sexta-feira, 20 de novembro de 2015

A vigésima primeira epifania

Não sei e já não se sabe quanto tempo passou desde que estive aqui. Não se sabe também como minha face alterou-se tanto nos últimos meses, nem como meu cabelo ora penteado, ora desgrenhado, tornou-se um emaranhado de fios confusos e difusamente sem ordem. Estaria eu me perdendo de mim mesma? Creio que não.
 Inclino meus olhos bifurcados de cores que não sei dar nome em direção a um futuro contínuo, vou sempre em frente, minha hora é agora e a cada dia que eu me renovo, encontro-me em mim através do meu próprio eu. A busca incessante da minha primeira essência, o encontro com o meu verdadeiro ser, sem cascas, sem máscaras, eu nomeei isso de liberdade e sorri jocosa para o meu reflexo cintilante no espelho do banheiro.
O dia amanheceu cheio de luzes brincalhonas que acariciaram cálidas a minha pele recém desperta. Foi no sol do meio dia que eu dediquei meu momento de completa gratidão, e foi no mesmo dia, porém com o sol dando seus adeuses bruxuleantes de luzes que se esvaem na companhia de carros que somem das ruas, que eu pude perceber o quanto tudo mudou e que agora, depois de um longo ano, as conotações dos cenários são outras, as paisagens tomaram formas singulares e as cores, bem, as cores já são diferentes desde que os ventos mudaram também.
Mas do que venho falar afinal? Eu não sei. Beijo calidamente minha caneca de café e sinto o sabor da bebida presentear minha boca, aglutinar os recônditos escondidos do meu paladar com seu gosto ferrenho e intenso. Café sem açúcar, isso é novidade ainda, mas gosto disso e sinto-me bem enquanto identifico a bebida escorrendo pela garganta. Nesse momento mesmo, prendo os cabelos no alto da cabeça com um lápis verde e direciono meus dedos inquietos à essa máquina que talvez, e só talvez, irá me traduzir com maior maestria do que posso esperar, e assim espero. Se por um lado não sei do que venho falar, de outro eu sei que preciso me delinear com contornos mais exatos para ser breve e precisa, clara e objetiva, mesmo que minhas linhas sejam tortas e meu riso; infantil.
Vinte e um! Não ouvi Beatles até agora, não fiz minha dancinha da guitarra imaginária – você se lembra dela? Creio que sim... – e nem contei estrelinhas no céu fazendo um pedido com cada uma delas. Até porque choveu hoje, choveu o dia inteiro, teve água entrando pelas solas das minhas sapatilhas e gotas gordas de chuva prenderam-se na minha meia calça preta. Chuva inesperada e santa, ô chuva, que veio me visitar!
Tenho tantas histórias para contar, mas histórias que não são sobre mim, reservo uma em especial e dedico os nódulos dos meus dedos encrespados de verdade para trabalharem com voracidade e afinco, porque é isso que sei e que posso fazer e que escolhi fazer, contar histórias.
Passo os dias ruminando no insólito da minha mente, vagando passos dentro de mim, percorrendo lacunas vazias, preenchendo espaços, mastigo historinhas, vislumbro o incerto e recrio tal como convém recriar. E claro, há certo preço em contar histórias que não são suas, o meu é de sentir as dores, e sinto muitas, mas sou leal no que escrevo e por isso escrevo ainda mais, com nós nos dedos e lágrimas espiralantes no rosto, eu continuo.
Minhas pálpebras estão cansadas, mesmo assim eu continuo. Desta vez não estou contando uma história, estou apenas me contando, não por inteira, porque não posso caber em um espaço tão enquadrado como esse, nessas linhas, nesses pontos e dentre essas vírgulas. Mas estou me contando um pouco, uma parte de mim. Eu e eu mesma, afinal de contas, sou só eu e Deus dentro desse quarto de pouca luz, sou apenas eu com meus braços brancos esparramando-me languidamente por através desse ritmo desconexo de vocábulos perdidos.
        Não sei porque continuo, estou diante de uma parede que não posso ultrapassar. Mas digo-te sem presa, as entrelinhas são suas também e aquele que lê saberá compreender os códigos febris das minhas secretas reentrâncias. Agora, depois de dizer-te tanto já não sei se continuo, tornei-me vaga, e eu não desejava isso, queria ser breve e precisa. Continuamos.
            Da janela do trem eu vejo as ruas, ensopadas, vestidas em águas que caem do céu. Tanta gente com seus guarda-chuvas abertos, tanta gente com passos truculentos e trepidantes, perdidos em si. Eu por um lado, diletante e mesmo assim confusa, deixo-me ser levada pelos trilhos desse trem que os percorre a todo vapor, sem parar. A chuva escorre pelos vidros frios, as nuvens carregadas, um céu todo cinza, uma tarde de primavera em um novembro tisnado de saudades, é essa a cena, corta.
A outra cena sou eu, veja. A cena sou eu sendo levada por esse trem, e agora o trem já se foi e lá se vai o trem, a fumaça sobe condensada pelo ar, um ar pulverizado de cristalinas cores, esfumado de perfumes, esvanecido de flores, no lusco fusco das dores, lá se vai o trem. E aqui vou eu, dentro desse trem, registrando as minhas epifanias nervosas, te subscrevendo discretamente. Corta.



Annabel Laurino








quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Uma breve história sobre você

Mergulho na imensidão dos teus olhos, mergulho sem pressa, como se me encobrindo lento e vagarosamente do brilho incessante que emana deles, que me aquece. Tuas mãos tem cheiro de manteiga, e eu digo isso, “tuas mãos tem cheiro de manteiga”, você ri e pede desculpas, mas eu digo pra você não se desculpar, porque eu gosto disso. Beijo os dedos compridos da tua mão ossuda e tão branca, a mordisco e pra te trazer ainda mais perto, eu a repouso no meu pescoço, como se fosses meu. E é, você é meu.
Você me delineia com os dedos, faz o contorno do meu rosto com a ponta rija e quente do teu indicador, mergulhando teu polegar nos meus lábios, perpassando tua mão pelos meus cílios azuis. Estou nadando na profusão de nuances dos teus olhos, estou te adentrando lentamente. Você diz que eu já te invadi há muito tempo, que já faço parte. Isso me faz sorrir jocoso, gostoso, sorrir com o corpo todo entregue a você, que me esperastes por tanto tempo e mesmo assim, me recebestes tão tua, tão bem.
Por isso eu me aproximo com imenso cuidado, abro a porta com delicadeza. Com mais sutileza ainda, mais do que eu posso ser capaz, solto as minhas bagagens ao pé da porta, e entro no teu espaço, no seu eu, tão límpido e cheio de luz, tão bonito. Tenho com a tua alma o cuidado que se tem com o peso de uma luz.
Não canso de te olhar, tudo o que vejo repousa nas pálpebras da minha alma e é nessa dança em que permanecemos. Chove lá fora, alguns barulhos da cidade adentram a sala através das finas camadas de concreto e reboco de parede. Não importa, estamos perdidos em nos olhar, em misturar nossas risadas num mesmo compasso, em confundir nossos cheiros e mesclar nossas cores. Te gosto tanto e tão profundamente, intensamente. Te fotografo em detalhes; teu nariz perfeito, tua boca tão grande, as sardas do teu rosto, a pinta embaixo do queixo, teus caracóis em formato de cabelo, farejo teu cheiro, aroma fresco de banho misturado com o cheiro gostoso que a tua pele tem. Eu registro tudo e amo cada detalhe.
O gosto de café que incide na tua boca é o mesmo que se profana na minha com o teu beijo. Te olho mais uma vez e te invado com o meu olhar. Você, meu amigo, minha casa, eu quero você. Se fosse possível emitir telepaticamente todos os sinais de tudo o que eu preciso te dizer, então você já teria compreendido mais além. Mas não o é, e por isso eu continuo a te olhar, e te olhar e a me perder na vastidão pura e rarefeita do teu olhar. A desejar morar em você por tanto tempo, por muito tempo, por mais do que o tempo possa contar. 
Suspiro alegre, perdida em meio aos teus braços tão compridos. Até que enfim eu encontrei o meu lar.


