segunda-feira, 28 de julho de 2014

Cigarra desaventurada nas entranhas da solidão

    Não me recordo a primeira vez que a avistei. Não, não. Agora tudo são nuances cinzas dentro da minha massa cefálica, tudo é uma nuvem esfumaçada do que existiu e eu não me recordo com avidez de todos os mínimos detalhes. Por exemplo esse, de quando foi a primeira vez que a vi. Porque, bem o sabe, poderia ser em qualquer época de minha vida, em qualquer esquina ou cruzamento, na padaria ou no metrô e eu, bem, eu não lembro.
    Mas eu me recordo muito bem quando eu a avistei de fato pela primeira vez. Quando a reconheci de uns desses cruzamentos da vida em que não me lembrava em meio as nuvens cinzentas e esfumaçadas de minha memória. Tão tentadoramente ela mesma que repercutia como o som de uma mordida em uma fruta, suculenta, deliciosa.
    Fumava seu cigarro tão distraidamente, tão perdidamente sozinha em meio a fumaça que subia sobre o alto de seus cabelos brilhando ao sol, que podia-se até pensar que tragava a vida, ou quem arriscaria também, que o tédio a tragava copiosamente através daquele único cigarro.
    Antes que você, leitor, queira a invejar ou sinta-se atraído, eu aviso: não o faça. Não se atraia por aquelas pernas, por aquele tom branco condensado no rubi de seus lábios bem desenhados, pois ela tem escondido no céu de sua boca ferina um desejo inabalável. O desejo de te devorar.
    Ah mon Cher, ela é uma devoradora, destruidora de corações. Vai mastigar você. Vai repartir você. Vai distroçar em mil pedaços todas suas esperanças construídas em anos, seus sonhos filosóficos que ditou a si mesmo em frente ao espelho do banheiro todas as manhãs, com as olheiras protuberantes de noites mal dormidas. Vai acabar com seu coração másculo e empedrado, isso não irá existir. Sentirás vontade de cantar um mantra, de chorar, de se entregar e depois partir. Não conseguirás. Ela plantará em ti o mais terrível dos sentimentos, a melancolia.
    Possui um riso cômico, meio infantil é verdade, meio histérico também, mas isso se deve ao fato de quão surpresa se sente com o ato de sorrir. Raramente sorri. É como a Senhora Darling de Peter Pan, que escondia o beijo secretamente, assim era essa dama, que escondia o sorriso, enviesado em meios aos lábios contornados de vermelho, raramente os curvava, e quando o fazia parecia sempre uma mesura, por simples educação.
    Dentinhos brancos e afiados se escondem atrás de seus lábios, fininhos e cortantes como pequeninas navalhas genuínas que vão devorar você, mastigar suas carnes. E adorarás. Implorarás em júbilo por mais uma mordida, por mais um corte sereno na tua pele acalorada. Pois ela te morde, mas no fim acaba por te beijar, acaricia tua cara desmantelada de cansaço, massageia teus ombros de pesos fartos. Ouvirá seus dramas como uma mãe, te amará como uma santa, se entregará a ti como uma puta. Te restará apenas a tentação. E não resistirás.
    Você a acha cruel? Eu não a acho. Falando assim, eu sei, bem que parece. Lembrando-me agora de quando a vi pela primeira vez, parada no meio do comício de um dia cheio, tantas pessoas passando em sua volta e ela era a única que parecia se destacar no meio daquele trânsito, daquela loucura. De vestido branco e os cabelos assim, caindo-lhe a tez. Eu quis perguntar seu nome, me aproximar, tocar seu rosto, saber se era real. Mas eu a conhecia bem, pois desenvolvia em seus atos um trejeito que eu bem já sabia e a reconhecia. Não precisava de informações que eu sei, ela me mentiria. Só iria ludibriar-me para depois me mastigar como sempre e como todas. Me atrevi aos detalhes, aos fundamentos. 
    Você não sabe como eu sei, mas assim como a dama escondia nos seus lábios o seu sorriso, escondia também embaixo da sua pele embebida de branco marcas profundas de solidão. Perdida demais em ser ela mesma. Perdida demais que repetia sempre os mesmos rituais, indo a livrarias e cafés, conversando distraidamente com os jovens nas boutiques e cinemas, embora não se recordasse depois dessas conversas, as esquecia de imediato. Preferia a solidão de seu próprio ser. Ninguém entendia o porque, tinha uma inclinação ao drama, ao romance, ao perdido e ao acaso.
    Acostumou-se em ser uma marca no asfalto, uma coisa corriqueira, um alguém, simples ninguém sem voz. Por isso a dama não possui nome, deste eu não sei nem se quer a primeira letra. Seu rosto eu vislumbrei apenas uma vez, que me recordo. Não me lembro se em uma avenida movimentada, em um final de março talvez. Não era ruiva nem loira, morena muito menos. Não defino sua idade pois poderia ser jovem, muito jovem, com aquele corpinho pequeno e de ombros estreitinhos. Mas seu ar teatral a denunciava e parecia mais velha, sua malícia a entregava, eu não saberia dizer.
    O que me chamou a atenção naquela pobre dama? Seus olhos, ah sim, seus olhos. Não a cor e nem a forma, mas a maneira voraz como ao mesmo tempo distraída, devorava o mundo ao seu redor, como se buscasse entre a apatia diária algum tipo de salvação.
    E por que te conto sobre essa dama? Para que tenhas cuidado, meu caro. Caso a encontres em meio as vielas dessas ruas noturnas, caso a aviste nos recônditos escondidos dessa cidade de pedras. Eu mesmo não esperava, agora convivo com a solidão da sua imagem presa na minha memória meio gasta, estarei sempre a espera de a reencontrar, eu sei.
    De toda forma, se a encontrar, cuidado. Sei que não resistirás ao vícios, ao olhar, as pernas e nem aos cabelos perfumados de sândalo quem sabe, ou patchouli talvez. Escutarás uma música e se sentirás vivo. Te aviso. Comprarás um terno novo, será como ir a missa de domingo. Te sentirás salvo, embriagado, embebido, bêbado de ilusão. 
    Nunca mais a vi depois daquele dia de sábado, vestida de solidão.




Annabel Laurino