sábado, 19 de abril de 2014

Eterno de mim

   Onde eu comecei e onde eu estou plantada. Penso nisso enquanto continuo parada na esquina do calçadão. Onde eu comecei e onde eu estou plantada. Enraizada. Firme com meus pés sobre as calçadas sujas de pedras desgastadas, pisoteadas no meio do tempo. E que tempo longo, num intervalo deste eu apareci. Nasci aqui e aqui fiquei, nessa cidade de pedras e cascalhos. Nessa cidade de água e cheiros. 
    Passei muito tempo fora de mim. Hoje eu sinto que estou mais dentro, mais e mais dentro de mim. Hoje eu diria que eu estou introspectiva, que eu mudei sem ter mudado, eu só deixei de me vestir de algo que as pessoas ao meu redor gostariam de ver. Eu coloquei a roupa que eu queria, eu encarei as ruas, eu me vesti de mim. 
    É sábado e um vento sobe e me encontra nessa esquina onde eu analiso o fluxo. Onde o vento assopra nos meus ouvidos e mordisca a minha pele, que reclama de frio, braços nus, despreparados. É sábado e tudo tem cheiro de inverno, de chocolate, de café, de livro velho e essa gente passa e ninguém me vê, ninguém me nota. 
    Lembro que acordei pelo inicio da tarde, muito tarde, eu pensei. Era para ter acordado cedo, enfrentado o dia, efetuado minhas tarefas de sábado, caído na minha rotina. Mas acordei tarde. Acordei procurando alguém ao meu lado, acordei tateando as cobertas quentes pelo meu corpo e procurando mãos que estivessem me tocando, mas não estavam. Um vazio de uma presença além do tocável. Eu queria que quando eu acordasse alguém estivesse me segurando, como se eu caísse na vida real depois do sono e precisasse que alguém me colocasse nos braços. "Calma, calma, essa é a vida, você só acordou, ta tudo bem, é só mais um dia."
    Não reclamo mais. Deixei de reclamar da vida, das coisas, das pessoas. Entrei numa espécie de aceitação, não que eu me conforme, mas não vejo mais motivos para reclamar, para esbravejar. Tenho entendido muito melhor o mundo a minha volta e tudo bem. Não sei se isso é bom. Talvez um dia eu me canse de algumas coisas e as abandone por decreto, sem explicação. E não sei se isso é bom.
    Vamos indo, vamos pedalando com o tempo numa estrada vã de sonhos e pensamentos sem saber o que exatamente alcançar, sem saber bem aonde estamos indo. Sem saber o que é amor, o que é a vida depois da vida ou o que é a morte depois da vida e se a morte existe ou é só um pensamento. Vamos indo sem saber se para a morte ou para a vida. E levantamos nossos braços, para passar as mãos nas folhas das árvores acima de nossas cabeças, agarrando as folhas, agarrando o que pudermos, enquanto pedalamos. 
    Onde eu comecei e onde eu flui plantada, é onde eu retorno sempre. E me convenço, e me conformo, me conheço. Onde começa e onde termina. Eu sou o inicio e o fim. Enquanto a minha eternidade durar. 




Annabel Laurino 


Quando percebi, estava olhando para as pessoas como se soubesse alguma coisa delas que nem elas mesmas sabiam. Ou então como se as transpassasse. Eram bichos brancos e sujos. Quando as transpassava, via o que tinha sido antes delas, e o que tinha sido antes delas era uma coisa sem cor nem forma, eu podia deixar meus olhos descansarem lá porque eles não se preocupavam em dar nome ou cor ou jeito a nenhuma coisa, era um branco liso e calmo. Mas esse branco liso e calmo me assustava e, quando tentava voltar atrás, começava a ver nas pessoas o que elas não sabiam de si mesmas, e isso era ainda mais terrível. O que elas não sabiam de si era tão assustador que me sentia como se tivesse violado uma sepultura fechada havia vários séculos. A maldição cairia sobre mim: ninguém me perdoaria jamais se soubesse que eu ousara.Ninguém me perdoaria se soubesse que eu sei o que elas são, o que elas eram. Caio Fernando Abreu