Não me recordo a primeira vez que a avistei. Não, não. Agora
tudo são nuances cinzas dentro da minha massa cefálica, tudo é uma nuvem
esfumaçada do que existiu e eu não me recordo com avidez de todos os mínimos detalhes.
Por exemplo esse, de quando foi a primeira vez que a vi. Porque, bem o sabe,
poderia ser em qualquer época de minha vida, em qualquer esquina ou cruzamento,
na padaria ou no metrô e eu, bem, eu não lembro.
Mas eu me recordo muito bem quando eu a avistei de fato
pela primeira vez. Quando a reconheci de uns desses cruzamentos da vida em que
não me lembrava em meio as nuvens cinzentas e esfumaçadas de minha memória. Tão
tentadoramente ela mesma que repercutia como o som de uma mordida em uma fruta, suculenta,
deliciosa.
Fumava seu cigarro
tão distraidamente, tão perdidamente sozinha em meio a fumaça que subia sobre o alto
de seus cabelos brilhando ao sol, que podia-se até pensar que tragava a vida, ou
quem arriscaria também, que o tédio a tragava copiosamente através daquele
único cigarro.
Antes que você, leitor, queira a invejar ou sinta-se atraído, eu aviso: não o
faça. Não se atraia por aquelas pernas, por aquele tom branco condensado no
rubi de seus lábios bem desenhados, pois ela tem escondido no céu de sua boca
ferina um desejo inabalável. O desejo de te devorar.
Ah mon Cher, ela é
uma devoradora, destruidora de corações. Vai mastigar você. Vai repartir você.
Vai distroçar em mil pedaços todas suas esperanças construídas em anos, seus
sonhos filosóficos que ditou a si mesmo em frente ao espelho do banheiro todas
as manhãs, com as olheiras protuberantes de noites mal dormidas. Vai acabar com seu coração másculo e empedrado, isso não irá
existir. Sentirás vontade de cantar um mantra, de chorar, de se entregar e
depois partir. Não conseguirás. Ela plantará em ti o mais terrível dos
sentimentos, a melancolia.
Possui um riso
cômico, meio infantil é verdade, meio histérico também, mas isso se deve ao
fato de quão surpresa se sente com o ato de sorrir. Raramente sorri. É como a
Senhora Darling de Peter Pan, que escondia o beijo secretamente, assim era essa
dama, que escondia o sorriso, enviesado em meios aos lábios contornados de
vermelho, raramente os curvava, e quando o fazia parecia sempre uma mesura, por
simples educação.
Dentinhos brancos e afiados se escondem atrás de seus
lábios, fininhos e cortantes como pequeninas navalhas genuínas que vão devorar
você, mastigar suas carnes. E adorarás. Implorarás em júbilo por mais uma
mordida, por mais um corte sereno na tua pele acalorada. Pois ela te morde, mas
no fim acaba por te beijar, acaricia tua cara desmantelada de cansaço,
massageia teus ombros de pesos fartos. Ouvirá seus dramas como uma mãe, te
amará como uma santa, se entregará a ti como uma puta. Te restará apenas a
tentação. E não resistirás.
Você a acha cruel? Eu
não a acho. Falando assim, eu sei, bem que parece. Lembrando-me agora de quando a vi pela primeira vez, parada no meio
do comício de um dia cheio, tantas pessoas passando em sua volta e ela era a
única que parecia se destacar no meio daquele trânsito, daquela loucura. De
vestido branco e os cabelos assim, caindo-lhe a tez. Eu quis perguntar seu
nome, me aproximar, tocar seu rosto, saber se era real. Mas eu a conhecia bem,
pois desenvolvia em seus atos um trejeito que eu bem já sabia e a reconhecia. Não precisava de informações que eu sei, ela me mentiria. Só iria ludibriar-me para depois me mastigar como sempre e como todas. Me atrevi aos detalhes, aos fundamentos.
Você não sabe como eu sei, mas assim como a dama escondia nos
seus lábios o seu sorriso, escondia também embaixo da sua pele embebida de
branco marcas profundas de solidão. Perdida demais em ser ela mesma. Perdida
demais que repetia sempre os mesmos rituais, indo a livrarias e cafés,
conversando distraidamente com os jovens nas boutiques e cinemas, embora não se
recordasse depois dessas conversas, as esquecia de imediato. Preferia a solidão de seu
próprio ser. Ninguém entendia o porque, tinha uma inclinação ao drama, ao
romance, ao perdido e ao acaso.
Acostumou-se em ser uma marca no asfalto, uma coisa
corriqueira, um alguém, simples ninguém sem voz. Por isso a dama não possui
nome, deste eu não sei nem se quer a primeira letra. Seu rosto eu vislumbrei
apenas uma vez, que me recordo. Não me lembro se em uma avenida movimentada, em
um final de março talvez. Não era ruiva nem loira, morena muito menos. Não
defino sua idade pois poderia ser jovem, muito jovem, com aquele corpinho
pequeno e de ombros estreitinhos. Mas seu ar teatral a denunciava e parecia
mais velha, sua malícia a entregava, eu não saberia dizer.
O que me chamou a atenção naquela pobre dama? Seus olhos, ah
sim, seus olhos. Não a cor e nem a forma, mas a maneira voraz como ao mesmo
tempo distraída, devorava o mundo ao seu redor, como se buscasse entre a apatia
diária algum tipo de salvação.
E por que te conto sobre essa dama? Para que tenhas cuidado,
meu caro. Caso a encontres em meio as vielas dessas ruas noturnas, caso a
aviste nos recônditos escondidos dessa cidade de pedras. Eu mesmo não esperava,
agora convivo com a solidão da sua imagem presa na minha memória meio gasta,
estarei sempre a espera de a reencontrar, eu sei.
De toda forma, se a encontrar, cuidado. Sei que não resistirás ao vícios,
ao olhar, as pernas e nem aos cabelos perfumados de sândalo quem sabe, ou patchouli talvez. Escutarás uma música e se sentirás vivo. Te aviso. Comprarás um terno novo, será como ir a missa de domingo. Te sentirás salvo, embriagado, embebido, bêbado de ilusão.
Nunca mais a vi depois daquele dia de sábado, vestida de
solidão.
Annabel Laurino