Annabel Laurino 

sábado, 24 de outubro de 2015

Traçando a Cidade Poética


Quando descemos do trem somos engolfados pelo ar gélido de muito vento, porém abraçados por raios de sol luminosos e cálidos em pura essência. Percebemos, a atmosfera que nos abraça é outra, é poética em toda sua existência, tremulante em nos alcançar ao longo de nossa descoberta nessa cidade de pedras. Você desce na minha frente, estendendo sua mão quente pra me ajudar e juntos, nós nos direcionamos ao fabuloso dia que nos espera.
E o que descobrimos, afinal? Ora, no presente momento em que descemos do trem a cidade estava recém desperta. Agora, conforme distendemos nossos pés curiosos pelas calçadas de rachaduras e passamos por prédios gastos, a cidade se acorda ainda mais, com rufares e espreguiços, espasmos e agitos, emperdigando-se toda em sua imensa sede de ser.  Tal como é por inteira; grande, louca, selvagem e barulhenta, ela é mesmo que eu não a registrasse através desse meu caleidoscópio mágico que aqui tenho em mãos, sentada nesse café. Sou a mulher com olhos de gato e lentes estroboscópicas, registro tudo, mergulho dentre a superfície superficial e supérflua, alcançando assim, a cidade tal como ela é.
E ela existe e inexiste, ela é mesmo que ninguém a perceba. Ela é o verbo nesse exato momento. Existindo em tremedeiras cintilantes de nuances esvoaçantes e azuis, cheia de som e cor, no segundo perfeito em que descemos do trem.
Descobrimos a cidade despertando, vasculhamos sua existência com nossos passos curiosos, os meus e os seus ou os nossos, já que não há duvidas de que ao longo da descoberta nossos passos estiveram no mesmo compasso titubeante e diletante. Descobrimos não somente o despertar da cidade, mas como tantas outras coisas, coisas que não poderiam ser vistas com olhos descuidados.
Pelas avenidas encontramos as pessoas, nos deparamos com o fluxo, o mar de gente, a sonoridade grande e enloquente dos passantes apressados, os carros e suas buzinas, a poluição de cartazes, lojas com suas promoções, vendedores nervosos, restaurantes abertos, o cheiro de comida, ah... a gastronomia urbana! Tudo isso entrelaçado num conjunto amórfico. Os cães de rua, os moradores de rua. Tudo está na rua! As carrocinhas de lanches rápidos, baratos e que todos compram. Os vendedores ambulantes com suas mercadorias empilhadas em caixas ou presas em murais que eles levam para todos os lugares, todas as esquinas. Tudo está acontecendo, tudo acontece.
De mãos dadas nós costuramos as ruas. E depois sentados e boêmios piquiniqueamos no parque próximo ao mercado. Voz e violão, sanduíches e um suco de uva doce, para dilatar os nossos sentidos. Não temos pressa, e por isso cantamos músicas, você dedilha o violão enquanto eu te dedilho com os olhos curiosos. Não me canso de anotar mentalmente seus detalhes, seu cabelo cacheado que esvoaça no vento, suas mãos tão grandes que seguram com delicadeza o instrumento que dedilhas, a pinta escura por baixo do teu queixo, teus olhos castanhos e penetrantes, teus ombros largos, eu fotografo tudo, por inteiro.
 Quando a tarde começa, satisfeitos e atônitos, nós decidimos por café e nossa busca recomeça. Sabemos para onde ir, sabemos o lugar cafeico e perfeito, nosso recanto particular em todo o universo. Mas mesmo assim, deixamos ele por último e visitamos outras cafeterias. Dessa vez, é usual e cultural, tomamos um expresso espiralantemente quente e forte, tiramos fotos, rimos e fazemos trocadilhos, poetizamos, concretizamos histórias e confabulamos sobre o universo.
Com as xícaras vazias e a conta paga nós prosseguimos. É tarde de sol que se esconde e depois reaparece dentre as nuvens, o mercado de pulgas está aberto com todas as bancas expostas, roupas, discos, souveniers, louças antigas e belas, quadros, tapeçarias, máquinas de escrever, livros, artesanato, tudo em exposição ao longo do perímetro do Mercado, uma alegoria de coisas antigas e bonitas, que mesmo que não se compre nada vale a pena admirar cada uma dessas coisas, conversar com os vendedores e se for o caso, garimpar um achado muito valioso, como um vinil raro daquela banda favorita.
Não solto sua mão e você também não faz questão de soltar a minha, caminhamos assim pelo calçadão da cidade, compramos sorvetes deliciosos, o meu de Pavê Italiano, meu favorito, o seu de Pistache. Marco a colher do seu sorvete com o meu batom cor de rosa e isso, ao longo da nossa caminhada, se transforma em uma piada interna que gera gargalhadas, e rimos e rimos sem parar até que nossas barrigas doem e os cantos dos nossos lábios adormecem doloridos. As pessoas passam, apressadas, outras descansadas, consumindo. Nós olhamos tudo, as vitrines e as pessoas, muitas vezes são elas que nos olham, muitas vezes somos capturados pelo vidro de uma vitrine qualquer onde nossa imagem é registrada por nano segundos enquanto passamos.
Ao prosseguirmos com nossos sorvetes coloridos, eu te falo de Hemingway, te conto bobagens até que adentramos uma rua que é definitivamente a minha favorita, muito parisiense, com calçamento cuidadosamente ladrilhado, lojinhas lado a lado, todas pequenas, e três livrarias de uma só vez. Adoro isso, adoro essa atmosfera que se move num conjunto tão boêmio e nos acolhe em uma única vez.
Ao longo dessa rua, hippies vendem sua arte, anéis com pedras tão bonitas, colares, porta incenso, enfeites e brincos. Paramos para conversar com um vendedor que nos chama para olhar o que está vendendo, logo, lhe desejamos boa sorte e continuamos. É o momento de nos perdermos dentre os livros, e fazemos isso em uma das livrarias pequenas. Compramos bandeirinhas de países, alimentamos mais uma tradição, para novamente, prosseguir, flaneuriar.
Sabemos onde devemos chegar, não há duvidas, é o nosso lugar especial e ele nos espera. Caminhamos com pressa dessa vez, queremos chegar o quanto antes, ansiosos por aquele café quente, ansiosos por aquele lugar que é tão nosso. A avistamos de longe, imperiosa e tão, tão perfeita, a nossa cafeteria dos sonhos. O nosso Café Flore.
Entramos e somos recebidos pelo tilintar de xícaras, o ruminar de conversas, o burburinho por conta do jogo que está passando na televisão. Há um grupo de senhores de idade que se aglomera ao longo do balcão onde é servido o café, outro grupo de senhores se deleita com o jogo discutindo quem irá ganhar, qual a melhor jogada e vibram intensamente com a certeza de uma vitória iminente. Fora os grupos, há os senhores misantropos, os que se acolhem do lado de fora do café, sentados na vidraça, fumando seus cigarros ou simplesmente lendo seus jornais.
É um lugar deliciosamente barulhento situado numa esquina, num canto perfeito da cidade. É formidável, magnífico o sentimento de estar ali dentro. Procuramos uma mesa ao lado da enorme vidraça que nos permite uma visão completa da rua, como se estando sentados ali estivéssemos também no meio dos passantes, do mar de gente que passa sem parar pelas calçadas. Nenhum adjetivo que eu pudesse usar agora lhe permitiria melhor alcance dessa cena além do que eu posso dar, com minhas palavras truculentas e pedantes.
Mas faço o que posso com a ponta inclinada do meu lápis nesses papéis cheirosos de inverno. Faço até onde a minha lupa, que não se limita somente ao que posso ver, mas ao que não posso ver, me deixa adentrar. Faço o que consigo, capto além do captável para que quem me lê possa entender a poesia escondida por trás da linha enrijecida daquilo que é belo naturalmente, poético em existência, com essência leve e viva, tal como essa cidade.
O garçom vem com o bule fumegando de um café que, logo, percebo meus lábios sedentos pelo gosto familiar e tão gostoso. Ele serve o elixir em nossas xícaras e acrescenta uma quantia de água. No meu caso, dois dedos de água, no seu, café puro e sem açúcar. Gostamos disso, dessas características que permaneceram nessa cafeteria mesmo depois de tantos anos. Não vivemos aqui quando ela abriu suas portas pela primeira vez e nem tomamos seus primeiros cafés, servidos a esses senhores que na época deveriam ser jovens, ter nossa idade, talvez. Mas podemos visualizar tudo isso, porque pequenas características antigas permaneceram aqui, o café sendo servido no bule, na mesa do cliente, os uniformes dos garçons, as vidraças, o balcão onde também é servido os cafés e vendido todo o tipo de charuto para aqueles que fumam se refestelarem lá fora, nas calçadas. A essência desse lugar permaneceu, através dos anos, sofisticada e rústica, mantendo-se intacta mesmo diante da modernidade.
Assim, nós nos perdemos sorvendo do gosto ferrenho e agridoce que vai se aglutinando gradativamente no nosso paladar. Admiramos a cidade através do vidro marcado de mãos e de poeira, um casal passa andando de bicicleta, senhoras de idade atravessam a rua e desviam dos pombos gordos e cinzas, crianças correm em direção ao calçadão vestindo camisetas de super heróis, um casal apaixonado beija-se loucamente do outro lado da rua e depois seguem andando. Tudo está em movimento. A ponta do meu lápis registra detalhes, risco e rabisco coisas, anoto tudo, estou fotografando o fluxo.
Seus olhos me registram também, me flagram, interrompo a escrita, você me fala breguices que me fazem sorrir e eu te jogo um beijo por cima de nossos cafés, um beijo azul, eu digo. Sua mão alcança meu rosto, te falo algumas breguices também e elas te fazem sorrir, sorriso bonito, aberto e iluminado, o tipo de sorriso que me faz não resistir. Sendo necessário o seu registro aqui nessas páginas.
Sabemos que temos que ir embora a qualquer momento. Mas estamos tão bem, tão leves aqui nesse lugar tão nosso. Eu te recito um pedaço do poema que está colado na porta de entrada da cafeteria “Me apaixonei no Aquários” e você ri e concorda, me dando um beijo no alto da minha cabeça bagunçada. Pagamos a conta e saímos. O vento frio nos acolhe e nos leva em direção ao âmago do calçadão. Passamos pela parada de ônibus, te falo de outros cafés, você me conta uma história, e abraçados nós nos despedimos dessa cidade tão nossa, a cada passo, a cada rua que passamos, nós nos despedimos.
Você pega da minha mão, fala que tudo mudou no momento em que chegamos e que agora podemos perceber que nós estamos diferentes, nos modificamos um pouco nessa cidade, e que cada vinda nossa é única. Eu concordo, é verdade, é verdade... Estamos diferentes dessa vez. Tudo tem um gosto ameno e doce que me lembra alcaçuz e jujubas coloridas. Gosto disso. Te dou um beijo demorado e você me chama de sua bonequinha, me deixando na ponta dos pés. As pessoas passam, os carros buzinam ao longe, nós esperamos o trem com nossas passagens já compradas.
Estamos indo, sabemos, mas com a promessa de que iremos retornar em breve à essa cidade caleidoscópica e poética, que é nossa. E que nos espera com suas pedras e calçamentos delineantemente acolhedores, cidadélicos.



