Alguma coisa se partiu em cacos e algo se perdeu. Depois disso, depois do baque, depois da queda lenta e fria, dura sobre o piso frio e sólido, a coisa, a coisa nunca mais foi a mesma. O sol desponta na minha cara fresca matinal, recém lavada com cheiro de sabonete, o gosto de café ainda tão forte na boca quente, o sol das oito da manhã, meu cabelo vermelho reluz forte sobre um raio morno e eu caminho firme de encontro ao ônibus, eu sigo em direção ao rumo certo sem saber que rumo eu devo pegar. O ar é rarefeito nessa cidade de pedras onde encontro sossego atrás das portas de uma livraria. Mas tudo me sufoca agora. Eu lembro de Cecília, eu me pergunto constantemente "em que espelho ficou perdida a minha face?'. E você me ronrona no ouvido quente se eu não penso em você e eu afirmo com a cabeça, sim, eu penso, eu penso em você as sete da manhã enquanto tomo o meu café forte e assisto ao noticiário, eu penso em você. Eu penso em nós? Mas nós, quem? Você brinca com os meus dedos dos pés e eu tenho vontade de afundar a cara na curva perfeita do teu ombro tão branco, de encontrar teus ossos, te raspar a pele na tua barba. Você me chama de pequenininha e eu só penso em ficar mil anos com você. Mas houve a queda, houve o baque e tudo agora é uma mistura de sol forte, cidade vazia, sons abafados e café forte as sete da manhã. Alguma coisa se perdeu. Parece que alguma coisa vai endurecendo com o tempo, é isso mesmo? Parece que tudo tem por obrigação de alguma forma... se perder. E eu penso em algum filme que não vimos, eu penso em algo que ainda não fizemos, em alguma viagem já planejada tantas vezes, planos refeitos mil vezes e lembro de tudo, desde o pequeno começo e vejo o quanto nossos rostos, agora pintados num quadro da memória, mudaram, o quanto o percurso se tornou diferente e eu me pergunto se você ainda vai continuar brincando com os dedos do meu pé, se vamos ver todos os filmes que queremos ver juntos e se essa coisa quebrada pode ser colada novamente. Dói, eu sei que dói, e é por isso que eu caminho em direção ao ônibus procurando um rumo certo as oito da manhã, com gosto de café na boca e pensando em te ligar mas não ligo. Eu quase nunca ligo, nos últimos dias eu não ligo mais. É por isso também que choro, claro que você não sabe de todas as vezes que eu choro sentindo um vazio enorme aqui dentro e uma vontade insana de desaparecer por completo, claro que não. Claro que você não tem ideia da metade das coisas que faço sem você saber. E por conta disso ando me sentindo cada vez mais só. Talvez eu tenha sido a pessoa mais doida que você conheceu desde que veio ao mundo. Não me orgulho disso. A gente não pode mesmo mudar o que foi feito para ser. A gente só pode mudar o que somos num conjunto. Mudamos. Caminho com a lembrança quente dos meus braços enlaçando teu pescoço, da minha boca encontrando a tua no escuro breu do teu quarto as duas da manhã, você pegando minha mão e dizendo que tudo ia dar certo e eu lembro de tudo e tudo dói, então eu só caminho em direção ao ônibus que agora me espera, eu me pergunto sobre o futuro, eu sinto tudo aqui dentro, eu continuo, mas eu nem sei bem por que.