sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Darshan

    A cena era como uma fotografia distinta, dessas em preto e branco, muito em foco, pouca luz, tudo muito claro e usual, sensual também. A luz de fora entrava como um golfo de vida, mas sem iluminar o quarto inteiro, deixando com que os cantos daquele pequeno espaço ainda não soubessem da existência da fraca e pouca luz que entrava sorrateiramente, assim como o calor daquela noite de verão entrava, sem permissão.
    O lugar era o quarto. E o quarto era o lugar. O verão insidia e batia insistentemente. E eles, as pessoas na fotografia, os corpos, eram Alice e Pedro.
    Beijavam-se os dois naquela cama perdida no centro do quarto, como se a cama fosse um barco em meio ao mar. Ele passava a mão sobre o corpo dela como se a sentisse inteira através de um único toque, como se tocar suas costelas, seu queixo, o nódulo da orelha ou a sola de seus pés incrivelmente pequenos fosse como senti-la inteira naquele pequeno e único toque e nada mais, nada mais. Mas um toque não era suficiente, por isso precisava tocá-la mais e em mais lugares e mais rápido antes que o mundo lá fora resolvesse entrar em combustão espontânea, antes que Saturno colidisse com Marte, antes que algum meteoro caísse. E ela sentia o mesmo, ali deitada ao lado dele, o corpo tão próximo que os pelos se eriçavam ao se tocar, passava sua pequenina mão por aquele rosto familiar e quente, perpassava suas perninhas pelas pernas dele e o olhava, mesmo no escuro daquele quarto, meio mar meio oceano, onde o enxergava apenas pela pouca e fraca luz.
    Você não entenderia o amor daqueles dois, nem mesmo eu ou qualquer um. Mas eles se encontraram e se perderam, um dentro da cabeça bagunçada do outro e exatamente por isso sabiam onde estavam sem se perguntarem o lugar exato o tempo inteiro. Aliás, por falar em lugares, já haviam estado naquele quarto outras vezes, se é isso que você quer saber, mas daquela vez era diferente, pois tinha gosto novo e o fundo era azul e lilás, multifacetado de lembranças alegres.
    Livros ao redor se empilhavam na estante. Uma vitrola e um disco, o disco rodando e rodando, ressoando seu som reverberante a 33rpm e a vitrola em trabalho frenético de reprodução. Havia uma máquina de escrever a espera, a espreita. Tudo era som, sabor e música, e literatura também. Tudo trabalhando incessantemente como uma reverencia aqueles dois seres, aqueles dois corpos, duas almas, encontrando-se e se perdendo naquele quarto de pouca luz.
    Alice tinha gosto de café enquanto beijava Pedro. Por isso o beijo tinha gosto de café e era, como pode-se imaginar, tão bom. E Alice estava tão bonita, os olhos piscando caleidoscopicamente naquela fraca luz, olhos de cigarras verdejantes e fugazes, sorriso alegre e infantil, mãozinhas pequenas e quentes, passeando nuas por um corpo completamente nu. Tocando-o com suas mãos sentia como se o encontrasse pela primeira vez, como se o salvasse de um naufrágio, de uma fuga, de um momento, do mundo e de tudo. Cada toque era como o primeiro toque. E tocaram-se os dois.
    Pedro já conhecia aquele corpo minusculo colado ao seu tão bem quanto saberia o caminho exato para chegar em casa, podendo faze-lo de olhos fechados e tranquilamente. Mas sempre havia algo novo a se descobrir naquele corpo pequeno e macio. Por isso passava as mãos pelos cabelos de Alice tão carinhosamente, descobria seus seios desnudos, pequenos seios brancos. Divertia-se com seu nariz, com os cílios compridos e assoprava sua orelhinha para arrepiar-lhe a nuca. Gostava da curva e o contorno de suas coxas, o leve delineio de seus quadris e a curvatura de suas nádegas como maçãs.
    Tocavam-se ao toque perfeito, descobrindo-se ambos numa dança rítmica ao som do disco e da vitrola a 33rpm, sem parar. Poderia ter chovido naquela noite, mas não choveu. Alice gostava tanto de chuva como Pedro gostava de trovões. Mas tudo bem, eles não se incomodaram com isso e por isso continuaram a se beijar, um encontrando o outro, um tocando o outro. Como tem de ser. 
    - Hum...
    - Por que parou de me beijar? – perguntou Alice, de repente. Uma voz fraca ao fundo do quarto escuro junto da música tocando, os grilos lá fora dançando e pulando, o cheiro de noite quente misturado a hortelã e dama-da-noite, refrescando o aroma pungente do ar.
    - Eu tive uma ideia súbita de algo genial e você está tão bonita que eu precisava olhar.
    - Ah, oras... – depositou-lhe um beijo no rosto quente e corado – Que ideia?
    - Eu pensei em algo para escrever.
    - Escrever agora?
    - É, agora. É tão...tão... Eu preciso colocar para fora. – Pedro levantou-se rapidamente, tão rápido que a assustou. – Preciso escrever.
    - Nossa, parece urgente.
    - E é, meu amor.
    Pedro caminhou até a sua escrivaninha e se pôs em frente a máquina, sentando-se nu na cadeira. O disco ainda girava, a música ressoava a toda pelo quarto. Alice caminhou até ele, colocando as mãozinhas em suas costas.
    - Sobre o que você vai escrever?
    - Sobre dois planetas que colidem, sobre... Um casal apaixonado beijando-se no escuro de um quarto, uma vitrola e uma fraca e pouca luz entrando de algum lugar que ninguém sabe qual é. E sobre os olhos, os olhos dos dois, café e então...
    - Essa luz será verde?
    - Verde?
    - É, como em Gatsby... A luz verde de Gastby, você sabe.
    - Não pensei nisso, meu amor, mas pode ser... ou eles são um para o outro a luz verde. Você é minha luz verde. Vem, senta aqui enquanto eu escrevo.
    Pedro aconchegou sua pequena Alice em seu colo, acendeu a pequena luminária e depois um cigarro.
    - E sobre o que mais você vai escrever sobre esses dois?
    - Ah Alice, meu amor, eu não sei. Mas a cena é clara como uma fotografia, eu preciso falar sobre.
    - Fale sobre, então. E não se esqueça de dizer que era inverno, nada de corpos suados ou calor. E fale sobre maçãs, gosto de maçãs.
    - Maçãs... Sim, também gosto de maçãs - um sorriso se desenhou em seus lábios. - Mas definitivamente a cena é clara, precisa ser verão.
    - Entendo, tudo bem. Vou mudar o disco.
    Alice se levantou. O disco foi trocado, algo como uma trilha sonora já tão reconhecida por aqueles dois começou a tocar. Pedro de sua cadeira, com seu cigarro acesso, sorriu como um vaga-lume feliz numa noite escura e densa. Alice, ao lado da vitrola, com os dedinhos carinhosos em contato com o mundo, sorriu também. E aqueles dois respiraram fundo e tão claramente que seus pulmões encheram-se de uma mista paz e coisa nova e bonita e cheia de flores e música. E era novo e era bonito e Pedro não parou de escrever até o dia pintar-se em cor lá no céu com Alice toda sonolenta ao seu lado, dividindo a over e a libido, dividindo a insana vontade de viver. 




Annabel Laurino