Annabel Laurino;
para o meu melhor amigo, não só amigo, desde sempre.

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Piergiorgio Branzi

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Les amants de la pluie

Como não podia ser diferente, o céu está despencando água lá fora nesse exato momento. O mesmo céu que anunciava chuva quando você foi embora, pisando no chão de uma rua encharcada e com poças d’água que refletiam as luzes douradas dos postes de luz, luzes solitárias e dançantes. O céu que agora enxuga-se de pingos sinfônicos é o mesmo que testemunhou tua partida, acenando-me ao longe, enviando no ar beijos que me alcançaram numa saudade que está aqui, presente.
Com um céu tisnado de cinza, brilhante e inflamado de sentimento londrino, com ruas úmidas e abraçadas por uma chuva fraca e fina, nós caminhamos. Flaneuriamos, costurando calçadas com os nossos passos titubeantes e frenéticos, alegres e sonhadores, dividindo conversas, mordiscando nuvens imaginárias. Foi assim que caminhamos pelas ruas, braços dados, cúmplices apaixonados escondidos pelo seu guarda chuva que carregavas em uma das mãos, a mesma que, quando não ocupada, afaga meu rosto desanuviando pensamentos ruins.
Te falo de Flâneur. No teu ouvido eu digo palavras em francês e tu sorri colorido, refrescando os dias carregados. Te trago nos braços uma bagagem de literatura, parafraseio histórias, te conto dos meus avós e quando menos espero, te vejo compartilhando comigo minhas memórias, minhas lembranças e em meio a uma das tuas lágrimas frescas eu vejo meu rosto refletido nos teus olhos transbordantes de uma sinceridade luminosa.
Somos abençoados, sei disso quando ao te abraçar, com o rosto colado no teu peito, sinto teu coração disparado a me anunciar aquilo que nem teus braços conseguem me dizer. Não são culpa deles, dos teus braços, pois nem meus olhos te dizem tudo o que eu gostaria que eles dissessem. Nem meus braços, meus sorrisos, meus dedinhos inquietos e minhas palavras pausadas em ósculos estalantes, meus bilhetes ou minhas cartas ou meus textos, nenhum deles conseguem te dizer aquilo que no peito está contido junto ao titubear frenético de um coração diletante.
Os cantos dos meus lábios te agradecem por teres feito tantas cócegas neles nos últimos dias. E sorrio, dou risada, riso bom, riso doce, riso que só tu tens me feito dar. Aliás, tens feito muitas coisas. É você quem trouxe a França novamente pra minha vida, de repente a Zaz não para de tocar aqui na minha caixinha azul e todas as baguetes, madeleines, Notre Dame e Point Zero se fizeram presente novamente, até mesmo a Beauvoir e o próprio Hemingway vieram me visitar. É você quem tem colorido os dias, feito o céu chover todo multicolorido, multifacetado de alegrias esculpidas em pequeninos pingos gelados que explodem no meu telhado, ribombando felicidade açucarada e azul.
Sento diante dessa máquina e a mesma boca que tem tantas coisas pra te dizer, é a boca que dita ordens a esses dedos inquietos que querem te escrever, te contar, te mostrar coisas, te delinear as matizes e conotações tão belas que estão contidas na minha mente que não podes ver, mas sabes que quero que conheças. Sento diante dessa máquina e te escrevo, te escrevo numa pressa sem fim, te escrevo palavras que com a impetuosidade que apenas o Louvre poderia ter, mostram-se sinceras e verdadeiras. Até mesmo nas entrelinhas, nas linhas imaginárias e nas não imaginárias, nas com marcas de batom vermelho e nas sem marca alguma, pois apenas são.
Como não podia ser diferente, eu te escrevo no meio de um temporal que promete ainda mais chuva. Como não podia ser diferente eu te escrevo com os dedos quentes por terem acabado de segurar uma caneca de café. Ah, o café! A analogia perfeita... Quero beber desse café, até a ultima gota, quero esse café forte, quero esses dias cinzas mais vezes. Chuva e arco-íris, literatura e música,  Deus e a eternidade gloriosa em luz, tudo num universo dissonante que anunciará coisas boas, perfeitas e agradáveis. Quero tudo, quero já. Quero a chuva nossa de todos os dias, quero os ósculos sem fim. Quero us.
Arcoirieiraremos.




Annabel Laurino


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sábado, 26 de setembro de 2015

Imensidão Azul

Esquadrinho essas paredes azuis
São cinco da manhã,
A chuva foi embora
Cubro as minhas pernas nuas e geladas
E por mais uma vez, sinto falta de café.
Minha boca seca,
Meus olhos estalados e assustados procuram
Procuram, como um radar
Dentro dessas paredes azuis e geladas.
Vastidão silenciosa e ofuscante
Eu mergulho mais uma vez na sedenta vontade de encontrar
Identificar
Não é alecrim, nem jasmim
Nem música qualquer que dite o compasso vertiginoso desse som
Que não para de gritar dento de mim.
Lembro agora que eu não sei escrever poemas
Tudo que sei é torto
Disforme e dançante
Então por que escrevo?
Para desatar o choro que está preso no fundo do peito,
Que dói.
E pra procurar
Te procurar, mais uma vez, insone.
E dentro das cartas lacradas,
Dos versos secos,
Das horas aguadas,
Das ruas lânguidas e encharcadas,
Do que foi dito e que ninguém lembrou,
Mas eu lembrei.
Dentro
Tudo dentro, amassado
Agrupado e esquecido
Solto e perdido
Dessas paredes azuis.





