sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Saudade Parisiense

    Isso não é Paris, eu bem que o sei. Abro as janelas do meu quarto e vejo o céu quase escurecido lá fora, vislumbro a cor amarronzada, com pinceladas de um vermelho quente e o negrume que toma conta agora de todas as árvores do quintal. Não é Paris, mas é algo bom e fico contente, gosto do que vejo, gosto desse lugar, dessa cidade de pedras e água. Gosto do ar que finalmente entra pelo quarto, esse ar gelado e perfumado que agosto trás, esse agosto que recém chegou. Dentro das formas e nuances perdidas lá fora, no mundo que tange através da janela do meu quarto, dessa caixinha azul por onde me perco e me encontro, eu gosto de imaginar que mesmo não sendo Paris, Hemingway tinha razão quando disse que onde estava, no seu quarto, produziria suas palavras sinceras, verdadeiras. Faço isso agora, dou vida as frases perdidas no fundo da minha cabeça congestionada de divagações e sou sincera. Tenho que ser.
    Ontem mesmo, por acaso ou coincidência, tive uma conversa que há muito tempo reservei apenas para as minhas próprias introspecções. E se não habitamos casas e nem lugares e nem cidades e nem países e sim pessoas? E se não importa nada disso, esses tijolos fabricados, essas argamassas endurecidas e essas paredes levantadas para nos abrigarmos se não existíssemos tão fielmente e tão verdadeiramente, de alguma forma, dentro de alguém? O que habita em mim? Eu habito assim em alguém? Pergunto-me isso enquanto vejo a luz refletida de uma janela vizinha acesa e a televisão acendendo e apagando enquanto alguém troca de canal. Eu sei quem habita em mim, eu sei o que habita em mim, ‘tenho em mim todos os sonhos do mundo’. E onde me faço morada?
    É sexta feira e eu nem acredito. Se eu contasse que alguns dias atrás tudo parecia um caos completo. Não que agora tudo esteja completamente bem, mas as coisas caóticas tende por entrarem no eixo de alguma maneira, e acho que é isso, as coisas estão entrando no eixo. Não quero ser esperançosa, não, eu só quero pensar que tudo está bem, que tudo pode ficar bem. Não é como se eu acreditasse nisso, é só que eu quero pensar nisso.
    Você pode me perguntar, e qual é a diferença? Por que você não quer acreditar, por que você não quer ter esperanças? Eu já tive tantas. Tantas esperanças, fragmentadas e profundas, por muito tempo foram minhas balinhas coloridas de açúcar. Hoje eu prefiro só pensar, pensar que tudo pode ficar bem e o que tiver que ser vai ser, não importa. Eu prefiro dessa forma e é assim que tem sido, é assim que tem funcionado.
    Meu som favorito, sempre tem sido desde então, é o da cafeteira gorgolejando, aquele ronco produzindo o melhor aroma do mundo, o de café recém-passado. Agora não que esse não seja mais o meu som favorito, mas possuo outros para a minha coleção, outros sons e aromas favoritos.
    Tenho descoberto pequenos prazeres da vida, pequeninos e pequenos grandes. Caminho pela cidade, compro discos de queijo na livraria do centro, vejo rostos e pessoas, pessoas e seus rostos cansados, ouço as buzinas desesperadas e vejo o desespero em olhos demasiado tristes. Há uma beleza nisso, mesmo que quase melancólica, mesmo que seja loucura admirar a tristeza assim, nos olhos de outrem. Mas não estou mais só, divido qualquer coisa como um sorriso, uma música, uma conversa, as minhas próprias mãos e eu inteira. Se isso me assusta? Muitíssimo. Muitíssimo e latentemente. Ignoro, continuo. A vida é um frenesi sem fim de abocanhar e morder as coisas mais doces, mais gostosas. Como receber beijos e flores azuis.
    Nos dias de chuva eu pulo poças d’água dispostas nas calçadas, me escondo embaixo de um guarda-chuva, vezes compartilhado, vezes sozinha, agora mais do que nunca, sempre compartilhado. Vejo as folhas secas chafurdando na lama, os jovens perdidos de botas compridas tentando desviar dos ônibus ensandecidos e em movimento, sinto frio nas faces geladas e escondo o pescoço no meu cachecol. Como diria o Caio, “na ultima sexta feira eu tive certeza, devo mesmo estar enlouquecendo”. Nas sextas feiras eu deixo para sentir saudade, chafurdo nas águas desconhecidas da qual vou adentrando, com medo, e por isso penso que enlouqueço, mas por gosto porque eu quero e porque eu sei, eu me sinto viva. Nessas saudades eu coloco uma musica para tocar, sento na janela do quarto, vejo o céu de inverno, penso, repenso e trespenso, e repito quase baixinho “Não é Paris, mas podia ser.”.
     Escrevi um bilhete recentemente, o começo tem por inicio algo assim “Nas reentrâncias das minhas entrelinhas misteriosas, tu me descobristes só, fizestes do meu tédio cotidiano o teu tédio também, me vestistes das tuas cores e experimentasses do meu mundo. Se mesclados numa singela mistura ambos os dois, veremos que nos enamoramos bem...”. Não irei contar como prossegue, mas a pouco eu o terminei e sorri ao final.
    Sexta feira. Não é Paris. Sexta feira agasalhada de saudade junto desse céu que agora, no fim dessas palavras já se veste de negro. Ah, sexta feira. Agosto. Quanta coisa mudou de um ano para cá, quanta coisa, quanta coisa já não existe mais e hoje são apenas borrões e lapsos de memória empoeirados num lugar distante dentro de mim. Hoje tudo faz sentido, hoje, nessa sexta feira de saudade, eu penso em rosas azuis, em coisas novas.
    Me vejo não mais refletida nos reflexos de um espelho onde deixei minha face, não. Me vejo pululando, repercutindo e respirando através de cada palavra que escrevo, cada ponto, cada vírgula, cada linha enviesada e cruzada em si mesma numa reentrância mista de sentimentos que não escondo, que não demonstro, que conto baixinho, assim, só para dizer no ouvido quente de quem procuro “Gosto tanto de você.”.
                                                                                                                  

Annabel laurino



ô, Ana


Mallu Magalhães