segunda-feira, 21 de maio de 2012

.

Não ofereço perigo algum: sou quieta como folha de outono esquecida entre as páginas de um livro, sou definida e clara como o jarro com a bacia de ágata no canto do quarto - se tomada com cuidado, verto água limpa sobre as mãos para que se possa refrescar o rosto mas, se tocada por dedos bruscos, num segundo me estilhaço em cacos, me esfarelo em poeira dourada. 






Caio Fernando Abreu

;

As manhãs são boas para acordar dentro delas, beber café, espiar o tempo. Os objetos são bons de olhar para eles, sem muitos sustos, porque são o que são e também nos olham, com olhos que nada pensam. Desde que o mandei embora, para que eu pudesse enfim aprender a grande desilusão do paraíso, é assim que sinto: quase sem sentir. 





— Caio Fernando Abreu


As manhãs são boas para acordar dentro delas, beber café, espiar o tempo. Os objetos são bons de olhar para eles, sem muitos sustos, porque são o que são e também nos olham, com olhos que nada pensam. Desde que o mandei embora, para que eu pudesse enfim aprender a grande desilusão do paraíso, é assim que sinto: quase sem sentir. — Caio Fernando Abreu

Incompleto idealizado


    E eu aqui idealizando a vida. Ainda penso que toda essa idealização acaba um dia. Até o dia de eu despertar de verdade, como se houvesse por trás dessas durezas todas, dessa forma de agir macio e encarado, alguma data de validade para toda essa velhice antes da hora.
    Me surpreendo olhando no espelho, vendo um corpo, um rosto, tão jovens. Parece que faz tanto tempo que estou aqui, dentro destes. As feições do rosto e os gestos deste corpo sempre repetitivos, tão memorizados pela memória.
    As vezes, tão solitária dentro e fora. As vezes tão mais dentro do que fora e as vezes por fora, tão angustiante.
    A falta que faz um corpo ao lado durante as matizes de um dia frio, nem me fale. Fico enrolando historinhas, preenchendo lacunas com coisas bobinhas, encontros inesperados, coisas que possam acontecer e que nunca acontecem.
    Um tipo de tédio desprezível vem e me abraça por trás. Quase sempre me pergunto por que desse motivo de estar aqui. É verdade sim que me encanto por quase tudo, que as luzes e toda essa beleza da vida me chama muita a atenção, que é tentadora a esses olhos curiosos de criança pequena, agarrar em suas mãozinhas minúsculas que tudo quer pegar e entender como funciona.
    E é dessa forma que ajo com o amor, ou o que eu penso ser amor. Com relacionamentos então, só para ficar melhor. Eu acho que me interesso tanto pelas engrenagens diferentes que fico tentada a saber como funciona, mergulho de cabeça, arremesso as mangas e começo o projeto de descobrimento e então, quando descubro, eu acho tudo tão relativamente simples que vou embora. Procuro outras engrenagens para decifrar. Procurando o indecifrável, alguma surpresa, sugando da vida o que a vida dá.
    É estranho. Acho que ainda não estou pronta para qualquer coisa relativamente grande que a vida possa me lançar. Mas as vezes penso que toda essa velhice impede um pouco de ser feliz. Queria tanto agir bobinha, rir de coisas idiotas, não ler tanto, não idealizar tanto, namorar no banco de uma praça no domingo a tarde e usar o moletom do namorado achando ser a coisa mais legal do mundo.
    Mas não dá. Não consigo.
    É nesse momento que a fina linha de pensamento chega ao fim. Eu, essa prova viva de engrenagem não decifrada que me pego olhando duvidosamente todos os dias, na sede de me decifrar. De enjoar de mim mesma, de perder a graça, não sentir mais gosto algum. Porém, como esperançosa fiel que todos somos, embosco um sorriso nos lábios ao melhor estilo Monalisa e tudo bem, o dolorido do incompleto pode ser disfarçado.
    E no fim, me pergunto até quando.




Annabel Laurino.