Annabel Laurino 

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

O Café de Nós Dois




Quero que você seja meu Jean-Paul Sartre. Prometo a você que serei sua Simone de Beauvoir, porém com sapatos franceses mais bonitos. Acaricio seu rosto com meus dedos pequenos, encontro um plexo solar nas duas órbitas faiscantes com que me olhas, me admiras. Na desconjuntura perfeita de um universo não muito distante, eu sou o que queres que eu seja, você é o que eu quero que você seja. 
Cantarolo no seu ouvido mais um verso daquela música antiga, qual é mesmo o nome? Ah sim, sim, aquela em que uma mulher louca canta. Por que sempre tem de haver uma mulher louca? Por que todas as mulheres são loucas? Na minha estante de livros, você pode ver, dedico um lugar só para elas, as loucas.
E do que eu estava falando mesmo? Ah, sim... A música. Começo baixinho, cantando Dream a Little Dream of Me. E você sorri jocoso, gosto dessa palavra, jocoso, e você sorri, sorri bobinho, doce, com suas órbitas cheias de luz enviando mil ondas de calor pra mim, seus dentes brancos brilhando felizes, tudo em você é feliz e eu fico feliz também, quero dançar minha música com você, dividir a libido, os ósculos, as frases soltas, o preto e o branco, o silêncio soturno, o doce e o amargo, as hipóteses, as histórias, as verdades e as confabulações de um futuro que nos espera. Eu quero o já que eu não posso ter e que talvez você possa me dar. Quero o instante agora. 
Penso em flores. Quando foi a ultima vez que me deram flores? Esse ato tão bonito, tão fresco, o ato de florear. Hoje em dia querem somente semear. Semeiam, semeiam, e semeiam, ficam lá, jogando sementes e esperando no que pode dar. Mas ninguém se preocupa em florear, enfeitar, deixar mais bonito, cativar.
E nessa de cativar eu afirmo: quero cativar, quero que me catives. Você quer? Além das flores e da semelhança com a Rosa eu sou sua raposa dentro da toca. Quero que me catives e aos poucos eu vou te ceder o meu espaço, o meu todo, o tudo e o mais além desse universo que é meu, só meu, mas que eu quero nosso, redesenhado com pontinhos trilhados pelos dedos de nós dois. Eu desejo a esse mundo azul que seja nosso, meu e seu, como já foi e pode ser.
Se tu vens, eu não sei, mas eu sigo. Nas tardes de Agosto eu muito chorei, só que você nem sabe disso, eu não te contei. Agora já passou, já deixou de ser. Agora tudo brilha novamente e com cheiro de jasmim e alecrim, pois há um som melodioso que lembra minha música favorita e que não para de tocar nos jardins da minha mente, me fazendo acreditar que a primavera está chegando. Se não me floreias, aguardo, o futuro há de me dar flores.
Chove nessas noites de início de setembro, chove tanto que eu penso em te ligar e dizer que estou com medo, com medo desse futuro incerto, mon dear, tão misterioso. E essa chuva, essa chuva não para, trazendo um frio enregelante que sobe sobre a minha pele fresca de um banho quente. Te escrevo um bilhete assinado da sua bonequinha que muito pensa no que será, dizendo que estou com saudades, vem me abraçar, me guardar nos braços quentes que tens, vem sussurrar pra mim aquelas promessas frescas de que será eterno, eternamente em nossas mentes florescentes e subjacentes para todo o sempre e sem fim. 
Duas canecas de café. Uma para mim e outra para você. Sentaremo-nos em uma mesa ao lado da enorme janela vendo a vida que passará lá fora. Não, não é o CAFÉ DE FLORE, mas é aqui, nesse lugar, que reside a história inteira de nós dois. Você abrirá o seu jornal e juntos nos debruçaremos sobre as palavras cruzadas que ainda teremos para completar. Você sorrirá, tentando esconder sem sucesso, as covinhas faceiras dos cantos dos teus lábios que se esticarão e eu sorrirei te jogando um beijo vermelho, suspirarei e pensarei que este seu sorriso sempre será o meu sorriso favorito, independente do que aconteça.
Nesse dia, sentados nesse lugar, ansiosos com as nossas histórias para contar, veremos a chuva cair lá fora e uma multidão abrirá seus guarda-chuvas para se proteger, admiraremos os pingos confeitados de luzes que cairão pela janela, escorregando jubilosos e sem rumo. Nos perderemos em nosso entretenimento favorito de sermos nós dois, você bebendo das minhas curvas ondulantes e eu dos teus delineios pulsantes. Tudo isso assim, tão Clarice e Caetano, para no fim, depois de pagarmos a conta, felizes e faceiros, vermos um sol de quase dezembro temperado de saudade e um arco-íres residir radiante, cheio de luz e som e com uma nova história pra sempre nossa.




Annabel Laurino

Café Kiss, by Ron Hicks

sábado, 29 de agosto de 2015

Sobre conotações, matizes e Deus

    Nas matizes dissonantes dos meus dias eu posso ver através da janela em que me deparo. E falo pra você, meu amigo que novamente me lê, sobre as conotações. Atento-me às conotações e matizes, porque vejo como tudo mudou. De azuis violáceos a simples tons perolados de bege e nude, eu encontro uma matiz diferente nesse amontoado de cores que se dispersam ao longo dos meus dias.
    É verdade que muito me entristeceu o rumo que o barquinho tomou, rumo em direção a uma maré brava, de alto mar, com a promessa de tempestades violentas e céu negro, puro breu. Mas, e creia meu amigo, existe um mas, eu irei ver o retorno deste barco às águas mansas e cristalinas que o esperam, como se fossem o seu lar. E essa espera, em meio a tristeza ferrenha que também é capaz de me alegrar, há algo chamado esperança.
    Claro, eu posso te explicar, meu amigo, como alguém pode se entristecer e mesmo assim permanecer alegre. Mas veja, eu estou suscetível  às mudanças de conotações bruxuleantes que brincam de pincelar, pintar, os meus dias, porém permaneço firme. Porque mesmo que essas conotações não me agradem, mesmo que muitas vezes, inúmeras delas me entristeçam, eu encontro uma fé inabalável, uma certeza indestrutível, uma alegria inexplicável que vem de um único lugar, de Deus.
    Caminhando pela rua, tão tardinha do dia, em mais um desses finais de tarde de agosto, ventania gélida e tempo estranho, onde uma brisa decidiu brincar com o meu cabelo, encarapitando-se em volta do meu rosto e fazendo cócegas no meu nariz, eu me senti gigante. Ali no meio daquela rua cheia de tantas pessoas caminhando para todos os lados em direção a todos os rumos possíveis, eu com apenas meu 1,56, me senti gigante de tanta paz, pois eu tive a certeza. A minha certeza secreta que me fez sorrir ao compasso dos meus pés trilhando o caminho.
    Os dias mudaram. Eu mudei. Logo vejo que continuo a mesma que sempre fui, mas algo novo e bonito incide em mim agora. Algo repleto de luz.
    As conotações de cores alteraram-se por fim, os dias passam e cada um deles parece ter uma cor diferente sobre uma matiz completamente nova. Nem sempre essa cor me agrada, meu amigo, e eu não vou te mentir, especialmente nos últimos dias. Mas tenho pincéis novos e cores mais bonitas guardadas em latinhas especiais de tinta que agora eu sei como usar. E tento assim, deixar meus dias mais bonitos, mesmo que de alguma maneira não sejam como eu esperava, como eu tinha planejado que fossem.
     Eu sei, eu sei, já te falei das conotações, dias, Deus, matizes, latas de tinta, tristeza e alegria, mas não contei o mais importante, que eu continuo.
    Sim, eu continuo. Continuarei. Como já diria um velho escritor “continuo remando”. Remarei apontando meu barco rumo ao horizonte sem fim, para um céu cheio de luz, eterno e real, com conotações límpidas e matizes inimagináveis pra mim. 



