais antiga ainda, como numa prática de ancestrais, num velho e velho conto que alguém pode ter me contado num outro tempo lá atrás. Como é que se diz. A palavra volta pra ponta da língua e retorna ao palato duro, num vai e vem constante até que vem inteirinha. Contemplação.
            Tinha a ver com as janelas do lado de fora. No vão entre um prédio e outro, pensar no porque construíram um vão entre uma fileira de janelas e quem sabe, supor, que podem ser as escadas do prédio. A cor amarela, que me lembra do Rubel, da cor mais certa é a amarela. Quem sabe. Amarelo e branco. Os dois juntinhos assim, mas esse amarelo é desbotado, sujo, a chuva veio e levou tudo, deixou um rastro preto nas paredes do condomínio inteiro.
            Fico um bom tempo pensando no processo de tudo isso e quanto tempo levou. Quanto tempo demora, quantas chuvas precisam vir, pro amarelo ter desbotado.
            Contemplo o gato gordo caminhando numa coleira pela grama verdinha. Corre junto da dona feito cão. Eu olho pra gata ao meu lado olhando através da janela junto de mim e penso que ela nunca se deixaria colocar uma coleira, que reproduzir aquela cena seria impossível e sorrio, acho graça, acaricio a gata assim, tão parecida comigo, um par de mim.
            Esqueci de alguma coisa, eu sei. Esqueci de mim. Volto no espelho, olho pra tudo menos pro fundo do olho. Olho pra cara branca, marcada de vermelhidão recém acordada, olho pra sobrancelha, pro nariz, encaro meu próprio nariz, mas olho, nunca.
            O olho que é meu, vai dizer, eu sei, você me traiu.
            Choro baixinho pra ninguém ouvir e abraço um livro qualquer na promessa de que não trai, não trai, eu juro.
            Mentira a minha, eu sei.
            Amenizar danos, contemplar os escombros do que ficou. Amanhã quem sabe eu largo o meu emprego e volto a escrever. Amanhã quem sabe eu volto. Volto pra dentro de mim, em  algum lugar que devo ter ficado e me esqueci. Como faz pra voltar? É possível? Existe como?
            Amanhã eu ligo pro psicólogo, tento adiantar a consulta, preciso urgente encontrar a resposta. Dessa coisa, dessa coisa antiga, dessa viagem sem volta, desses caminhos reversos, que eu teimosa e imatura, insisto em dar.


A.L.

stammered:
“xxxxx
”

domingo, 26 de novembro de 2017

pequena e planetária




 Deitar num peito duro. No mesmo que antes era macio. Tinha cheiro de pão recém saído do forno, café passado com a cafeteira fazendo chhhhhh, o vaporzinho subindo em rodinhas até o teto, fazia carinho na barriga como só sobremesa de vó faz. Agora o rosto não encaixa. Fecho os olhos de bolotas sonhadoras pra não deixar as lágrimas escaparem. 
Pequena e planetária.
Aprendi a bordar. Por enquanto é pouca coisa. Ponto atrás e ponto haste. Vou furando com a agulha o algodão, ponto por ponto e no final, tudo o que toma forma é um coração. Pouca coisa ainda. Agora já sei pintar com linhas.
Bordo como bordo palavras. Não, não. Au contraire, mon Cher. Au contraire. Bordo palavras como faço bordado. Vou indo com a agulha em riste. Matizes dissonantes e linhas coloridas geram formas. Desenhos.
A gata e eu. Queria poder amar todo mundo como amo a gata. Deitada por cima da mesa, o corpo se estica todo, as patinhas se estendem com o rabo junto, ondulante. Vai empurrando o porta-canetas com a ponta das patinhas, na esperança de derrubar no chão e ver tudo cair. Eu sorrio, ela me espia com os olhos grandões. Oi gata. Eu, gente. Ela, gato. A vida que segue.
A noite ouço um ronronar por cima das cobertas. Tempo depois uma bola de pelos e bigodes se forma por cima da minha barriga, assim, quentinha. E juntas ficamos nos precisando, sem precisar. 
Quase nem chove mais. Mas ontem choveu. Chovia pingo e pingo que caia na minha cabeça confusa e bagunçada. Não teve mão pra pegar a minha quando o pé tocou primeiro no asfalto molhado. Os carros faziam zum e zum na rodovia. Sem chuva não seria mais um nó da nossa história.
Pequena e planetária.
Essa que aqui vos fala escreve com os dedos furados de agulha. As linhas enrolaram-se nos dedos, linhas cor de mar, cheias de saudade. Ponto e fim. Ponto que desenlaça num nó e mergulha de volta pro tecido com uma linha exagerada que parece que não vai arrebentar.
Mas
Quando vê
Arrebenta.





