quarta-feira, 27 de abril de 2016

Saudação empoeirada

Saudo-o novamente por meio dessas linhas enviesadas de fé e sujeira humana. Me perdoe mais uma vez, pela minha forma breve. Já não sei o que isso pode ser, a página de um diário, uma carta, um bilhete ou apenas um rascunho que jogarei fora. Me perdoe também pelas folhas amareladas e roídas de traças, eram minhas ultimas folhas sobrando, a ânsia por te escrever foi maior do que o capricho e a delicadeza esperada.
O frio chegou nessa cidade. Forte e assolador, as temperaturas baixaram rápido, tirei todos os meus casacos guardados do fundo do roupeiro junto com as meias de lã e os cachecóis. Não sei se será assim por todo o outono e inverno. Minhas mãos estão geladas e meu nariz vermelho. Fazia muito tempo que não provava dessa sensação, depois de dias e dias de calor e céu em brasa.
Caminho pela cidade, no meu passo diletante e perdido de sempre. Não te encontro mais nas esquinas como te encontrava antes e nem nos rostos desconhecidos dos passantes que atravessam os mares de gente. Tudo mudou, a atmosfera e o cheiro das ruas mudaram. Percebo isso ao sair de um café às sete da noite, o vento beijando minha tez, fazendo voar meus cabelos para todas as direções e aquela profusão de sensações, frio, cheiro de fumaça tisnada, céu escuro, luzes de postes, motores de carros, sirenes ao longe, conversas alheias de gente que passa com pressa pra pegar o ônibus e voltar para as suas casas, lojas fechando, o dia chegando ao fim, o termômetro preso numa esfera nova e fria.
No compasso da solitude eu vou ribombando, cada vez mais só. Nua, eu atravesso a cidade. Nua, eu ultrapasso as edificações cruas de concreto negro. Foram muitos passos, meu caro amigo. Por você, eu me desfiz das minhas máscaras. Por você eu me lavei de humildade, coisa essa que eu nem sabia o nome, só pra te saber tocar. Percebo, eu em mim mesmo. O coração é meu, é quente, é duro, é coisa. Choro por dentro. Esse troço duro no peito lateja, lateja, e eu me desmancho sem som.
E o vazio? Ele me cerca. O vazio da tua tão chegada partida. Quem partirá primeiro? Somos como dois tolos, remamos no mesmo barco, em sentidos contrários. Nos extenuamos, aos sôfregos e sem fôlego, paramos à beira mar, perdemos nossos remos. Quem será o primeiro a se atirar no mar e nadar? Iremos juntos? Teremos coragem de dar braçadas contra essa maré insana que se levanta?
Não sei. Na praça eu vejo crianças com suas mochilas coloridas, doces nas mãos, correndo, os pais atrás, caminhando no passo cansado de quem teve um dia cheio de trabalho. Os vendedores estrangeiros recolhem suas mercadorias. Sorrio para um deles, que já me conhece de tantas vezes que já me viu passar por ali. Eu o cumprimento, ele me cumprimenta. Continuamos em nossas dores individuais no percurso incoerente de existir.
Ó, meu caro amigo, o que foi que aconteceu com você?
Perdoe-me pelas perguntas vagas. Essas perguntas vazias e que não possuem respostas, perdoe-me por perder a linha, ter descompassado tanto nessa valsa que era nossa, mas que agora, assim, acabou, ou acaba. Dois descompassados loucos. Você, um desculpante que não se contém, eu uma neurótica, insana.
 O que te dizer? Não sei. Nem carta isso pode ser. Mesmo assim te escrevo ainda mantendo todo o capricho numa letra de tinta negra, à mão, feita pelas minhas frias carnes.
 Não te digo mais nada. Só que sinto saudades. Oras, já me dói a sua partida que ainda não aconteceu, mas que prevejo. Sinto na pele como tempestade que se aproxima. Sinto saudades agora, prematuras. Do teu rosto e do teu cheiro. A musica ficou tocando sozinha no meio do salão, aquela valsa antiga que você e eu já conhecemos bem.
  E eu? Eu continuo, no meio da multidão. Amigo, talvez daqui um tempo você não me reconhecerá mais, serei outra, diferente. Ou deixarei de existir e me tornarei poeira. Não importa. No instante agora, eu continuo. Continuo, continuo, continuo. Nua. Sem nada. Só, como eu só sei ser.