Annabel Laurino 



sábado, 11 de julho de 2015

Conto de uma Mulher Neurótica


Elisa estava apaixonada. Isso sim era uma notícia e tanto para ser primeira página do jornal local daquela cidadezinha pacata, mas cheia de marginais. Elisa estava com borboletas espiralantes batendo asas alvoroçadas em seu estômago. O flautista que tocava todos os dias no centro da cidade escolheu Fly Me To The Moon do Sinatra especialmente na hora em que Elisa passava antes de ir para o trabalho naquele dia, e sorriu, mesmo sem receber uns trocados em sua caixinha preta e esfarrapada. Se foi coincidência ou não, não se sabe, mas a música a fez flutuar romanticamente, imaginando cenas perfeitas, beijos estalantes, frases retiradas de filmes antigos, mas que dessa vez, em sua imaginação, saíam de sua própria boca, como uma romântica desenfreada no auge de sua paixão, como em Cinderela em Paris, ela era Audrey Hepburn.
Estava apaixonada há vinte e duas horas, trinta e quatro minutos e vinte e três segundos. Era um recorde. Sentia-se extasiada, era como experimentar uma droga e para ela, que nunca havia provado nada de inovador e exótico, além de um café bem forte e um cigarro amargo, essa droga, a paixão, a fazia sentir-se em êxtase, como se sua mente estivesse fora do ar.
Por isso naquela manhã de uma quarta feira cinzenta e fria, acordou sem se incomodar com o barulho incessante do despertador. Sem se importar até mesmo com sua franja que estava um pouco torta, na verdade parecia até mais bonita assim, meio amassada, julgou-a espontânea e de um visual beirando ao rock 'n roll, combinou perfeitamente com sua saia preta e sua camisa azul royal, com suas meias escuras e charmosas e seu casaco pesado, estilo londrino. Não se importou, ou não deu a devida importância para a sua vizinha parada no portão, que sempre espichava os olhos aguados de uma velha muito velha para a sua saia que fazia questão de dizer bem alto como estava curta, e nesse dia em questão o fez com uma rabugice desprezível, mas que Elisa nem percebeu. Também não ligou para o fato de ter que ir em pé no ônibus, quando deu por si já estava no centro da cidade e todos os passageiros pulavam para fora do ônibus, apressados.
Era maravilhosa aquela sensação. Sentia-se como se tudo ao seu redor fosse dar certo, como ser abraçada por uma gigantesca nuvem de Felix Felicis. Essa sensação aumentou ainda mais com o seu chefe parado em meio ao escritório observando-a entrar, soltando um bom dia alegre e elogiando seu cabelo, havia feito algo? Não, respondeu sincera e feliz, não visitara seu cabeleireiro naquela semana e agradeceu estupefata.
Ah! Como são fervorosas as sensações da paixão. Tão cáusticas e intrepidamente ressonantes no peito daquele que o sente. Elisa não podia evitar, não o pode, nem mesmo quando deu por si e percebeu que havia algo de diferente entre o caminho do coração e da sua mente. Não conseguiu e nem mesmo tentou, para falar a verdade, expulsar aquele intruso de dentro do seu corpo. Era profundo aquele ressoar gostoso de uma onda viva e dourada, cheirando a lavanda e almíscar. Todos os dias podiam ser cheirosos assim, decretou inebriada.
Porém é válido ressaltar de que embora Elisa se encontrasse assim tão ineditamente apaixonada e que essas sensações ludibriantes assolassem seu peito, agora inflado de um amor súbito e ferrenho, ela estava inebriada demais para perceber as causas amargas desse sentimento tão único. Não havia percebido o outro lado da moeda até aquele momento fatídico, não havia se questionado, indagado o desabrochar daquela paixão.
E foi assim, com uma pergunta simples, no momento em que grampeava um documento ao outro, sentada no escritório da rua 24 com carpete marrom e manchado, rodeada de seus colegas, ouvindo o barulho estridente de um telefone que não parava de tocar, que a moça firmou seus pés no chão.
Não sabia como isso tinha começado, como ou em que momento ao certo ela se deu por conta de que estava apaixonada. Não saberia dizer. E por isso perguntou-se: Por que me sinto assim tão feliz? Esse sentimento irá acabar? Eu continuarei feliz assim? Um sufocamento novo e contrário a toda aquela felicidade começou a apertar em seu peito. Sentiu-se tonta com a leve percepção de que tudo isso, todo esse sentimento, toda essa felicidade, poderia ruir em segundos. E se ele não a amasse? Estaria ele feliz como ela? Seus olhos antes tão estalados e amorosos tornaram-se olhos de gato que rumina um rato dentro de um buraco na parede, olhos investigativos e altivos.
Elisa sentou-se estática na sua cadeira de trabalho, ficou fitando o longe, o outro lado da rua através da janela do escritório. Imaginou seu amante naquele exato momento apertando o nó de sua gravata e saindo para o trabalho, parando o carro no sinal vermelho e assim que passasse uma moça bonita ele não resistiria de olhar um bocadinho, só por um esporte costumeiro, então examinaria suas sobrancelhas no espelho retrovisor e voltaria a dirigir.
         E ela ali, toda contente. O gosto que sentiu foi amargo e incisivo na sua boca que antes era só doce. Sentiu-se preenchida por uma nova sensação áspera e surpreendentemente quente, azeda e corrosiva. Imaginou-o com outra logo depois que foi embora, imaginou-o mandando mensagens para essa outra, dizendo para essa mulher o quanto a amava, da mesma forma que dizia para ela, nos momentos de dizer adeus. Se sentiu tonta, magoada, enganada, quase chorou. As perguntas não paravam de rodopiar em sua cabecinha escura, e se ele estivesse fingindo amá-la? E se, e se, e se...
No final do expediente da manhã Elisa estava decidida: iria romper com tudo. Seu sentimento que antes era florescente e feliz agora era algo caótico e destrutivo, sentia-se louca, amarga, desesperada. Não era mais Audrey Hepburn, mas Zelda Fitzgerald no limiar de uma loucura, de um ato insano, iria saltar no Sena, jogar-se no rio. Olhou para todas aquelas mulheres, suas colegas de trabalho, observou-as conversando com os outros homens, a maneira como flertavam e riam para os clientes que entravam no escritório, imaginou se alguma daquelas mulheres seria a biscate, a outra, a que ouvia os elogios amorosos que ele lhe dava.
Quando Elisa saiu para o horário de almoço a música que tocava em sua cabeça era She’s lost Control do Joy Division, muito diferente das melodias harmoniosas e da voz quente de Frank Sinatra. Agora em seu peito um ciúmes doentio incidia acompanhado de uma vontade enlouquecida de descobrir toda a verdade, mesmo que apenas em sua mente ela se fizesse verdadeira.
Ponderou que agora tudo fazia sentido. Quando ele não atendia o telefone ou nos finais de semana em que arranjava uma desculpa de trabalho por não poder vê-la e até mesmo as várias flores que ele lhe dava acompanhadas de presentes caros e bonitos, todos os mimos, tudo parecia um amontoado de pedidos de desculpas por algo que ele vinha fazendo.
Caminhou sem rumo predestinado em direção ao calçadão. Seus passos que antes eram leves e flutuantes, agora eram pesados, com os saltos de seus sapatos batendo retumbantes no asfalto. Passou reto pelo flautista negando seu cumprimento sorridente, deixando-o para trás com um semblante confuso, sem entender nada. Ele que se danasse, pensou Elisa, podia ser mais um desses homens cafajestes e mentirosos, estava farta dessa raça.
Aquela sensação romântica agora era apenas uma lembrança distante em sua mente. Elisa sentiu-se enganada, havia-se deixado preencher por aquele sentimento tão idiota, escapista e burro. Como pode? Caminhou em direção à praça, passou por tantas pessoas, tanta gente, tantas coisas, não viu nada. Foi o medo que bateu no seu rosto junto com o vento gélido, foi o desespero que espiralou seus cabelos ao dobrar a esquina. Elisa estava condenada.
Soube disso no momento em que sentou-se no banco daquela praça. Folhas avermelhadas caíam preguiçosamente no chão junto ao amontoado de folhas secas e quebradas, pisoteadas pelos passantes, uma criança com uma mochila de super herói passou acompanhada de sua mãe e sorriu divertida pra Elisa, pombas aglomeravam-se ao longe, bicando os restos de pão deixados por alguém, um sol de meio dia batia no seu rosto e o aquecia por inteiro, nuvens brancas carregadas de chuva nadavam em um céu cinza e pesado, trabalhadores passavam rápido, apressados e famintos em seus horários de almoço, o fluxo interminável carimbado em uma atmosfera invernal.
Estava marcada por aquele sentimento, não havia como ir embora dele ou manda-lo embora. Aquele sentimento... Sabia que não havia mais volta. Já tinha se entregado. Elisa, 22, recém formada. Agora com o acréscimo de mais uma informação em seu currículo social, estava apaixonada, louca, pirada, provando das duas faces desse sentimento odioso e lindo, como foi tola.   
Respirou fundo e firmou seus ombros em um ângulo reto, levantou o queixo, quis xingar alguém, quis parar os carros que buzinavam na sinaleira mais ao longe e gritar com todos eles, todas as pessoas do mundo, dizer que estava feliz, muito feliz, estava in love, puramente e maravilhosamente in love... Mesmo que doesse encarecidamente. Porém não o fez. Se conteve, aprumou a bolsa no ombro e marchou, como uma soldada que acabasse de receber sua missão.
Alecrim com jujubas coloridas, chá mentolado no inicio da manhã de um sábado fresco, café passado e pão de queijo às cinco da tarde, jasmim e damas da noite, água batendo nas rochas, um vento fresco. Tudo isso acaba no final.