Annabel Laurino 


nitrogen:
“ By Laurence
”

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

A segunda podia ser curta como esse texto

Este bloquinho vai acabar. Falta o que? Acho que quinze páginas. Nem isso. Vou ter que comprar outro pra poder escrever minhas listas de afazeres. Os outros bloquinhos tão vazios.
As listas são fáceis de fazer.
Hoje tá difícil. Queria sentar no colo de alguém e me lamentar até segunda que vem. Dá vontade de nunca mais escrever. Chega. É isso.
Por quê eu escrevo? A caneta é pesada.
Escrevo.
Escrevo.
Escrevo.
Que outra coisa eu posso fazer? Só sei isso. O resto é nada.
Minha ficha é a 106. Mais uma e depois sou eu. A criança sentada na cadeira da frente me olha bem dentro do olho. Sorri. Não sorrio porque não sei sorrir assim, mas finjo qualquer coisa como um sorriso. Acho graça em pensar como criança não tem medo de encarar gente grande dentro do olho. Fico sem jeito.
É a minha vez.
Parei de escrever pra ir até o guichê. Multa da biblioteca paga, mais uma vez. Nunca aprendo. Dez e meia da manhã. Entro na livraria depois de caminhar todo o centro. Asfalto quente. Concreto duro. Não quero mais essa segunda-feira.


Annabel Laurino

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Eu queria me enjoar de você

Queria que você passasse atrás de mim enquanto estou sentada na frente do computador e meu corpo nem sentisse você passar. Pra lá e pra cá. Você passaria e seria a mesma coisa que uma roupa tivesse escorregado do ombro da cadeira ou que o tapete da sala tivesse suas cerdas bagunçadas pelas pegadas da gata. Sem ninguém perceber.
Nesse monotom eu anoto as coisas que acontecem ao redor. O ônibus dando partida e você do lado de fora, na calçada, teus olhos passando de janela a janela, até o ônibus ir de vez e você ficar pra trás. Quantas janelas foram? Eu contei quatro. Quatro vezes que vi teus olhos congelarem nos meus. Guardei pra sempre.
Dessa dor que carrego no ombro esquerdo, sempre perto, traiçoeira, eu divago sozinha quando é que, quando é que... ai dou conta, não sei o que. Presa num ruminar de silêncio, as verdades evaporam pelo ar. A dor fica. A saudade, a coisa não cumprida, a procrastinação que fica, e fica, e fica e faz um mal danado pra gente. Sem contar naquelas coisas que a gente faz, fala, não sabe porque. Nunca sabe porque.
Te dizer que tenho conversas ligeiras contigo quando você não ta em casa. Coisas que pra te dizer rápido teria que caçar o telefone e levaria tempo e a coisa já teria passado. Converso com você sobre a gata escondida debaixo da cama, tirando as espumas de lá e brincalhona me espiando, balançando a cola. Te conto coisas como pra te lembrar do nosso passado. Não é incrível que a gente agora tenha uma gata? Uma gata, veja só, a gente! Te faço lembrar daquela vez que a gente voltou de Pelotas no ônibus, sentados lá no fundo, que você voltou o caminho inteiro me olhando. Uma hora me olhando no olho, me fazendo gostar mais de você e desse tom castanho meio chá.
Te digo essas coisas a essa hora, porque já perdi a hora mesmo, e porque faz tempo que não te escrevo. E porque também, aconteceram várias dessas coisas agora enquanto você não tava. Pensei em te dizer todas, mas a gente só tem brigado, discutido, você sabe. É mais fácil ficar só brava com você do que te dizer da gata, de pelotas, do que eu comi, do que eu pensei. Tudo fica difícil quando a gente ta mais longe do que a distancia física.
E por isso te digo, repito, dou esse nó nessa conversa sem jeito, que o que eu queria mesmo era me enjoar de você. Do cheiro do teu moletom, por exemplo. Mas daí, escondo o rosto no teu peito e afundo lá a cara no meio daquele algodão de cor azul e laranja, com cheiro tão teu. Do teu cabelo quando tu acorda, das tuas caras de birra e sono. A melhor delas: quando você ri. É tão raro que eu registro triste pensando se a culpa é minha ou o que. Mas registro. Você rindo de calção, sem camisa, as dez da manhã na cozinha enquanto eu danço na tua volta te pedindo café.
Se eu pudesse de fazer lembrar de uma coisa seria de uma música.
Depois disso não seria nada como eu te amo, ou eu to com saudade ou coisa e tal, aquela coisa de que tu já sabe bem.
Seria mais algo como pra te fazer lembrar dos dias azuis. E dos que ainda podem vir.



