sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Rodoviária

    A vida é uma rodoviária.
    Percebi isso enquanto abria mais uma carteira de cigarros e olhava atenta para a mala de uma senhora sendo colocada dentro do ônibus. Pessoas, todas elas diferentes uma das outras e ao mesmo tão iguais. O que as distingue? O que nos torna iguais? O que nos faz tão parecidos e ao mesmo tempo tão... Característicos?
    O lacre é firme e por isso demoro para abrir mas logo quando consigo coloco um maço na boca e acendo. O primeiro do dia é sempre forte e por isso sinto a garganta arder levemente e depois relaxar. Torpor, é por isso que procuro. O torpor da vida, algo que silencie o barulho, que estampe o caos, que relaxe os músculos tencionados de uma noite mal dormida. 
    Um casal abraçando-se chama minha atenção enquanto livro-me das cinzas. A moça segura o rosto do rapaz enquanto tenta explicar algo, baixinho, e parece calma enquanto chora, choro de entendimento, do tipo sem soluços, daqueles de despedida tranquila com direito a regresso. Mais um ônibus chega e o rapaz apruma sua mochila nas costas e se despede dela com um beijo demorado, contido. Por fim, ele acena e entra no ônibus. Ela acena de volta e chora um pouco até ir embora, sem olhar para trás.
    Despedidas. A vida é cheia delas. Eu ainda não entendo porque elas existem. A primeira vez que tive que me despedir de algo foi de um gato que tive na infância, eu tinha 5 anos de idade e não consegui entender porque eu tinha que dar tchau para ele e ele não podia ser mais meu. Eu queria que ele fosse meu para sempre. Então com aquela idade eu fui apresentada à minha primeira despedida. Minha mãe disse que eu podia ter outros gatos, e eu tive, e depois tive que me despedir deles também. Entendi que qualquer coisa iria embora depois de algum tempo e logo eu não quis mais nenhum gato.
    Um senhor de idade termina seu cigarro e olha fixo para mim, ele pisa no maço e estala os lábios e depois apruma os óculos de aros de tartaruga. Olhar firme, olhar cheio de rugas, olhos que já viram muito, vivenciaram muita coisa, olhos de quem tem calma na alma. Ele me olha como se soubesse exatamente o que eu estou pensando, como se pudesse ler os meus pensamentos e entendesse cada minuscula forma de vida dentro de mim, eu tão simples, ali sentada com um cigarro nos lábios e metade da vida dele percorrida. Ele me entende, ele me capta, por apenas nano segundos e eu me sinto lida, como um livro deve se sentir, depois disso ele não diz mais nada e vai embora, passos lentos, sem pressa.
    Olho no relógio e são 8:15 da manhã. Não entendo nada e a mente ainda parece uma gaiola fechada tentando conter alguma coisa viva querendo se libertar. O coração parece morto, meio vivo, meio dormente. Eu cato meia duzia de olhares distraídos, gente para todo lado, gente chegando, gente indo, para algum ou de algum lugar.
    O que todas elas levam além de suas bolsas e malas? 
    Recordações, saudade, memórias, dor, ansiedade, tristeza, felicidade... Isso as torna iguais, isso me torna iguais a todos eles, a todos, por todos os lados. É o que as despedidas nos geram, é o que a vida nos torna. Esse fluxo imenso de idas e vindas todos os dias, de surpresas inacabáveis e de despedidas inesperadas nos tornam seres sucumbidos de saudade, de memórias, de lembranças. 
    Do que é que eu sinto saudade? Do que é que eu me lembro? Do que eu me despeço?
    Mais um ônibus chega, com os faróis ligados, praticamente inuteis numa manhã com o céu tão branco, cheio de luz branda. É uma tempestade que chega, vinda de longe, sabe-se lá de onde. Me vejo refletida no vidro sujo da rodoviária, os olhos turvos, feições minhas que desconheço, carrego um mundo desconhecido no peito e que ninguém vê e talvez nunca verá. Alguém passa em frente ao reflexo e por segundos eu sou só um borrão de luz refletido no vidro. Um borrão na vida, da vida. Um borrão rápido passando para algum lugar, despedindo-me talvez, ou saudando quem sabe.
    A vida é dinâminca. Cheia de saudades. 





Annabel Laurino