segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Diagnóstico

    - Você tem certeza? Você olhou direito? Porque eu desconfio que você deixou alguma coisa passar.
    - Não, eu tenho certeza. Está tudo correto aqui.
    - Não é possível, não é possível! Você nem se quer me examinou direito. Olhe mais uma vez!
    - Receio que não será necessário, uma vez que já estou com seu diagnóstico em mãos. Sendo assim, eu tenho certeza, não há nada de errado.
    - Olha, veja bem, preste a atenção. Eu acordei hoje cedo, bem cedo, sete da manhã por aí, e lavei o rosto, coloquei a cafeteira para passar um café, abri as janelas, essas coisas matinais. Depois acendi um cigarro e fumei, devagar, com sono ainda, colocando as cinzas no cinzeiro, aquele cinzeiro me incomodou por um tempo enquanto eu o olhava, sabe, de ferro batido com pedras coladas nele, não lembrava de ter comprado aquela porcaria em nenhuma feira hippie em que lembro de ter estado. Mas mesmo assim bebi meu café, comi um pão e fui para a janela do meu apartamento. E foi então que eu senti uma dor bem forte no peito, pensei que tinha levado um tiro. Uma bala perdida, pensei. Corri para o espelho do quarto e não vi nada. Nada. E depois me deitei, com dor ainda, procurei o telefone, fechei os olhos. Pensei 'bem, deve ser isso, a morte chega para todos'. Mas foi quando fechei os olhos que eu me senti esquisita sabe, vazia. E a dor passou e eu não senti mais nada. Nada.
    - Hum, sim, eu entendo. Claro, claro. Bem, pode ter sido uma dor muscular, um mal jeito sabe. Essas coisas.
    - Doutor, ou o senhor entende que eu nunca senti isso na minha vida antes e analise novamente o meu diagnóstico ou eu lhe enfio esse estetoscópio no...
    - Olha minha senhora, acalme-se. Não é necessário tudo isso. Bem, como queira.
    O homem com o jaleco branco se inclinou sob sua paciente, alta, magra, cabelos castanhos ondulados e bagunçados. Para uma paciente que insitia em um problema não existente, ela parecia ótima. Ergueu as mãos enluvadas e tratou de examiná-la durante algum tempo. 
    - E então doutor, encontrou algo?
    - Hum, não exatamente.
    - Não exatamente?
    - Minha senhora...
    - Senhora não, senhorita.
    - Senhorita, como seja... Você tem sofrido de problemas emocionais?
    - Emocionais?
    -Sim, você sabe, problemas com o coração. Término de namoros, morte de mãe, pai, cachorro e o papagaio. 
    - Ninguém da minha família morreu..
    -...
    - Ah bem, há um mês atrás talvez, eu tenha tido alguns desentendimentos.
    - Sei.
    - Mas eu apaguei tudo da minha cabeça sabe, e estou bem.
    - Apagou tudo?
    - É, esqueci, fiz um tratamento. 
    - Hum, sei.
    - É.
    - E está bem agora? Você disse que o cinzeiro lhe incomodou...
    - Ah bem, as vezes parece que me lembro, as vezes parece que esqueço, mas quando eu lembro que eu esqueci eu lembro de me lembrar e isso é confuso e então eu finjo que esqueço. As vezes eu encontro algo perdido por ai e me lembro de algo que nem sei se me lembro direito. Acho que o cinzeiro foi algo assim. Algo dele. - disse a paciente pronunciando a ultima palavra como se pronunciasse algo secreto de mais para ser ouvido pelas paredes.
    - Acho que entendi.
    - E dói.
    - Dói?
    - Sim, algumas memórias voltam e dói um pouco, sabe, as vezes.
    - Ah, sim. 
    - E o meu diagnóstico?
    - Bem, eu acho que você mesma chegou a conclusão correta, dores emocionais.
    - Dores emocionais?
    - Sim, você deve ter tido um reflexo de uma memória, algo doloroso.
    [silêncio]
    - E... E é só isso? O senhor não achou mais nada no meu cérebro ou coração?
    - Não, mais nada. Parece tudo limpo. Talvez, eventualmente você sinta alguma dor, devido aos flashes de lembranças, mas isso vai passar, quando isso acontecer apenas se sente e beba uma água.
    - Certo. Só isso?
    - Só isso.
    - E... E mais nada?
    - Mais nada. 
    - Bem, esse é o meu problema.
    - Nada?
    - Nada. Tudo limpo.
    - Limpo demais?
    - Limpo demais.