Annabel Laurino



sexta-feira, 30 de junho de 2017

Se essa escrita fosse minha

Volto à gênese. O lápis é de cor azul, ceúzinho. Não paro para pensar nas arestas dessa escrita, que vai se formando numa massa amorfa e solta, livre, pululando por aí sozinha.
Volto ao retorno do pensamento. Uma sala branca só pra mim. Abraço o que eu sou. Abraço no inicio o corpo, o corpo que eu sou. Tem dias em que é tentadora a ideia de não chegar nunca mais perto deste corpo, de olhá-lo. Mas hoje, toco as cicatrizes da pele, as ondinhas brancas das coxas, as marquinhas vermelhas da barriga. Toco com estranheza e digo “essa sou eu”. Começo a abraçar os pelos escuros dos meus braços, as coxas, os joelhos quadrados, os quadris sempre tão largos. E digo mais uma vez, “essa sou eu”. Nem sempre amo. Quase sempre confusa, odeio a imagem distorcida de mim, que eu distorço. E se sei disso, quando sei quem eu sou? E se sei disso, quando me amo? Não faço ideia. As mãos percorrem a barriga nunca dura, nunca magra. Mais uma vez eu digo “essa sou eu.”
Quando saio, não quero que vejam a minha juba despenteada pintada de vermelho, um casaco caindo desajeitadamente dos ombros, carregando uma bolsa de estampa esquisita. Quando saio, é a voz de dentro que quero que seja ouvida. Mas em tempos de internet, de canais no Youtube, de vlogs e vídeos caseiros ultra cults, super modernizados, quem vai parar pra ler o que eu escrevo?
            Escrevo uma frase, apago de novo. Nada parece ficar da maneira certa de se dizer. Existe uma maneira certa? Existe uma maneira certa de ser? Pergunta juvenil, Annabel. Pergunta de 14 anos. Pergunta dos tempos em que usava all star preto enquanto Cazuza tocava mais uma vez nos fones de ouvido enquanto eu atravessava a praça Tamandaré, matando aula sozinha em mais alguma quarta-feira, terça-feira, fosse o dia que fosse.
            Talvez se eu não tivesse atrasado várias cadeiras da faculdade eu já teria me formado. Talvez sem a ansiedade eu teria encarado melhor a prova do ENEM. Talvez se eu fosse mais esperta, mais animada, extrovertida, quem sabe eu pudesse ter tido mais amigos. Uma pausa, um gole de café e eu volto a pensar em mim mesma com dezesseis anos, a pergunta, a pergunta que volta sempre, aquela, aquela, se existe mesmo, sabe, afinal, uma maneira certa...
            Azul, rosa, amarelo, vermelho, tantas cores já foram os meus cabelos. Antigamente parava na frente do espelho, segurava as peles flácidas das coxas com desprezo, perguntava “porque assim?” enquanto uma revista de nome qualquer ficava aberta em cima da cama, com a imagem perfeitamente retocada e ilustrada de uma famosa de nome ainda qualquer com um corpo mais do que perfeito. Ah, se eu tivesse, se eu tivesse entendido como percorrer o caminho dos tijolinhos amarelos, talvez eu já teria entendido onde estava a resposta.
            Continuei minha busca durante todos esses anos atrás de um falso Oz. Sapatinhos vermelhos abandonados no fundo do roupeiro com adesivos de chiclete colados na porta. Risquei frases, joguei fora rascunhos não terminados que hoje, eu faria muito para tê-los de volta. Medo de escrever pro mundo. Medo de dizer. Poemas, contos, histórias, engavetados todos. Volto ao inicio germinativo.
E se essa escrita, se escrita ainda fosse minha, quem sabe eu não mandaria lapidar, cada frase, cada frase... Não há dúvidas de que eu posso me encontrar.



