quinta-feira, 26 de junho de 2014

O Quarto

    Ao contrário desse documento branco por onde começo essas frases que te escrevo, inóspito e sem nada, aquele quarto era escuro. Da mesma forma que agora, onde esse texto toma forma, textura e cor, o quarto no escuro se acendeu pela luz comprida que entrava pelas frestas da janela. E lá estava ele e lá estava ela. Ela e ele. Poderia repetir isso mil vezes e o gosto seria como coisa doce na boca, aglutinando todo um conjunto de coisas que estão por trás, nas entrelinhas desse simples e tão grande “ele e ela”, onde a língua encontra o céu da boca duas vezes num mergulho perfeito e depois volta. É gostoso.
    Seus abençoados corpos nus beijaram-se na languidez daquela tarde de chuva. Seus corpos nus se encontraram como duas perfeitas formas estrelares que se abençoam num véu escuro e denso no universo galáctico.
    A boca dele encontrou o corpo dela. A mão dela encontrou a nudez dele. O cabelo dela se abria sobre os travesseiros como um leque loiro e ruivo, que confuso. As mãos dele eram ágeis, carinhosas, precisas. Ela não sabia se ele havia entendido, se ele enfim conseguia ver seus grandes olhos brilharem no escuro ou não, se ainda era uma incógnita. Ele arfava denso e respirava profundo. Ela não queria que ele parasse, que a mão dele se afastasse das suas pernas, que a sua barba parasse de roçar no seu ventre.
     Era uma dança bonita de duas mentes fundidas em um e dois corpos vagueando juntos sobre o colchão, sobre a colcha, sobre a pele tremida e arrepiada, sobre os pelos e os gostos, sobre os lugares antes escondidos pelas roupas agora empilhadas no chão, em desordem. Dançavam.
    Máscaras na parede, livros e mais livros por toda a estante, uma máquina de escrever e um violoncelo na parede, tudo encoberto pelo escuro do quarto.  Lugar familiar aquele, longe da cidade, longe do comício, das buzinas dos carros, dos motores dos ônibus, dos passos apressados das pessoas correndo para lugar algum. Familiar porque era um pedaço de um refugio quente e pertencente aquele corpo deitado sobre o seu, refugio parecido com o dela.
     Era como se nada mais existisse, só a respiração dele e o coraçãozinho dela, batendo e batendo naquele peito de seios desnudos e brancos. A chuva poderia ter cessado, ou não. Algum cachorro latido, o telefone tocado, a televisão ligada, o jogo passando, alguém chamado, o mundo se virado em cacos repartidos e eles não teriam percebido. As horas passando. Ela perdida na branca pele dele, nos braços dele, no calor e nos olhos profundamente escuros como um pedaço de galáxia. Nada mais estava escondido, não era como as caixas de cigarros atrás dos livros nas prateleiras, ou as palavras não ditas. Era real, palpável, firme, latente. Era aquilo e era para ser. Sabiam os dois.
     A boca dele procurava a dela e em seguida vinha aquela mordida, forte e forte. Depois virava carinho, o tesão virou um afago, tudo bem. Alinharam-se nas cobertas, sólidos e maciços, reais e instigados. Ela pensava no que recém havia lhe acontecido. Pensava na loucura diária, na aventura, na adrenalina, no desassossego do seu coração batendo forte e de repente tão calmo, tão calmo que flutuava. Deitou de bruços e respirou o ar daquele quarto fechado, respirou o cheiro da pele daquele corpo ao lado do seu, cheiro bom. Respirou os golfos de ar que a vida estava lhe dando, expirou profundo e lentamente enquanto a vida bebia de suas carnes quentes, e gostou. Sentia-se viva.

      


   Annabel Laurino