Annabel Laurino

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

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“Era malcriada demais, revoltada demais, embora depois caísse em si e pedisse desculpas.”


Clarice Lispector

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Só mais uma página

    Tanta coisa se foi menina. Tanta coisa voou do seu diário, páginas que ficaram bolorentas pelo tempo, desgastadas, ruídas pelas traças. Outras, em branco. Daquele tipo de página que você poderia ter escrito, mas não. Nada. Apenas um silêncio contido diante do papel sem uso. Em branco.
    Tanta coisa meu amor que deixou de ser e agora já não é mais. Fica só aí, nas linhas retas e monótonas do seu diário escondido. Coisas bobas, memórias, acontecimentos passados. Porque tudo é passado, até mesmo esses papéis com letra rabiscada as pressas, na euforia de escrever novas e mais novas coisas, de preencher as folhas avidamente, com sucesso, com amor, carinho, como uma criança feliz. Hoje, me aconteceu algo... E assim por diante. 
    A onda do tempo vem e nos arrasta para longe, tão longe ficamos da praia. A arrebentação nos empurra, nos coloca contra os ponteiros do relógio numa luta sem fim. Como nadar contra a corrente, como diria um velho pensador. 
    Lá estão suas páginas, preenchidas, seus dias de inverno, suas tardes de café quente, seus amores enfeitados com uma tinta de caneta colorida, dado codinomes para que ninguém além de você pudesse saber. É como um segredo bom que só você carrega no peito, ninguém precisa entender, ninguém irá entender. Essas coisas de gente grande a gente só finge que não acontece, a gente enfeita a vida para que fique mais bonita, mais aceita, mais florida. 
    Como jogar purpurina para o alto e ver as partículas coloridas e brilhantes fosforescerem no alto da sua cabeça, assopra, assopra. Elas caem sobre seus cabelos, a luz bate nos seus cílios agora cobertos de pó brilhante e você acredita quase que por um fio que a vida é como uma purpurina lilás.
    O hoje, amanhã já será passado. Já terá passado.
    No seu diário secreto que guarda embaixo da cama terão outras páginas a serem preenchidas, que você irá escrever num lusco fusco de uma tarde de verão perfumada. Tomando chá gelado na varanda, sentada sobre uma rede, o cabelo preso num coque bagunçado, você pensará mil vezes que a vida é mágica. Você aprendeu a esquecer os cortes lentos que já levou. Tirará o gosto doce.
    E o gosto doce esse sempre virá. Mesmo que as vezes não se perceba. Te surpreenderás que mesmo depois do choro você aprenderá de novo e de novo e novamente e vai conseguir tirar seu próprio coelho branco da cartola. Ou o que quiser tirar lá de dentro. Você pode escolher, a vida é sua. 
    Ah menina, se tudo fosse fácil, essas palavras não existiriam. Se tudo fosse belo e não assim tão frágil, as palavras não existiriam. O seu diário secreto perfurado de codinomes nas entrelinhas também não existiria. É preciso sempre disfarçar um pouco para que não doa.
    E assim nós vamos indo, nadando contra a corrente só para exercitar. Um dia a gente aprende, ou não, quem sabe. 
    Buscando o gosto bom que tudo isso pode ter, esquecendo, lembrando, anotando, dançando numa musica louca, cantando até encontrar a rouquidão da garganta seca. 
    We are infinite. 
    E essa é só mais uma página. 






Annabel laurino 


Ma perché scrivo? È l’unico mio conforto. by Silvia Sala on Flickr.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

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     Ela é uma moça de poses delicadas, sorrisos discretos e olhar misterioso. Ela tem cara de menina mimada, um quê de esquisitice, uma sensibilidade de flor, um jeito encantado de ser, um toquede intuição e um tom de doçura. Ela reflete lilás, um brilho de estrela, uma inquietude, uma solidão de artista e um ar sensato de cientista. Ela é intensa e tem mania de sentir por completo, de amar por completo e de ser por completo. Dentro dela tem um coração bobo, que é sempre capaz de amar e de acreditar outra vez. Ela tem aquele gosto doce de menina romântica e aquele gosto ácido de mulher moderna.



