quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Uma formiga brilhante, apenas


    Demorei muito para escrever sobre um assunto pessoal como esse. O que é estranho, já que muitas vezes escrever sobre sentimentos não se torna tão pessoal assim, ao contrário de quando se trata de opiniões particulares.
    Algumas pessoas dizem que quando você escreve sobre algo de que gosta ou de que tem um apreço importante, não flui de uma maneira boa, fica pessoal demais e etc.
    De toda forma, isso não é um artigo sobre como levar uma vida saudável, não é algo que você vá ler na matéria daquela revista sentado na sala de espera do consultório dentário e nem se trata de uma reportagem de um programa da tarde. É um relato intimo que eu considero de todas as formas, importante. Eu poderia ter escrito sobre isso antes, inúmeras vezes pensei em fazê-lo, mas sempre faltava argumentos, falta de criatividade para a iniciação e por fim, tornou-se um assunto intocado e restritamente guardado no fundo da gaveta.
    Até agora.
    Quando eu tinha oito anos de idade eu almoçava todos os dias da semana com os meus avós. Eu saia da escola, que era muito perto da casa dos meus avós e ia almoçar com eles. Era rotina. Minha avó me ensinava sobre animais, ela tinha um grande e imenso amor por gatos, cachorros, aves e todas as espécies existentes. E eu adorava. Não era tão criança quanto também não possuía maturidade, e achava magnífico aprender sobre animais, sobre a vida que eles tinham em suas selvas, seus pastos, fazendas, países distantes.
    Nós tínhamos uma empregada que preparava o almoço. Maria era o nome dela. A Maria não cozinhava lá grandes coisas, diga-se de passagem que eu não gostava da comida dela, mas era a empregada de família a muitos anos, meus avós gostavam dela. Dizia meu avô que Maria preparava carnes como ninguém, um frango assado e uma chuleta então, nem se fala. Minha avó comia também. E eu, comia o que era posto ao prato, comia a carne sem reclamar, todos comiam.
    Mas isso ficava na minha cabeça de uma forma muito infantil. A forma como nós nos questionamos sobre o mundo quando somos crianças e automaticamente começamos a pensar mais adultos, sobre coisas que não são mais tão de crianças assim.
    Minha avó levantava da mesa, após o almoço e ia para a sala, se sentar e vezes fazia crochê, vezes ela tricotava, e eu sentava sempre ao seu lado, vendo suas mãos enrugadas e branquinhas trabalharem de nó em nó em cada ponto que laçava, era então os momentos em que começavam suas histórias.
    Ela dizia amar os animais.
    Criei sobre minha avó uma pessoa amável, respeitável. Ela dizia que os amava. Mas os comia deliberadamente sem pestanejar.
    Comecei a achar isso estranho.
    Sempre ouve carnes e mais carnes em minha casa, na casa dos meus avós e dos meus outros avós. Um churrasquinho de domingo aqui, um asado ali e assim a coisa ia. Eu comia a carne, era obrigada, assim como toda criança com pais com costumes tipicamente “naturais”.
    Aos 15 anos eu tomei uma iniciativa. Parei de comer carne. Foi uma atitude sem muita indagação, eu não precisava mais pensar sobre, eu já havia me decidido. Para mim, um pedaço de boi era equivalente ao pedaço de uma carne de cachorro, os cachorros que eu tanto amava. Me tornei vegetariana.
    Milhares de amigos e parentes questionaram a decisão. Rolou muita conversa, pedido de explicação. Gente não entendendo a tal chamada ‘palhaçada’. Foi dado o nome na família de ‘frescura, bobagem, coisinha de menina’. Mas não era nada disso.
    Li muitas coisas, artigos, reportagens, livros. Tudo me fazendo fundamentar mais ainda a ideia de que tudo que eu estava fazendo era correto, para mim, uma atitude nobre, a minha mais simples maneira de fazer da minha atitude uma ajuda ao planeta que eu vivo. Uma esperança, um pontinho de luz do tamanho de uma formiga na imensidão de um breu horrendo. Mas era minha forma de fazer algo.
