terça-feira, 10 de março de 2015

Amália

    Atravessou a rua. O sinal aberto, o vento nos seus cabelos esvoaçantes, o gosto do café amargo latejando ferrenho na boca seca, o calor insuportável, o suor pingando nas curvas dos seus seios cobertos por uma blusa clara e fresca, sol das quatro latejando na pele como queimadura incessante, sem sombra, quase sem ar. Inicio de março, ninguém sabendo para onde ir, aquele caos total, a rua cheia, as pessoas mergulhadas no caótico cotidiano, a vida numa transa louca de situações momentâneas. Sem sentido, corre, corre. Amália atravessou a rua, seus seios de mulher agora em idade adulta, apontando para o futuro inovador de não saber para onde ir. Seus seios como uma marca profunda a destacando naquele mar de gente. Olhe lá, mais uma mulher atravessando a rua, mais uma mulher, uma máquina, um animal, um ser? Uma mulher. Uma mulher?
    Amália era uma moça em recente descoberta da vida. Vida, para Amália, era coisa frágil. Podia acabar a qualquer momento. Por isso Amália enxergava a vida como um objeto quebrável, sem reconciliações com seu antigo estado após a mínima queda, e por isso Amália também tinha medo de dar seus passos em vão. A vida, para Amália, deveria ser intensamente vivida, mas cuidadosamente percorrida.
     Amália observava as multicores facetadas nas pétalas das flores por onde passava, encontrava prazer no primeiro gole de sua primeira caneca de café da manhã, não dispensava um bom livro, gostava de ouvir o ruminar gostoso das páginas se esfregando uma na outra, como se contassem um segredo, após serem viradas durante a leitura, se atentava aos mínimos detalhes, achava belo a feiúra dos outros, gostava de lamber balas de mel, beber chá amargo as onze da noite e ir dormir quando amanhecia o dia, tinha medo do escuro e música boa era aquela que te fazia querer transar.
    Não tinha gato, nem cachorro e nem namorado. Passeava sozinha pelas ruas da cidade numa procura por detalhes desconhecidos, a rachadura de um prédio, a lasca profunda e corrosiva no asfalto, o feio, o tenebroso, a lata de lixo entupida, o cheiro fétido, o mendigo, as roupas feias das vitrines baratas, o amargo e o desgostoso, a sacola de lixo voando como uma borboleta numa esquina pichada, isso tudo encantava Amália. Ela não via como coisa feia, via como coisa bela, a vida como ela é. Frágil, descarada, bruta. 
    A vida bate na cara daquele que não quer ver. Ela esbofeteia, te encobre, te vira do avesso, te enche de porrada, até que numa noite boa ela te acaricia os cabelos com beijos e ternura e te fala manso que tudo vai passar, é só uma fase. Porque a vida, afinal, é cheia de fases. 
    Falar dos seios de Amália é só para demonstrar a sua forma anatômica, seu formato transparente entre formas e gêneros de se viver nessa selvageria humana, nessa cidade quente. Amália não é só seios, não é só mulher, não é só sexo feminino. Amália pensa, respira, colore e descolore o mundo inteiro em mil partículas de átomos que estão juntos. É um corpo, mas também é mais que um corpo. É fruto da mesma árvore, é grito e ponto de exclamação. Amália atravessa a rua, Amália é vida. É coração pela metade, forma tiritante e dor pulsante, Amália vive e é única. 
    Nas curvas do seus seios, num lugar dentro do peito, esconde-se um coração machucado, que ela tenta esconder. Esconde dentre a fumaça do seu cigarro que acende sem parar e os seus lábios pintados de um vermelho disfarçam as marcas dos seus dentes afiados e agudos, numa insana tentativa de segurar o choro ou o impulso de gritar e gritar sem parar nunca. Mas não, não gritava, olhava-se no espelho com freqüência e dizia a si mesma frases como "fique calma" ou "vai passar, sabes que vai passar". Mas não passava. Por isso se escondia nos livros, nos poemas, nos versos, na música, na frase solta, na letra em garrancho grafada na ultima página do seu caderno. 
    Paris hoje, ou amanhã, não sabia. Paris, quem sabe. Estava sedenta por uma vida nova em algum outro lugar, uma paisagem cheia de coisas novas para viver. Essa era Amália, sedenta por vida, sedenta por cores e coisas que nem ela sabia, mas queria tudo, uma colher farta e cheia de tudo que tivesse direito. Para Amália, viver também era fartura, quanto mais soubesse, quanto mais vivesse e vivenciasse, melhor estaria vivendo. Viver, para ela, também era abrir o pára-quedas. Viver é se jogar. 
   E ela atravessava as ruas, passando pelo sinal aberto, seus passos compassados como uma música de jazz. Se você abrir seus ouvidos Ella Fitzgerald estará cantando melodiosamente ao fundo, ouça só enquanto Amália caminha, anda por dentre a multidão. Olhando-a assim é só mais uma dentre tanta gente. Mas Amália sabe do seu eu ferido, carregado e pesado, as vezes feliz, as vezes saltitante, dias leve, dias pesado, que tem por dentro. Sem escolha, por que viver é isso também, é aceitar a lama que te espera. É aceitar que somos o que somos por que somos e não há jeito de mudar isso. Amália aceitava. Por isso atravessava o sinal sem medo, sem olhar para os lados, Amália aceitava viver. 



Annabel Laurino