Ao contrário desse
documento branco por onde começo essas frases que te escrevo, inóspito e sem
nada, aquele quarto era escuro. Da mesma forma que agora, onde esse texto toma
forma, textura e cor, o quarto no escuro se acendeu pela luz comprida que
entrava pelas frestas da janela. E lá estava ele e lá estava ela. Ela e ele.
Poderia repetir isso mil vezes e o gosto seria como coisa doce na boca,
aglutinando todo um conjunto de coisas que estão por trás, nas entrelinhas
desse simples e tão grande “ele e ela”, onde a língua encontra o céu da boca
duas vezes num mergulho perfeito e depois volta. É gostoso.
Seus abençoados
corpos nus beijaram-se na languidez daquela tarde de chuva. Seus corpos nus se
encontraram como duas perfeitas formas estrelares que se abençoam num véu
escuro e denso no universo galáctico.
A boca dele
encontrou o corpo dela. A mão dela encontrou a nudez dele. O cabelo dela se
abria sobre os travesseiros como um leque loiro e ruivo, que confuso. As mãos
dele eram ágeis, carinhosas, precisas. Ela não sabia se ele havia entendido, se
ele enfim conseguia ver seus grandes olhos brilharem no escuro ou não, se ainda
era uma incógnita. Ele arfava denso e respirava profundo. Ela não queria que
ele parasse, que a mão dele se afastasse das suas pernas, que a sua barba
parasse de roçar no seu ventre.
Era uma dança
bonita de duas mentes fundidas em um e dois corpos vagueando juntos sobre o
colchão, sobre a colcha, sobre a pele tremida e arrepiada, sobre os pelos e os
gostos, sobre os lugares antes escondidos pelas roupas agora empilhadas no
chão, em desordem. Dançavam.
Máscaras na
parede, livros e mais livros por toda a estante, uma máquina de escrever e um violoncelo
na parede, tudo encoberto pelo escuro do quarto. Lugar familiar aquele, longe da cidade, longe
do comício, das buzinas dos carros, dos motores dos ônibus, dos passos
apressados das pessoas correndo para lugar algum. Familiar porque era um pedaço
de um refugio quente e pertencente aquele corpo deitado sobre o seu, refugio
parecido com o dela.
Era como se nada
mais existisse, só a respiração dele e o coraçãozinho dela, batendo e batendo
naquele peito de seios desnudos e brancos. A chuva poderia ter cessado, ou não.
Algum cachorro latido, o telefone tocado, a televisão ligada, o jogo passando,
alguém chamado, o mundo se virado em cacos repartidos e eles não teriam
percebido. As horas passando. Ela perdida na branca pele dele, nos braços dele,
no calor e nos olhos profundamente escuros como um pedaço de galáxia. Nada mais
estava escondido, não era como as caixas de cigarros atrás dos livros nas
prateleiras, ou as palavras não ditas. Era real, palpável, firme, latente. Era
aquilo e era para ser. Sabiam os dois.
A boca dele procurava a dela e em seguida
vinha aquela mordida, forte e forte. Depois virava carinho, o tesão virou um
afago, tudo bem. Alinharam-se nas cobertas, sólidos e maciços, reais e
instigados. Ela pensava no que recém havia lhe acontecido. Pensava na loucura
diária, na aventura, na adrenalina, no desassossego do seu coração batendo
forte e de repente tão calmo, tão calmo que flutuava. Deitou de bruços e respirou
o ar daquele quarto fechado, respirou o cheiro da pele daquele corpo ao lado do
seu, cheiro bom. Respirou os golfos de ar que a vida estava lhe dando, expirou
profundo e lentamente enquanto a vida bebia de suas carnes quentes, e gostou.
Sentia-se viva.
Annabel Laurino