Annabel Laurino






Foto da Jade Luzardo 

domingo, 12 de fevereiro de 2017

A história que não se conta



São movimentos que destoam. Não se pode saber em qual esquina encontrará os destroços de algum caos que esqueceu. Sutiã apertado, dor de cabeça no canto esquerdo da testa. Não deveria ter saído de salto, ela pensa. Salto alto e pedras não combinam. Os calcanhares doem assim como todas as pedras fora do lugar nessa cidade.
Esta que ninguém sabe o nome, diz para si mesma que não quer voltar para as louças sujas jogadas na pia. Não quero voltar para aquelas louças sujas na pia, embora eu mesma tenha escolhido aquelas louças. E acrescenta mais uma vez, entre um tropeço e outro, que não deveria ter saído de salto.
Ninguém saberá seu nome porque criatura alguma é lembrada aqui. Ninguém saberá quantos prédios de fachadas sujas esses olhos negros não destrincharam. Olhos negros de uma criatura sem nome. Que não saberão, não lembrarão.
Como poderiam? Não poderiam. Passos podem ser ouvidos no escuro. Os passos de quem são? A cidade dorme de baixo de uma cortina, véu azul escuro, desacortinado de memórias confusas, rostos que estamparam no presente passado.
Ela vai voltar para as louças sujas? Voltará. Em algum momento do dia enquanto estiver entre mastigar as cenas das ruas e beber as ultimas gotas da sua esperança, ela, sem nome, voltará para a casa, para os compêndios de frases não ditas, amontoados de sensações esquisitas de quase morte, nunca de verdade sentida. Como é futuro e de futuro ela nada sabe, mesmo que quisesse não acreditaria. Nem em cartas, tarôs ou búzios, porque em coisa alguma acredita, mesmo que todas essas coisas lhe falassem de futuro. Dorme não pensando no que acontecerá. Acorda sabendo que mais uma vez venceu o sono e que sem saber por que, acordou.
Se levanta em madrugadas de domingo e como não sabe para onde ir, espera o sol surgir no céu e ir rabiscando mais uma vez, uma porção de sensações esquisitas. Escorrega nos espaços abertos de uma história que não deveria ter começado. Porque ela não contará.