Caio Fernando Abreu

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Ao toque de mim

   Flagro a mim mesma dentro de mim, espiando-me. Olhe bem, junto comigo, porque agora eu deixo. Venha, pode entrar. Sinta-se a vontade, óh caro expectador e intruso. Entre e sirva-se de uma xícara de chá de hortelã, sente-se sobre o puf azul marinho e permita-se vislumbrar a mim mesma, dentro de mim. Porque agora, eu te permito. 
    Eis então, eu mesma, não eu cá como me conhecesses, eu presa nesta forma física que caminha, corre, fala, gesticula e se esconde fácil. Não o meu eu de óculos grande e mãos pequenas. Mas Eu, como não podias ver antes até que fosses convidado a entrar e te sentar comigo a ver então eu mesma por dentro de mim, aquela que ninguém conhece, aquela que está aqui mas ao mesmo tempo não está. Aquela que vos fala.
    Na minha imensidão de mim mesma penso constantemente o quanto, bem, o quanto o mundo é gigante. O universo é infinito. Os cosmos são perfeitos, as nuvens, incontáveis e estrelas são brilhantes. O mundo da voltas, todos os dias, o dia inteiro. Enquanto volta e meia um carro quebra, seu cabelo é lavado, alguém morre, você pega o ônibus, bebês nascem e mais bebês são feitos, a vida é dinâmica e nunca para, o universo não para, o mundo não para, o tempo não para. 
     Foi assim que num frenesi sem fim a imensidão das coisas se tornou evidente de uma forma unica nunca vista por mim, pois diminuiu ainda mais as pequenas coisas insignificantes, que são dadas muito valor. 
    E desta forma, foi assim, que agora, como podes ver, meu caro expectador, as paredes de onde você se encontra foram pintadas, veja, azuis. Sim, e não só isso, as janelas também. Por sua vez, os rodapés. E todos os móveis foram mudados de lugar, alguns incensos foram acessos, as roupas dobradas, veja, e os livros na estante foram reorganizados de uma forma mais elegante, mais convidativa aos olhos. Como você pode perceber, sim, tudo mudou dentro de mim mesma, dentro de mim. As coisas alteraram-se, muitas delas, foram recicladas, refeitas. Pensamentos antes impensáveis, hoje, são conclusões bem resolvidas, que tiro de letra. Mágoas, tristezas, essas coisas mais que prefiro nem comentar, bom, elas foram colocadas fora, não precisava mais daquilo tudo. 
     Bilhetes, cartas, fotos e cartões de Natal coloquei fogo em todos, não precisava mais daquilo tudo, a memória é um bom lugar para se guardar coisas e se ela já estava tão congestionada imagina minhas gavetas como não deveriam de estar. 
     O mundo particular de mim mesma dentro de mim se alterou por toda sua forma, cor, exuberância, essência, maneira de ser. Mudei-me no momento em que me permiti sentir ao toque. Que me permiti recomeçar. 
     O meu mundo não parou por nem um instante, e assim, enquanto um copo caia no chão, enquanto uma musica era tocada, um cão latia ou uma comida era preparada numa manhã de domingo, eu me refazia em pedaços, como se me construísse novamente para que eu voltasse a caber dentro de mim.
    Veja, você que foi convidado para entrar, veja com os seus próprios olhos, até onde eles lhe permitem enxergar. Ou se não, sinta como fluo, sinta como eu falo, sinta apenas. 
     É no toque que nos encontramos.




Annabel Laurino

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

sábado, 7 de dezembro de 2013

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“O destino normal do leitor fanático é se transformar num escritor.”


Rubem Fonseca 

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

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“Que você me guarde na memória, mais do que nas fotos. E que, até o último dia da sua vida, você espalhe delicadamente a nossa história, para poucos ouvintes, como se ela tivesse sido a mais bela história de amor da sua vida. E que uma parte de você acredite que ela foi, de fato, a mais bela história de amor da sua vida. Quero que você nunca mais deixe de pensar em mim.”


Tati Bernardi

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

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Não posso descansar da viagem: beberei 
A vida até a ultima gota; todo tempo gozei 
Imenso, sofri imenso, tanto com aqueles
Que me amaram, como sozinho; em terra e quando
Por correntes arrastadas as Híades chuvosas
Agitavam o mar sombrio: tornei-me um nome...




(O Chamado do Cuco - Robert Galbraith)