P.s: I wish you’d never forget the look on my face when we first meet.




Annabel Laurino

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terça-feira, 19 de abril de 2016

NUVEM

Talvez eu esteja agora mais de partida do que algum dia já estive de chegada. Talvez eu não veja o que o futuro há de trazer. Entre a ressonância do existir, talvez eu não veja o que o mundo será um dia. A morte é consolação, é prêmio, sabendo que não pertenço, não sou daqui.
Embarco sozinha no meu maravilhoso silêncio em direção ao além do sentir. Só, profundamente só. Nesse quarto bagunçado, diante dessa cama desarrumada, eu me sinto diante do que pode ser alterado, ao mesmo tempo que sei, há aquilo que já não pode mais.
Dói. A minha capacidade humana persiste em insistir no erro. Mas pra que? Porque me custa compreender que nada sou e que nada tenho e que nada posso. Não posso mudar aquilo que é imutável, nem alguém que não pode ser mudado. Nem eu mesma posso, porque já sou; torta e despenteada de nascença, não consigo me consertar.
Os dias possuem um zunido sonoro triste, baixinho, escondido na camada cotidiana de acontecimentos. Mas ele está lá, esse zunido melancólico, repercutindo suas dissonâncias mansamente, se você se atentar irá ouvir, mas melhor mesmo é que não ouça, continue assim, assista a uma TV, leia uma revista, abra um bom livro, tome um café, ignore o zunido, viva num tempo incerto, viva sem a consciência de ser dentro do tempo, viva como se hoje fosse um dia e como se amanhã fosse outro dia e como se depois de amanhã virão outros dias até que dias sucessivos uns dos outros cheguem, sem nada se alterar.
Depois que reparei no zunido eu nunca mais fui a mesma. Passei a questionar tudo, a ter dores constantes no peito e a sentir a noitinha um calafrio pelo corpo todo, como se pressentindo as próximas notas dessa sonoridade dispare e triste que toca seus violinos chorosos sem que ninguém perceba.
Ah, Zé, pega da minha mão e diz pra mim que ela ainda está quente? Faz assim, se tu me mostrares que ainda vivo eu te mostro quão viva eu posso ser. Diferente disso eu desfaleço numa quietude branda de tons cinzas e cálidas memórias. Estou muito mais velha do que um dia chegarei a ser.
Zé, as nuvens são tão distantes assim ou nós que somos tão pequenos? Distantes, tu diz, distantes porque ser pequeno é uma questão relativa, nada tem a ver com tamanho. Distância sim, distância não pode ser medida dessa maneira e que maneira eu pergunto e tu diz dessa, dessa maneira empírica e forte. Eu choro dizendo que me sinto pequena quando olho para as nuvens, e tu diz que tudo bem, todo mundo se sente mesmo e que nós somos assim muito pequenos de tamanho, mas grandes em outras coisas. Eu te pergunto se posso ser grande como uma nuvem, tu diz pode, podes ser grande como uma nuvem.
Desde então eu me sinto meio nuvem. Faço café pensando que como nuvem eu tomo café e que como nuvem eu pego o ônibus e encaro os dias toda meio nuvem. Como nuvem eu dobro guardanapos coloridos, escrevo frases soltas, leio um livro. Como nuvem eu assisto um circo passando na TV e leio notícias, vejo o mundo parar. Como nuvem eu fico, fofa, toda branquinha, com as minhas outras amigas nuvens, eu me misturo e me camuflo.
Da nuvem que sou eu passei a entender que vezes eu fico meio cinza, vezes meio branca. Sumo, horas apareço. Vou indo. Papo doido esse de ser nuvem né? Mas não pretendo mudar. Mudar de papo, eu quero dizer, porque de ser nuvem eu não sei mais. Pode isso, Zé, mudar de ser nuvem? E tu diz sim, pode, que eu posso ser o que eu quiser. Se amanhã, por exemplo, eu acordar e quiser ser uma folha de álamo, eu posso, difícil mesmo vai ser me sentir folha, tu ri. Eu digo que se é uma questão de sentir, hoje eu me sinto nuvem.
Como nuvem que hoje chora. Chove, chove esmagada num céu cinza gris, tisnado, egoísta esse céu, me deixou aqui, turva nuvem branca, chorando gotas ácidas por um tempo que talvez não vá chegar.





Annabel Laurino