Annabel Laurino

thunderstruck9:
“ Charles Lacoste (French, 1870-1959), Rue de Paris, 1911. Watercolour, 16.6 x 11.10 cm.
”

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Uma carta. Um adeus de mim


Volto e escrever pra você, meu caro. Você, ao menos, não é um delator. Eu sou a grande delatora de mim mesma. Com braços perfumados de flores que não conheço, você me recebe.
Não com entusiasmo, assim espero dessa vez. Não me receba com um sorriso no rosto, nem com um abraço afetuoso. Não. Eu chego suja, em pura sujeira humana de mim.
Chafurdo na minha própria lama. Mergulho num eu sombrio, encontro cascas e cascas. Camadas sórdidas de um eu em erupção, insano. Estou ficando fora, estou ficando dentro. A palavra loucura perdeu seu significado constituinte. Eu perdi meu significado. O que eu, afinal, sou?
Amigo, não precisa responder. Não precisa me dizer nada. Mas será que se eu te entregar todo esse peso, você segura? Segura? Se eu te der essa minha sujeira inteira, você pega? Me alivia de mim? No final das contas, eu quero redenção.
Chafurdo no mistério. Tomo café e no reflexo do negro a luz da cozinha. No reflexo do escuro, uma sombra se movimenta. Sou eu. Você, amigo, é outra coisa maior e por isso eu te escrevo. Se eu bebo essa escuridão inteira, meu eu é escuro feito breu, não me encontro. Você me encontra?
Respingos de chuva na janela do quarto. Roupa atirada no chão. Uma música que não tocou. Meu rosto deixado no espelho e esquecido ali desde as sete da manhã. Um rosto cansado, sobrepujado de mentiras, maquiagens falsas, cílios compridos que não tenho, boca vermelha que nunca terei. Aquele é o eu que eu sou no mundo. Que ficou guardado no espelho, na minha retina desde a última vez que eu me vi. Um eu que agrada as propagandas, agrada as mulheres na rua, os homens que passam, as revistas que ditam. Um eu com medidas, tudo no lugar. Gente sentada na sala da espera do psicólogo é feia. Eu, pro mundo, sou sanidade profunda, redentora de mim, batom vermelho, perfume forme, meia calça fio 15, tá tudo bem. Um beijo que não foi dado. Comida sonsa pedindo sal. Três palavras que insinuavam tudo, mas que não foram ouvidas. Três palavras que diziam tudo. Tudo. Mas ninguém ouviu. Eu sinto muito.
Caio no chão do banheiro, as pernas frouxas, brancas, vermelhas. Vermelhas. No azulejo eu estendo a mão. A água do chuveiro cai nos cabelos, nos olhos, na boca. Disseram que eu sou toda água. Shampoo, condicionador, espuma. Gente com cheiro humano é feio. Fedor é feio. E fede e fede. Ninguém gosta de cheirar.
Amigo, a dor é humana, mas senti-la é fraqueza. Não sinto, dou passos incertos em consentimentos mudos de inimizades comigo mesma, com o eu que eu sou. Hoje eu não falei comigo. Faz dias que não falo comigo. Não quero me ouvir. O eu que tem dentro grita, e é insano. Ou insana? O gênero não se aplica, nada se aplica. O eu não pode ser definido. Mas você entende, não é amigo? Você, me recebe nua, sem a máscara que ficou pendurada no espelho, sem a roupa parcelada em sete vezes no cartão porque preciso ser bonita. Você me recebe ao todo, por completo, me deixa ser, sendo. Não é? Eu nem preciso saber se sou mesmo, você sabe, você entende.