Annabel Laurino

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Por uma luz mais bonita

A semana acabou. É nesse silêncio condoído em que me encontro agora. Apenas os latidos de alguns cães lá fora e o tilintar gostoso das teclas sendo apertadas cada vez que escrevo. É nesse emaranhado de final de dia em que meu corpo, agora cansado, agora exausto, se sobressai dentre suas veias azuis e respira, lateja, se espreguiça.
Há bagunça por toda parte, todos os lados desse quarto, minha caixinha de fósforos. As roupas jogadas, os sapatos largados num canto, na pressa de me desprender das amarras que se impõem sobre mim todos os dias quando eu saio. Embora eu diga que eu não ligo, eu ligo. Eis um segredo sobre mim, tenho olhos de gato que desafiam tuas verdades mais salientes, que lambo carinhosamente, fingindo que nada sei.
É dessa forma que tenho sobrevivido os últimos dias de junho, fugidio fôlego que vem sobre mim. Finjo que nada sei, mas as verdades estão mais do que conhecidas pela minha mente que registra tudo, em segredo.
Se o cansaço que se apodera de mim é enorme, é tão enorme também a imensa vontade de fugir daqui, mas roubaram-me os sonhos, ou matei todos eles. Assassinei meus próprios colorful dreams tão majestosamente sonhados em uma noite perfumada de verão.
Alguém disse uma vez que matar os próprios sonhos é como matar a si mesmo. Bem, sendo assim, morri uma centena de vezes nos últimos seis meses, mas continuo em pé, porque meu corpo é forte e eu sou fibra, contínuo obstante, nessa insana vontade de viver. Continuo.Porque tudo em mim é fome. 
Te compartilho essas verdades inalcançáveis e corrosivas, quanto nem mesma eu me agrado delas. Queria estar te escrevendo algo sobre finais de semana dançantes, algo elaborado, sabe? Queria te escrever algo majestosamente supimpamente emocionante, algo cheio de purpurina e flores, bem assim.
Mas eu sei, você sabe, saturno está longe e o meu tempo ainda não chegou, ainda não está na fase de abrir-se as rosas. É por esse mesmo motivo que eu continuo.
E quando chegar o momento eu irei parar? Não, eu continuarei, mas a música será outra e eu nem me lembrarei mais disso tudo. Será passado.
Em ultimas estâncias eu espero nesse exato momento que alguma coisa se acerte. Não sei o que, só sei de uma coisa, eu acredito na teoria do caos e em verdade eu afirmo, depois do caos as coisas devem pelo menos tomar seu rumo. E se não as coisas, que pelo menos eu encontre o meu próprio rumo, meu próprio caminho, que a minha estrela brilhe intensamente, sem fim.
Nas noites frias eu procuro um calor humano que não encontro no meu, mergulho nas cobertas geladas, enterro o nariz no cachecol, ligo a luminária e varro o quarto com os olhos assustados de quem ainda não conseguiu dormir, abro um livro e se não consigo me perder nas letras enfileiradas eu desisto, volto a procura do calor humano que nunca encontro e depois de um longo tempo, eu durmo.
Esse céu que não é meu um dia ainda poderá ser azul. E se não for? Que seja cheio de nuvens bonitas, feito algodão, mas que eu nunca perca o riso, que eu nunca perca essa fome, que eu nunca me esqueça do porque eu vim. Se nada disso servir, se tudo for insuficiente, eu sei, que assim como Gatsby eu verei lá longe a minha luz verde e a seguirei profundamente até os confins das páginas desse livro que não acaba, que não termina. Porque eu ainda estou aqui.


Annabel Laurino


domingo, 10 de maio de 2015

Desnuda

    Percebo o momento certo antes mesmo dele chegar por completo. É uma excitação firme, sinuosa e transparente, embora insistente. A reconheço e a deixo entrar, toda ela, por inteiro. Venha, venha. Prendo os meus cabelos no alto da cabeça com um lápis roxo brilhante e então me arremesso nesta máquina e dedilho versosamente essas letras que são poucas e ao mesmo tempo são muitas, que dizem tudo e ao mesmo nada dizem de mim. 
    Minha escrita é nua. Nua e pura. Ela não tem medo, nunca tem medo e por isso é felina. 
    Minha escrita é uma mulher de seios desnudos caminhando em meio a multidão de pessoas. 
    Minha escrita é uma mulher de seios desnudos, cabelos negros esvoaçantes, caminhando em meio a multidão de pessoas que a olham, que a vêem, que a julgam. 
    Minha escrita é uma mulher de seios desnudos e cabelos negros esvoaçantes que não tem medo e se joga. 
    Se joga na vida, no asfalto, no muro pichado dessa rua imunda que estampa a capa de um jornal, que grita no meio do trânsito a mil de uma cidade quente. Se joga, se joga. Ela pula de um prédio, ela se joga na frente de um carro, ela pula, ela se entrega. 
    Minha escrita não espera e ela é essa mulher de seios desnudos que te encara sem medo, sem dramas, sem esperar nada em troca. Porque sua arte é desvendar. 
    Desnudo. Desvendado. Desprevenido e só. Minha escrita é o cerne de uma solidão carente que aparece as cinco da manhã de um sábado triste banhado de música melodrámatica, filme ruim passando na televisão e eu imaginando Godard chorando por toda essa arte bosta que hoje em dia só multi-fabricam. Minha escrita é o cerne. Eu sou o centro. Ela não me revela. Eu a deixo ir e ela se joga. 
    Nada pode me alcançar agora. Como o sangue que flui nas minhas veias azuis, eu já fui. Fui embora desse caótico caos ensandecido de uma mente bagunçada que é onde me encontro. O segundo seguinte já passou e o agora não é mais. O agora também já se foi e eu corro, corro contra os ponteiros desse relógio que não para, que parece que não vai parar. Meu medo não é o tempo, meu medo é a minha perda. A perda de mim mesma. 
    E por isso eu fujo. Sou um reflexo estampado num espelho que já ficou para trás enquanto eu corria. Sou o reflexo que estampou nanosegundos na janela daquele prédio na esquina. Eu e o meu casaco preto esvoaçando as minhas costas. Sou a fugitiva de mim mesma, sou o coelho da Alice, mas não tenho rainha e nem rei. Eu obedeço as minhas próprias regras de conduta e por isso não permaneço. 
    Sou fugidia e escorrregadia. A minha escrita me desvenda e me descobre. E por isso a recebo. Deixo-a entrar. Ela, a minha escrita, como uma mulher de seios desnudos e cabelos negros que passa sem medo, sem se preocupar, por uma multidão de pessoas que a olham. Nunca nos olhos, mas sempre para os seus seios. Essa é a minha escrita. Veja. 
    Agora sou só eu, ela se foi. O verbo não é mais suficiente para definir a minha ação, porque estou parada, e eu sei que isso é um verbo, estar, ficar. Mas eu não me movo, não agora, apenas no segundo seguinte que será o segundo onde não estarei mais aqui. 
    Descrevendo fugidiamente, solitariamente azul e só. 



