quarta-feira, 15 de agosto de 2012

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Você vai perguntar: mas houve um erro? Bem, não sei se a palavra exata é essa, erro. Mas estava ali, tão completamente ali, você me entende? No segundo seguinte, você ia tocá-la, você ia tê-la. Era tão. Tão imediata. Tão agora. Tão já. E não era. Meu Deus, não era. Foi você que errou? Foi você que não soube fazer o movimento correto? O movimento perfeito, tinha que ser um movimento perfeito.



Caio Fernando Abreu

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    "Uma descarga elétrica, por favor! Meu coração enguiça só de ler o seu nome. Pílulas de autoestima para engolir de oito em oito segundos. Injeções de vergonha na cara. Removam aquelas noites da minha pele no grito, no tapa, na chacoalhada. Belisquem a minha burrice nove vezes, de cabeça pra baixo. Bife cru nos hematomas do meu amor próprio.
    Nossa biópsia teve diagnóstico: relação maligna. A distância se amarrando ao tempo, como último recurso de uma cura. Nós em coma por muitas semanas, para que a sanidade combatesse a fantasia que criei. A eutanásia de um amor nunca devolvido.
    Você não infecta mais a minha tranquilidade. Meus anticorpos, as recordações daqueles meses, abortando suas aproximações impulsivas e vazias. Boa notícia. Achei que morreria de você.
    Não tem mais febre no rosto, quando você chega. Não tem mas arritmia, quando você fala comigo as mesmas palavras; o mesmo discurso; a mesma mentira; o mesmo eu, eu, eu. Não tem mais pontos frouxos do coração esgarçados pelo som da sua voz turista. Não tem mais tentativa de anestesiar o desconforto com embriaguez crônica e muita mão no copo ou no bolso ou no cigarro que tentei fumar; e luz fraca, para que você não radiografasse meu amor hemorrágico. Não tem mais o seu sorriso contaminando as minhas decisões."



 Priscila Nicolielo (Texto Anticorpos que o Coração Cria; in Casal Sem Vergonha)

Sobre-viver

    Insipidamente e quase sem aviso, levanta-se sobre mim uma áurea negra, feia, cheia de escamas e espinhos e coisas virulentas e bobas, preocupadas e sujas. Interpunha sobre meus sonhos tua face que não consigo mais ver, mas enxergo bem enquanto durmo e descarrego toda a falta que sinto no que não posso ter. Vem, lá do fundo, das réstias e raspas, de dentro de mim, uma vontade bem conhecida de destruir e consumir com tudo. Qualquer relação bonita, duradoura, aconchegante, belíssima, enfim. Já leu isso antes? Para mim é mais do que familiar, por que escorre além das veias sanguíneas, pulsa forte entre a essência de mim mesma.
   Eu tentei ser correta, sei lá, agir como bem seguia o regimento da vida e continuar marchando até onde os bons fluidos levassem. Pensei que ia dar certo. Não sei, não deu antes daquela forma soberba e chata, tinha que dar agora dessa forma despreocupada e insana. E novamente não deu. Ainda continuo com os bolsos vazios, o coração pingando, encharcado de tanta mesmice desnecessária e promessas que nunca se cumprem. Não sei, mas acho mesmo é que desisto. Das pessoas, de tudo. Dessa forma minha de ser. Acho que chega aquele momento que estar dentro de si mesmo já não é mais um bom lugar para se estar. Por que fica tudo tão desconexo. Sem sentido. Em vão. Então para que? Não é mais fácil cortar tudo fora e não deixar nada do que observar uma pequena e frágil flor sobreviver esmorecida?
    Eu preferiria que vivesse, você sabe, viver continuamente e crescer, criar ramos, florescer, e depois fechar-se e abrir-se nas primaveras da vida, sempre mais e mais bonita. Diga-me, que sentido tem em somente sobreviver e nada mais prosseguir além de sugar os sulcos de ar secos dentro das vertiginosas horas de um dia que nunca acaba e que possivelmente nunca chegou a começar?

Annabel Laurino

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E enquanto eu olhava o céu limpo da cidade suja, interpunha entre nós seu primeiro muro de palavras. Confusas, atormentadas, sobre tudo e sobre nada: palavras amontoadas umas sobre as outras, como se amontoam tijolos para separar alguma coisa de outra coisa. Eu, mal sabendo que esse — que parecia seu jeito mais falso de ser — seria nas semanas seguintes seu jeito mais verdadeiro, às vezes único. 

— Caio Fernando Abreu