Atravessou a rua. Quase três da tarde e o sol bateu forte em sua cara desmantelada de sono. Agitou os cabelos com as mãos e espalhou os fios ainda mais, deixando-os terrivelmente bagunçados.
Não sabia de onde havia saído toda aquela gente. Caminhavam ávidas passando umas pelas outras em tamanha rapidez e se batiam os ombros sem pedir se quer desculpa, apenas seguiam o rumo adiante para as ruas em frente. O que tanto tinham para fazer àquela hora? Sacolas de compras, contas para pagar, algumas saiam de cursos, jovens matando a aula, desempregados sem nada para fazer, não saberia o que mais dizer. Ele mesmo se pudesse não estaria ali aquela hora da tarde, se ainda conseguisse ficar sozinho e ter o poder de filtrar a sua mente que insistia em se sentir tão... Só.
Foi ai que sentiu aquele estalo. Um bem forte e que quase lhe deixou surdo. Olhou toda aquela gente, e todas aquelas moças, aqueles cabelos compridos, curtos, pernas de fora e braços e bocas e sentimentos que carregavam como bagagens para todos os lugares. Poderia se apaixonar por qualquer uma delas. Qualquer uma.
Entrou em um café e puxou uma cadeira. Café expresso, por favor. Olhou a garçonete que anotava seu pedido, bonitos lábios e rosto angelical, nova, talvez vinte, poderia se apaixonar por ela. Talvez gostassem de algumas bandas parecidas, talvez pudessem ir ao cinema e falar mal de alguns filmes e depois ficarem juntos na cama até o dia amanhecer, qualquer cama, na dela ou na sua. Poderia funcionar.
Ou não.
Cabelos encaracolados e corpo de violão lhe assaltaram a mente tão rápido quanto uma supernova explodindo no espaço distante. Sorriso de criança feliz e pés gelados, perfume gostoso de sentir e aquela risada, ah, aquela risada.
De repente a garçonete sumiu, a cafeteria desapareceu.
Já fazia tanto tempo que tudo havia acontecido. A ultima vez que a vira seus cachos que costumavam serem eletricamente felizes e dourados estavam caídos e tristes. A ultima vez que a vira ele havia ido embora e a deixado para trás em um ponto de ônibus qualquer da cidade. Não era o mesmo desde aquele dia.
Era mentira. Não conseguiria apaixonar-se por qualquer pessoa. Não naquela hora ou naquele dia ou talvez por um bom tempo. Sentia-se, como era mesmo? Substituindo. E dessa vez seria substituindo algo que fora lindo e que ainda não havia ido dormir, como deve acontecer com os sentimentos ou coisas que terminam porque morrer não, nada morre, ou simplesmente cai-se em esquecimento ou adormece dentro da gente.
Sorriso de criança e cabelos encaracolados ainda não estavam dormindo dentro de si. Tomou um gole do café que havia chegado sem que ele percebesse. Tentou admirar a garçonete de longe, tentou gostar dela e tentou se forçar a talvez um flerte, um gracejo na hora de pagar a conta e talvez a convidar para sair. Mas não seria mais possível, não por ora.
Olhou seu reflexo no vidro e se viu tão estranho. O rosto magro e com a barba por fazer, as mãos ossudas segurando a xícara e os olhos fundos, mergulhados em olheiras roxas.
Ah a vida sempre tão frágil.
Mas não foi ele mesmo que decidiu ir embora quando tudo ainda podia ser uma flor ou um jardim ou qualquer coisa linda que pudesse crescer e dar frutos? Não foi ele que virou as costas?
Sim, foi.
E mesmo assim se encontrava ali, infeliz e vazio. Um vácuo por dentro que nada daria jeito. Pensou em pegar um cinema, em se levantar da cadeira, em ir para qualquer lugar e dar um jeito na vida e fingir pelo menos por alguns segundos ser feliz, mas parecia necessitar de um esforço imenso para que conseguisse operar todas essas ações. E infelizmente, ah sim, infelizmente, sua motivação havia evaporado. Ou melhor, sido deixada para trás. Ser forte não era mais uma opção. Ser forte para quem, para que? Para os seus amigos solteiros e que desacreditavam no que poderia ser o amor? Ou para as cervejadas de sexta e o futebol de quinta quando colocava todo o seu lado homem e viril de se mostrar? Pra quem sabe então as outras mulheres ou a sua colega de trabalho do terceiro compartimento à esquerda. Não, para ninguém mais. Ser forte não era mais uma opção, não era mais possível, não era mais útil.
Depois de um longo tempo que não soube dizer quanto, a garçonete retornou a sua mesa e perguntou se poderia retirar a xícara, sim, por favor, e se talvez ele gostaria de mais alguma coisa e então pensou. A língua passou pelos cantos da boca, olhou para cima, para os olhos da moça, escuros, quase negros, negros como o café preto que havia recém tomado. E disse enfim:
- Sim, sim, eu quero sim. Eu quero uma máquina do tempo e que seja abril outra vez. Apenas abril outra vez.
Annabel Laurino