Nada do que eu diga engrandecerá a sua existência tão infinita. Nada do que eu diga realmente dirá sobre a sua bondade, meu caro amigo. Quando te escrevo, a vergonha prende-se aos meus braços, trava a minha escrita. Na última carta, você disse que não importava. Deveria escrever, escrever sem medo do meu eu, sem vergonha, porque você sabia. Eu escrevo.
Arranho as primeiras paredes dessa casa com as minhas unhas quebradiças. Barulho das minhas unhas nas paredes descascadas. Cansei de todas as cascas, cansei de todas as dores. E por isso dói ainda mais. Vasculho um chão sem cor, sem cheiro. Adentro um vazio sem fim. Coisas construídas. O eu que eu sou é um prédio inteiro construído pra mim. O eu é uma construção vacilante. O eu é um grande possuidor de coisas. Prostituta de mim, vendi-me fácil durante algum tempo. Vendi-me incessante em direção a coisas e disse, pra mim, que eu era aquelas coisas. Construí um edifício inteiro assim, andares de coisas, quartos de coisas, senti-me dona de mim, olhei-me no espelho e disse: esse sou eu. Não era. Nunca foi. E você sabe.
Grande amigo, só você compreende as marcas desses ponteiros do tempo sobre mim. As linhas de expressão. As dúvidas que eu não dei voz. Assenti, continuei. As linhas costuraram-se na minha pele, rastros de medos, de inseguranças. Na minha testa, as marcas do tempo de dúvida, do tempo de medo. Nos meus olhos as noites sem dormir esperando um dia chegar, o tempo passar, o medo mais uma vez em marcas roxas, em linhas cinzentas, em veias arroxeadas nas pálpebras trêmulas de cansaço, esgotamento, implorando por algo sem saber o que. Eu não sou essas linhas, essas cores, essas marcas. Mas minha pele, essa capa, esse corpo, me entregam. Delatores de mim.
Não importa. O eu de dentro é quem escreve.  O eu marcado pelas linhas, pelas cores. O eu cansado, calado, com dúvidas, com medos. O eu que não entende. Amigo, essa carta é para você saber, antes de mim, que eu me despeço. Sozinha eu vou na sua direção porque me sinto só. Choro, choro tanto porque dói esse desprender-se.
Parto para outro país com a intenção de destruir esse edifício inteiro que sou. Quero a sua ajuda, juntos colocar abaixo todo um eu de coisas, um eu de paredes mal pintadas, portas arrancadas e janelas tortas. Só assim serei.
Não pego coisa alguma, nem caneta, nem papel. A boca que tenho falará por si tudo aquilo que precisa. Vens me buscar? Te espero. Uma luz que sobe toda manhã, um calor. Outono, folhas secas, avermelhadas, amarelas, cheiro de terra úmida após a chuva, o vento no lusco-fusco de um dia em agosto, ou setembro. O mar, as cores do mar embaixo do sol refletindo a superfície da água que mais parece feita de plástico, tudo tranquilo, maré baixa. A espuma das ondas condensada em branco puro. Você é todas essas coisas, amigo. Eu me pergunto como, algum dia eu pude me enganar que controlava algo. Como pude acreditar  nesse algo, quando você é o tempo todo.
Afasto-me aos poucos de mim. Penso em você, bonito como uma maçã recém colhida, como uma música tocada, um acorde de violão, um som, uma palavra nova, um cheiro de chá, chá de hortelã, banho quente, o conforto de um abraço. Pensar mais em você e menos em mim é pensar em ser. Me distancio do ter. Aos poucos coisas são lembranças vazias, confusas.
Amigo, iremos juntos?
Voltarei a escrever.




