Alguma coisa, coisa essa que eu não sei o que, porque não
tem nome e ninguém sabe se existe ou não, se é matéria ou imaterial, essa coisa
quebrou-se. Partida em cacos, se estilhou no chão. A coisa caiu e quebrou-se.
Causando aquele som agudo de algo que se quebra, que estilhaça-se em cacos,
aquele som que quebra o silêncio, corrompe o monótono, o som de algo que impõe caos
em algo que antes era simplesmente silêncio.
Quebrou, mudou,
não é mais o mesmo. No mesmo instante em que alguém atravessava a rua, que um
cigarro era acendido, que a criança começou a chorar, que o senhor de idade
entrou no consultório médico, que o café foi servido, o jornal aberto, o
dinheiro gasto, o choro derramado, o abraço dado, o beijo proibido, a mentira
contada, a fome saciada, tudo e tudo, nada e nada. Foi por um segundo. Um
pequeno segundo. Ninguém soube de onde veio, eram tantas coisas acontecendo ao mesmo
tempo, o que é um algo sem nome caindo no chão? Nada, não tem importância.
Levantaram os ouvidos quando o barulho se fez presente onde antes era apenas
aquele silêncio, mas não se deram o trabalho de procurar os vestígios, de
analisar as provas, de ver de onde vinha aquele som de eco que repercutia após
a queda. Havia outras coisas das quais
se preocupar.
Ela foi embora e
ele nem viu quando ela foi embora. Ela
juntou todas as coisas, não as roupas, as fotos ou os livros, nem se quer se
preocupou com o casaco favorito, seu marcador de páginas ou algo qualquer, nada
desse tipo palpável, ela simplesmente juntou as coisas, os retalhos
descosturados daquela relação maltratada, pegou o que era seu por direito, o
que era dele ela deixou, não quis mais. Juntou tudo, saiu pela porta da frente.
Ele não viu. Ele ouviu sim algum som estranho soando firme naquele estranho
silêncio, mas não parecia importante, ele continuou pintando cores nas paredes
de seu mundo encantado.
Tão importante
quanto um choque drástico, um apagão, o real caos, a guerra. Aquele som mudou
tudo, aquela coisa quebrada deixou rastros de minúsculas evidências que
alteraram todo o sentido da história, da história deles. Ele nunca mais viu
aqueles pequenos pés se agitando na beirada da sua cama, aqueles pezinhos de
unhas pintadas de cor de rosa, ele nunca mais avistou aqueles cabelos
bagunçados numa manhã de domingo, nunca mais a viu passando delineador no
espelho do seu quarto, não cheirou mais o seu cheiro, nem sentiu suas coxas,
não se lembrava mais com exatidão a cor daqueles olhos, se castanhos ou quase
verdes, tanto tempo passou e alguma coisa mudou. Aqueles mesmos olhos que o olharam com
incredulidade, com repulsa, com medo, com repreensão, “por que você não ouviu
quando eu deixei a coisa cair? Eu pensei que você iria ouvir, eu pensei que
você se importasse. Por que você fez isso?”. Não houveram palavras pronunciadas,
apenas esse simples olhar que disse tudo. Pediu tudo.
Se ele tivesse
levantado do sofá para ver através da janela talvez teria visto a coisa
repartida em cacos no chão, talvez se tivesse parado por um segundo de viver
suas pinturas naquela parede colorida e ilusória ele teria visto as iminências.
Eram tão simples. Talvez ela nem tivesse ido, ela poderia ter ficado, ajudado a
reconstruir os cacos, a conviver com as rachaduras.
Através dessa
lente caleidoscópica podemos observar o mundo gigante e pequeno, pequeno e
gigante. E lá está ele caminhando por aquela praça vazia, oito horas da noite,
sentindo os ecos quase mudos de algo que se perdeu. Ele avista um corpo de um
homem sentado num banco à frente e parece perdido, ali sentado. O homem abraça o próprio
corpo, mas não parece respirar e nem se quer se move. Ele se pergunta se existe
vida ali dentro, e que tipo de vida, que coisas seriam aquelas que se passam
por dentro de alguém que se senta na praça as oito da noite e abraça o próprio
corpo, como para não sentir o peso do mundo. O peso do mundo.
Agora ele já sabe
que ela foi embora. Agora ele entende, recebeu as mensagens, entendeu os
códigos, ainda ouve os ecos, ele ainda sente a partida, a coisa quebrada. Mas
tudo bem, acontece, teve que acontecer. Aconteceu não porque ele não ouviu ou porque
ele não deu importância. Aconteceria de qualquer jeito, é assim mesmo.
Caminha entre as pessoas e pensa que a cidade
a noite é melhor que de dia. Ele ama a noite, pensa nas luzes da cidade, nas
sombras das luzes, pensa na coisa quebrada e perdida, pensa na vida e pensa nas
pessoas ainda encerradas em escritórios cobrindo o expediente, fumando seus
cigarros, bebendo os seus cafés quentes, trabalhando e vivendo. Vivendo e
trabalhando. Ou seria vivendo e perdendo? Vivendo e sentindo o eco. Vivendo e
ouvindo o eco de coisas que se quebram e ninguém se importa. Vivendo e voltando
desesperadamente ao passado, ao segundo exato, aos cacos repartidos no chão,
tentando freneticamente juntar todos eles. É em vão, é em vão. Aceitação é o
primeiro passo, vivendo e aceitando.
Talvez seja isso que
aquele homem sentado no banco da praça e abraçando o próprio corpo sentia, a
aceitação muda, a aceitação sem palavras, o fechar de olhos em consentimento, o
saber exato de que não há o que possa ser feito.
Bilhares de coisas sem nome quebram-se por dia. Ninguém ouve de fato. Todos continuam ignorando os ecos.
Bilhares de coisas sem nome quebram-se por dia. Ninguém ouve de fato. Todos continuam ignorando os ecos.
Annabel Laurino