domingo, 10 de maio de 2015

Desnuda

    Percebo o momento certo antes mesmo dele chegar por completo. É uma excitação firme, sinuosa e transparente, embora insistente. A reconheço e a deixo entrar, toda ela, por inteiro. Venha, venha. Prendo os meus cabelos no alto da cabeça com um lápis roxo brilhante e então me arremesso nesta máquina e dedilho versosamente essas letras que são poucas e ao mesmo tempo são muitas, que dizem tudo e ao mesmo nada dizem de mim. 
    Minha escrita é nua. Nua e pura. Ela não tem medo, nunca tem medo e por isso é felina. 
    Minha escrita é uma mulher de seios desnudos caminhando em meio a multidão de pessoas. 
    Minha escrita é uma mulher de seios desnudos, cabelos negros esvoaçantes, caminhando em meio a multidão de pessoas que a olham, que a vêem, que a julgam. 
    Minha escrita é uma mulher de seios desnudos e cabelos negros esvoaçantes que não tem medo e se joga. 
    Se joga na vida, no asfalto, no muro pichado dessa rua imunda que estampa a capa de um jornal, que grita no meio do trânsito a mil de uma cidade quente. Se joga, se joga. Ela pula de um prédio, ela se joga na frente de um carro, ela pula, ela se entrega. 
    Minha escrita não espera e ela é essa mulher de seios desnudos que te encara sem medo, sem dramas, sem esperar nada em troca. Porque sua arte é desvendar. 
    Desnudo. Desvendado. Desprevenido e só. Minha escrita é o cerne de uma solidão carente que aparece as cinco da manhã de um sábado triste banhado de música melodrámatica, filme ruim passando na televisão e eu imaginando Godard chorando por toda essa arte bosta que hoje em dia só multi-fabricam. Minha escrita é o cerne. Eu sou o centro. Ela não me revela. Eu a deixo ir e ela se joga. 
    Nada pode me alcançar agora. Como o sangue que flui nas minhas veias azuis, eu já fui. Fui embora desse caótico caos ensandecido de uma mente bagunçada que é onde me encontro. O segundo seguinte já passou e o agora não é mais. O agora também já se foi e eu corro, corro contra os ponteiros desse relógio que não para, que parece que não vai parar. Meu medo não é o tempo, meu medo é a minha perda. A perda de mim mesma. 
    E por isso eu fujo. Sou um reflexo estampado num espelho que já ficou para trás enquanto eu corria. Sou o reflexo que estampou nanosegundos na janela daquele prédio na esquina. Eu e o meu casaco preto esvoaçando as minhas costas. Sou a fugitiva de mim mesma, sou o coelho da Alice, mas não tenho rainha e nem rei. Eu obedeço as minhas próprias regras de conduta e por isso não permaneço. 
    Sou fugidia e escorrregadia. A minha escrita me desvenda e me descobre. E por isso a recebo. Deixo-a entrar. Ela, a minha escrita, como uma mulher de seios desnudos e cabelos negros que passa sem medo, sem se preocupar, por uma multidão de pessoas que a olham. Nunca nos olhos, mas sempre para os seus seios. Essa é a minha escrita. Veja. 
    Agora sou só eu, ela se foi. O verbo não é mais suficiente para definir a minha ação, porque estou parada, e eu sei que isso é um verbo, estar, ficar. Mas eu não me movo, não agora, apenas no segundo seguinte que será o segundo onde não estarei mais aqui. 
    Descrevendo fugidiamente, solitariamente azul e só. 



Annabel Laurino