Annabel Laurino


quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Vamos casar!


            Não vai ser no domingo. Vai ser numa terça-feira 13. Não vou me vestir de branco, não vai ter véu e grinalda. Mas serei a tua noiva ainda assim. Tu não vai ter que esperar por mim, porque chegaremos juntos, de mãos dadas. É assim que tem sido até aqui, não é?
            Vamos ter um lugar chamado nosso. E eu sei, tu vai comprar jornal pra mim. Vamos ouvir nossas músicas, cozinhar comidas gostosas no nosso fogão pequeno e mudar os móveis de lugar milhares de vezes. Aos domingos, vamos acordar tarde, eu vou passar o café, vamos ver filmes e você vai dormir antes de terminar. A gente vai brigar. Mas depois tudo vai ficar bem de novo.
            Não sei como chegamos até aqui. Eu olho uma foto nossa em frente aquela cafeteria em Pelotas. Nós nos olhando enquanto alguém tirava a foto. Eu amo aquela foto. Naquele segundo em que te olhava eu pensava “Eu amo esse cara”.
            Eu sempre amei a tua sensibilidade. O fato de tu me entender, de forma tão sensível e carinhosa. Eu amo tua maneira de falar comigo, o fato de tu ser meu melhor amigo, meu companheiro, meu conselheiro. E tudo bem que nem sempre tu dê os melhores conselhos do mundo. A gente ri, juntos, não é mesmo? A gente ri um do outro. Eu amo isso.
            Mas e aquela foto, eu tava falando dela. Foi no dia em que a gente colocou nossa aliança. Estávamos tão felizes. Achamos que o casamento ia ser algo distante, “ia levar tempo”, tu disse muitas vezes, desanimado, demonstrando ansiedade pra que o dia chegasse logo. Choramos muitas vezes antes de chegar até aqui. Choramos juntos, abraçados, choramos emburrados um com outro. Choramos desesperados. A única certeza: queríamos nos casar.
            E agora o dia está chegando. Sei que mesmo assim, sentirei saudades de ti todos os dias. Assim como sinto agora. Sei que vou querer sempre afundar a minha mão no teu cabelo e tocar tua cabeça com a ponta dos meus dedos, encontrar a pinta no teu queixo enquanto passo a mão pelo teu rosto. Beijar teu nariz, cheirar teu nariz. Beijar teu olho. Ler um poema em voz alta enquanto tu senta do meu lado com uma caneca de café.
            Naquele dia eu não sabia que isso tudo realmente podia acontecer. Nem mesmo quando tudo começou. Com um café. Um café num copo de isopor tomado as pressas numa rua movimentada de estudantes. Você de cabelo cacheado e grande, eu com a minha camiseta dos Guns N' Roses. Depois disso foi uma série de músicas compartilhadas, conversas sobre livros e um filme que mudou o rumo de tudo depois. Eu ainda acho que ele foi o grande influenciador. Será que...?
            Ah, eu mal posso esperar pra fungar teu pescoço assim que acordarmos. Mal posso esperar pelos próximos choros que ainda virão. Pelos sorrisos, pelas comemorações, pelos dias de tristeza, - porque agora já sabemos que nem tudo é flores, e que esses dias chegam sim -, pelos dias de sol batendo gostoso na nossa cara de preguiça. Mal posso esperar pelas nossas viagens, pelos dias de chuva em que não faremos nada. E pelos dias de chuva em que eu acabarei te arrastando pra fora de casa, pra pular poças, pegar um ônibus, ir pra algum lugar. E eu direi assim “vamos pr’algum lugar”. Tu vai rir. Vai ficar tudo bem. Você vai me deixar ser a sua Holly. Vai aturar minhas tpm's mais cruéis e eu sei, no final do dia, você vai me encher de margaridas e amores. 
            E vai acontecer mesmo, não é? Vamos casar. Vamos casar! Chamem os vizinhos, avisem o tio da carrocinha de churros, o cara que vende jornal, a professora que deu aula pra gente na primeira série e que a gente nem sabia, mas na verdade estudamos juntos todo o fundamental. Avisem os primos distantes, os tios, as tias, a família toda. Vamos comemorar com todo mundo. Amanhã mesmo eu vou contar pro motorista do ônibus. Vou ligar pra uma amiga que não vejo a meses. Vou contar baixinho no ouvido dos meus cachorros. Vou falar pra mim mesma, na frente do espelho, enquanto penteio o cabelo ou meço meu nariz mais uma vez, assim, bem baixinho “eu vou casar.”.
            Lembro do vô, lembro da vó. Que a gente chegue as bodas de ouro como eles chegaram. Que a gente tenha tanta paciência como eles tiveram, que a gente persista até o fim como eles persistiram, que a gente lute mesmo na dor. Que a gente nunca esqueça que a nossa amizade vem em primeiro lugar, que na verdade, antes disso tudo, a primeira coisa que a gente se chamou foi de amigo.
É, meu amigo, a gente vai casar! A gente vai casar, mas não vai ser no domingo. E esse escrito é sobre nós. É real. É real.
Beijos com gosto de menta com chocolate, 


Annabel Laurino