Annabel Laurino 

sexta-feira, 1 de maio de 2015

O Retorno da Cidade Caleidoscópica

    Amália retorna. O retorno de Amália. A cidade continua insana, movimentada e acessa. Ela não sabe porque e nem se deve continuar. Ela, a Amália e não a cidade. Porque de todas as formas possíveis a cidade continua, mesmo não podendo ou não querendo, ela será e continuará sendo, todos os dias, a todo gás e vapor.
   Gás e vapor, é disso que a cidade é feita. Dutos e viadutos sujos, vento quente, sinalização errada, buzinas, vozes vindas de todos os lugares, muros pichados, postes de luzes estragados, latas de lixo entupidas, a cidade é selva, gás e vapor. E ela continua.
    Amália não é selva. Não é gás e nem vapor. Então do que é que Amália é feita? É feita de tudo. O tudo, o plasma, o todo, o que está e não está. Embora eu dizendo isso seja muito diferente do que Amália diz para si mesma todos os dias em frente ao espelho. Ela diz que é feita de inverno, cores frias, cheiro de grama seca e uma pitada de sorvete de chocolate. 
    Dez da manhã de um sábado e Amália sai para caminhar pela cidade, experimentar essa coisa flâneur. Vai em direção ao mercado e começa a namorar com seus olhos imensos os discos das bandas que tanto gosta e aprecia devotamente. Mas só os namora, porque ela não tem dinheiro para compra-los e afinal, música é cara. Música boa é cara. E isso entristece Amália. Mas no fim de sua visita ao mercado Amália compra um porta jóias antigo, pequeno e que cabe na palma da sua mão e ela gosta disso, dessas coisas pequeninas e antigas. Custou dez reais apenas, vendido por uma senhora simpática que elogiou os enormes olhos de âmbar que Amália tem. 
    E ela continua. Amália e a cidade. Cada passo em perambulação que Amália da a cidade se estende, sempre em frente e voilá! Olha tudo, gosta de tudo. As calçadas charmosas, as fachadas dos prédios antigos, as pessoas apressadas, inertes, o gaiteiro numa rua estreita, as livrarias pequenas, Amália caminha e analisa tudo, numa ânsia e sede de que nada se perca, de que nada deixe de ser devidamente registrado. 
    É numa cafeteria antiga no final da rua, bem em uma esquina, que Amália se senta e pede um café. Não tão forte e com açucar, sim, como os franceses. Senta-se ao lado da enorme janela e debruçada sobre a xícara de café quente, debruça-se também sobre a vida que se passa lá fora. E registra tudo, o fluxo que não para. As pessoas vem e vão, e voltam sem sentido algum apenas com um destino desconhecido e já determinado. Regarde, regarde!
    Amália observa os senhores de cabelos brancos em aglomerado ao longo da cafeteria. Alguns tomam café, falam de política, riscam palavras cruzadas em seus jornais amassados, engraxam seus sapatos com o simpático jovem do lado de fora do estabelecimento, outros senhores movimentam seus dedos trêmulos e frios em telefones tecnológicos, outros em silêncio apenas lêem e suspiram, tiram dos bolsos de suas calças de alfaiataria caixinhas de remédios onde pescam um e engolem, e fazem como Amália, se deleitam ao que acontece lá fora.
    A cidade é sinfônica, possui seus sons particulares. Nesse âmbito caféico, Amália degusta de uma sinfonia de xícares, talheres e burburinhos de conversas que registra e que se deixa preencher. Como não fazer parte disso quando no segundo em que entrou Amália já fazia parte? Mas entrou onde? Na cafeteria ou na cidade? 
    Na mesa ao lado da sua, Amália ouve uma voz feminina cantarolar uma música que Amália conhece bem e que gosta muito, embora nos ultimos 5 meses faça questão de evitar. Nesse dia particular ela não se importa de ouvir, e por isso sorri. 
    Paga a conta e sai. No lado de fora a sinfonia selvagem da cidade continua. Elevações graves de sons que repercurtem e se distendem. Tudo é bonito, Amália pensa, essas pessoas que eu nem conheço, essas ruas que eu nem sei o nome, esses prédios onde nunca estive, esse fluxo de gente que caminha com um destino, essa brutalidade ferrenha de existir e ao mesmo tempo ser um completo desconhecido, é bonito. É bonito.
     Amália sente-se selvagem pela primeira vez, porque afinal de contas, ela faz parte. Da cidade ou da cafeteria? Não sei, mas ela faz parte.
   Engatilha os pés nas calçadas que tanto gosta, numa cidade de pedras e caminha em ruas charmosas. Caminha sem um destino, mas com a idea em mente de que deve chegar. Chegar onde? Amália não sabe. E isso não é um destino, chegar? É.
     E por isso Amália continua. 




Annabel Laurino 

     
     

terça-feira, 10 de março de 2015

Amália

    Atravessou a rua. O sinal aberto, o vento nos seus cabelos esvoaçantes, o gosto do café amargo latejando ferrenho na boca seca, o calor insuportável, o suor pingando nas curvas dos seus seios cobertos por uma blusa clara e fresca, sol das quatro latejando na pele como queimadura incessante, sem sombra, quase sem ar. Inicio de março, ninguém sabendo para onde ir, aquele caos total, a rua cheia, as pessoas mergulhadas no caótico cotidiano, a vida numa transa louca de situações momentâneas. Sem sentido, corre, corre. Amália atravessou a rua, seus seios de mulher agora em idade adulta, apontando para o futuro inovador de não saber para onde ir. Seus seios como uma marca profunda a destacando naquele mar de gente. Olhe lá, mais uma mulher atravessando a rua, mais uma mulher, uma máquina, um animal, um ser? Uma mulher. Uma mulher?
    Amália era uma moça em recente descoberta da vida. Vida, para Amália, era coisa frágil. Podia acabar a qualquer momento. Por isso Amália enxergava a vida como um objeto quebrável, sem reconciliações com seu antigo estado após a mínima queda, e por isso Amália também tinha medo de dar seus passos em vão. A vida, para Amália, deveria ser intensamente vivida, mas cuidadosamente percorrida.
     Amália observava as multicores facetadas nas pétalas das flores por onde passava, encontrava prazer no primeiro gole de sua primeira caneca de café da manhã, não dispensava um bom livro, gostava de ouvir o ruminar gostoso das páginas se esfregando uma na outra, como se contassem um segredo, após serem viradas durante a leitura, se atentava aos mínimos detalhes, achava belo a feiúra dos outros, gostava de lamber balas de mel, beber chá amargo as onze da noite e ir dormir quando amanhecia o dia, tinha medo do escuro e música boa era aquela que te fazia querer transar.
    Não tinha gato, nem cachorro e nem namorado. Passeava sozinha pelas ruas da cidade numa procura por detalhes desconhecidos, a rachadura de um prédio, a lasca profunda e corrosiva no asfalto, o feio, o tenebroso, a lata de lixo entupida, o cheiro fétido, o mendigo, as roupas feias das vitrines baratas, o amargo e o desgostoso, a sacola de lixo voando como uma borboleta numa esquina pichada, isso tudo encantava Amália. Ela não via como coisa feia, via como coisa bela, a vida como ela é. Frágil, descarada, bruta. 
    A vida bate na cara daquele que não quer ver. Ela esbofeteia, te encobre, te vira do avesso, te enche de porrada, até que numa noite boa ela te acaricia os cabelos com beijos e ternura e te fala manso que tudo vai passar, é só uma fase. Porque a vida, afinal, é cheia de fases. 
    Falar dos seios de Amália é só para demonstrar a sua forma anatômica, seu formato transparente entre formas e gêneros de se viver nessa selvageria humana, nessa cidade quente. Amália não é só seios, não é só mulher, não é só sexo feminino. Amália pensa, respira, colore e descolore o mundo inteiro em mil partículas de átomos que estão juntos. É um corpo, mas também é mais que um corpo. É fruto da mesma árvore, é grito e ponto de exclamação. Amália atravessa a rua, Amália é vida. É coração pela metade, forma tiritante e dor pulsante, Amália vive e é única. 
    Nas curvas do seus seios, num lugar dentro do peito, esconde-se um coração machucado, que ela tenta esconder. Esconde dentre a fumaça do seu cigarro que acende sem parar e os seus lábios pintados de um vermelho disfarçam as marcas dos seus dentes afiados e agudos, numa insana tentativa de segurar o choro ou o impulso de gritar e gritar sem parar nunca. Mas não, não gritava, olhava-se no espelho com freqüência e dizia a si mesma frases como "fique calma" ou "vai passar, sabes que vai passar". Mas não passava. Por isso se escondia nos livros, nos poemas, nos versos, na música, na frase solta, na letra em garrancho grafada na ultima página do seu caderno. 
    Paris hoje, ou amanhã, não sabia. Paris, quem sabe. Estava sedenta por uma vida nova em algum outro lugar, uma paisagem cheia de coisas novas para viver. Essa era Amália, sedenta por vida, sedenta por cores e coisas que nem ela sabia, mas queria tudo, uma colher farta e cheia de tudo que tivesse direito. Para Amália, viver também era fartura, quanto mais soubesse, quanto mais vivesse e vivenciasse, melhor estaria vivendo. Viver, para ela, também era abrir o pára-quedas. Viver é se jogar. 
   E ela atravessava as ruas, passando pelo sinal aberto, seus passos compassados como uma música de jazz. Se você abrir seus ouvidos Ella Fitzgerald estará cantando melodiosamente ao fundo, ouça só enquanto Amália caminha, anda por dentre a multidão. Olhando-a assim é só mais uma dentre tanta gente. Mas Amália sabe do seu eu ferido, carregado e pesado, as vezes feliz, as vezes saltitante, dias leve, dias pesado, que tem por dentro. Sem escolha, por que viver é isso também, é aceitar a lama que te espera. É aceitar que somos o que somos por que somos e não há jeito de mudar isso. Amália aceitava. Por isso atravessava o sinal sem medo, sem olhar para os lados, Amália aceitava viver. 