    Animais são irracionais. Algo corretíssimo, claro. Afinal isso se dá porque não possuem o dom da fala, a nossa fala humana e... fim. Fim? Sim, fim. Eles transmitem sons que automaticamente são sons de comunicação, a nossa comunicação para eles deve tanto ser a mesma deles para nós, uma barulhada sem sentido. Eles ouvem, possuem sentidos aguçados, eles sentem dor, medo, frio, sono, fome e todas as necessidades que possuímos. Se locomovem, respiram, comem. E o mais igualitário de todos, eles tem coração. Eles tem, por mais diferente, estranho, por mais que a ideia seja unicamente e no mais audaciosa, sentimentos. Eles tem sentimentos.
    Como a mãe elefante que cuida de seus filhotes, que os banha e os alimenta, a mãe leoa que se preocupa com sua cria buscando comida, arriscando sua vida entre outros predadores para que os seus não morram. Como o panda que abraça forte seus filhotinhos e os protege contra o frio, os aquecendo rente ao peito.
    Me tornar vegetariana não foi um protesto, não foi uma causa levantada. Foi um gesto de solenidade ao meu mais profundo respeito aos animais, aos bichos, a todos. Aos elefantes do Quênia que são mortos cruelmente apenas para terem suas presas arrancadas com crueldade, sendo vendidas, uma vida em troca de um valor. Meu total respeito aos leões marinhos, aos tubarões que são mortos não pela carne, mas pelo valor de suas peles no uso de ferramentas japonesas, aos cachorros de todas as espécies que são tidos presos em feiras publicas com suas carnes à venda para comercialização. Aos pinguins que são prejudicados pelos fortes fluxos de petróleo, aos ursos caçados por suas peles sedosas e macias para que pessoas como nós, tidas como racionais, possa-as vesti-las em frente ao espelho, pelo desfrute da vaidade, apenas. Meu singelo e profundo respeito às aves caçadas e empalhadas, colocadas em estantes para a decoração de casas, aos patos mortos, aos gansos e galinhas, aos porcos, e todos os animais do mundo.
    É minha forma, minha maneira um tanto inútil, um tanto esperançosa de transmitir um bocado de consciência, de paz em meio às letras, as palavras. As desculpas do consumo de carne são sempre as mesmas, errôneas e sem justificativas aprofundadas, trata-se, dizem eles da “lei natural’, “somos feitos carnívoros desde a idade média”, e com tanta evolução tecnológica eu vejo o ser humano cada vez mais burro, mais ignorante, sem sentimentos.
    A imagem de um golfinho aconchegando-se ao corpo de um humano para passar sua cabeça em um pedido de afago, de carinho, de atenção, parece tão puramente ingênuo, tão inocente e lindo, que eu penso as vezes que a ciência esqueceu-se de estudar a evolução com clareza. Os animais estão cada vez mais próximos da paz, da socialização digna de admiração. E nós? Continuamos a nos destruir.
    Isso não é um alerta, não é algo com o intuito de fazer alguém mudar sua vida e se tornar agora um vegetariano. Não trata-se do que você é ou do que você faz, mas os motivos, o porque, isso é a sua essência. E essa é o pedaço de minha essência, o meu mais profundo amor e respeito por aqueles tidos como irracionais, tidos como sem importância, quando pouco, me ensinam muito.


Annabel Laurino



Contra-partida


Regresso ao ponto de embarque. Regresso sempre ao ponto de partida. Regresso simplesmente. Na vontade que aperta com um nó, o peito. Na vontade que aperta com força, o desejo. Eu regresso. Faço barulho das malas sendo despencadas na tua porta, caídas das minhas mãos pequenas. Te espero na varanda. Eu regresso. Entre uma briga e outra, entre um gole de um café quente, entre o blues que toca no rádio, o disparate dos teus olhos nervosos, da mordida do lábio meu que treme, das tuas mãos suadas e firmes, tão grandes. O verão assoma pelas janelas, as vidraças transparentes. Te vejo grande, impotente, e eu, regressando as tuas histórias, tuas palavras minúsculas, teus acentos esquecidos, tuas virgulas mal usadas. Mas. Eu volto sempre.



Annabel Laurino