Annabel Laurino 

 

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Darshan

    A cena era como uma fotografia distinta, dessas em preto e branco, muito em foco, pouca luz, tudo muito claro e usual, sensual também. A luz de fora entrava como um golfo de vida, mas sem iluminar o quarto inteiro, deixando com que os cantos daquele pequeno espaço ainda não soubessem da existência da fraca e pouca luz que entrava sorrateiramente, assim como o calor daquela noite de verão entrava, sem permissão.
    O lugar era o quarto. E o quarto era o lugar. O verão insidia e batia insistentemente. E eles, as pessoas na fotografia, os corpos, eram Alice e Pedro.
    Beijavam-se os dois naquela cama perdida no centro do quarto, como se a cama fosse um barco em meio ao mar. Ele passava a mão sobre o corpo dela como se a sentisse inteira através de um único toque, como se tocar suas costelas, seu queixo, o nódulo da orelha ou a sola de seus pés incrivelmente pequenos fosse como senti-la inteira naquele pequeno e único toque e nada mais, nada mais. Mas um toque não era suficiente, por isso precisava tocá-la mais e em mais lugares e mais rápido antes que o mundo lá fora resolvesse entrar em combustão espontânea, antes que Saturno colidisse com Marte, antes que algum meteoro caísse. E ela sentia o mesmo, ali deitada ao lado dele, o corpo tão próximo que os pelos se eriçavam ao se tocar, passava sua pequenina mão por aquele rosto familiar e quente, perpassava suas perninhas pelas pernas dele e o olhava, mesmo no escuro daquele quarto, meio mar meio oceano, onde o enxergava apenas pela pouca e fraca luz.
    Você não entenderia o amor daqueles dois, nem mesmo eu ou qualquer um. Mas eles se encontraram e se perderam, um dentro da cabeça bagunçada do outro e exatamente por isso sabiam onde estavam sem se perguntarem o lugar exato o tempo inteiro. Aliás, por falar em lugares, já haviam estado naquele quarto outras vezes, se é isso que você quer saber, mas daquela vez era diferente, pois tinha gosto novo e o fundo era azul e lilás, multifacetado de lembranças alegres.
    Livros ao redor se empilhavam na estante. Uma vitrola e um disco, o disco rodando e rodando, ressoando seu som reverberante a 33rpm e a vitrola em trabalho frenético de reprodução. Havia uma máquina de escrever a espera, a espreita. Tudo era som, sabor e música, e literatura também. Tudo trabalhando incessantemente como uma reverencia aqueles dois seres, aqueles dois corpos, duas almas, encontrando-se e se perdendo naquele quarto de pouca luz.
    Alice tinha gosto de café enquanto beijava Pedro. Por isso o beijo tinha gosto de café e era, como pode-se imaginar, tão bom. E Alice estava tão bonita, os olhos piscando caleidoscopicamente naquela fraca luz, olhos de cigarras verdejantes e fugazes, sorriso alegre e infantil, mãozinhas pequenas e quentes, passeando nuas por um corpo completamente nu. Tocando-o com suas mãos sentia como se o encontrasse pela primeira vez, como se o salvasse de um naufrágio, de uma fuga, de um momento, do mundo e de tudo. Cada toque era como o primeiro toque. E tocaram-se os dois.
    Pedro já conhecia aquele corpo minusculo colado ao seu tão bem quanto saberia o caminho exato para chegar em casa, podendo faze-lo de olhos fechados e tranquilamente. Mas sempre havia algo novo a se descobrir naquele corpo pequeno e macio. Por isso passava as mãos pelos cabelos de Alice tão carinhosamente, descobria seus seios desnudos, pequenos seios brancos. Divertia-se com seu nariz, com os cílios compridos e assoprava sua orelhinha para arrepiar-lhe a nuca. Gostava da curva e o contorno de suas coxas, o leve delineio de seus quadris e a curvatura de suas nádegas como maçãs.
    Tocavam-se ao toque perfeito, descobrindo-se ambos numa dança rítmica ao som do disco e da vitrola a 33rpm, sem parar. Poderia ter chovido naquela noite, mas não choveu. Alice gostava tanto de chuva como Pedro gostava de trovões. Mas tudo bem, eles não se incomodaram com isso e por isso continuaram a se beijar, um encontrando o outro, um tocando o outro. Como tem de ser. 
    - Hum...
    - Por que parou de me beijar? – perguntou Alice, de repente. Uma voz fraca ao fundo do quarto escuro junto da música tocando, os grilos lá fora dançando e pulando, o cheiro de noite quente misturado a hortelã e dama-da-noite, refrescando o aroma pungente do ar.
    - Eu tive uma ideia súbita de algo genial e você está tão bonita que eu precisava olhar.
    - Ah, oras... – depositou-lhe um beijo no rosto quente e corado – Que ideia?
    - Eu pensei em algo para escrever.
    - Escrever agora?
    - É, agora. É tão...tão... Eu preciso colocar para fora. – Pedro levantou-se rapidamente, tão rápido que a assustou. – Preciso escrever.
    - Nossa, parece urgente.
    - E é, meu amor.
    Pedro caminhou até a sua escrivaninha e se pôs em frente a máquina, sentando-se nu na cadeira. O disco ainda girava, a música ressoava a toda pelo quarto. Alice caminhou até ele, colocando as mãozinhas em suas costas.
    - Sobre o que você vai escrever?
    - Sobre dois planetas que colidem, sobre... Um casal apaixonado beijando-se no escuro de um quarto, uma vitrola e uma fraca e pouca luz entrando de algum lugar que ninguém sabe qual é. E sobre os olhos, os olhos dos dois, café e então...
    - Essa luz será verde?
    - Verde?
    - É, como em Gatsby... A luz verde de Gastby, você sabe.
    - Não pensei nisso, meu amor, mas pode ser... ou eles são um para o outro a luz verde. Você é minha luz verde. Vem, senta aqui enquanto eu escrevo.
    Pedro aconchegou sua pequena Alice em seu colo, acendeu a pequena luminária e depois um cigarro.
    - E sobre o que mais você vai escrever sobre esses dois?
    - Ah Alice, meu amor, eu não sei. Mas a cena é clara como uma fotografia, eu preciso falar sobre.
    - Fale sobre, então. E não se esqueça de dizer que era inverno, nada de corpos suados ou calor. E fale sobre maçãs, gosto de maçãs.
    - Maçãs... Sim, também gosto de maçãs - um sorriso se desenhou em seus lábios. - Mas definitivamente a cena é clara, precisa ser verão.
    - Entendo, tudo bem. Vou mudar o disco.
    Alice se levantou. O disco foi trocado, algo como uma trilha sonora já tão reconhecida por aqueles dois começou a tocar. Pedro de sua cadeira, com seu cigarro acesso, sorriu como um vaga-lume feliz numa noite escura e densa. Alice, ao lado da vitrola, com os dedinhos carinhosos em contato com o mundo, sorriu também. E aqueles dois respiraram fundo e tão claramente que seus pulmões encheram-se de uma mista paz e coisa nova e bonita e cheia de flores e música. E era novo e era bonito e Pedro não parou de escrever até o dia pintar-se em cor lá no céu com Alice toda sonolenta ao seu lado, dividindo a over e a libido, dividindo a insana vontade de viver. 




Annabel Laurino