domingo, 24 de junho de 2012

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Então a vida era quase sempre a mesma. Uns casos de amor aqui e acolá. Nada surtia mais efeito. Como vacina de gotinha para quem já havia furado o braço de lado a lado. Como arranhar o braço para quem já havia quebrado a perna. Tudo repetitivo, um script inteiro decorado. Sabia as falas. Sabia o fim. Não se surpreendia. Olhava em volta e até mesmo as cinzas de um final de domingo eram as mesmas. Repousada na cama quente, um livro aberto no meio das pernas grossas, um café ao lado e se perguntando por que a vida não tomava jeito de lhe surpreender. Criticava-se constantemente e procurava elogios para receber. Seus amores platônicos sofriam porque não sabia ser platônica. Sua sorte não recobrava-a de lucros porque ela não sabia ter sorte, adivinhava constantemente o futuro. Não sabia viver. Era chato. Tudo parecia vago. Até esses pensamentos meio que bifurcados, sempre aos finais de domingo, repousada na cama do quarto tentando saber o que fazer assim que o dia acabasse. Ou o novo dia começasse. Enfim.

Annabel Laurino.

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     E novamente eu penso que não tem nada aqui. Não tem nada nas páginas da internet abertas esboçando seu perfil. Não há nada nas fotos antigas. Nada nas musicas que escutávamos. Que intitulávamos como nossas. Nas frases do Caio Fernando Abreu para que eu possa me segurar, nada nas roupas, nenhum cheiro seu. Nada na carta, nos bilhetes. Nada nos livros nas prateleiras. Não há nada em lugar algum. A não ser a saudade, que ainda esmaga forte no peito como milhares de apunhaladas que doem de verdade. Eu passei dias chorando sem saber que estava chorando, só agora, transbordando em lágrimas quentes eu sei que chorei de verdade, durante dias, e nem sabia.
    É difícil saber, mas dói todo esse afastamento, essa coisa de se fazer de durona, puxar as próprias rédeas e não se permitir estender a mão para te tocar. Como uma criança levando um tapa na mão por querer o doce, não toque no doce, alerta a mãe. E eu sofro como uma criança, por que eu não entendo essa proibição. Quando irei entender?
    Sou eu mesma que me proíbo. Nos proíbo. Só para não me doer, te doer, me arder.
    Mas me doou mesmo assim.
    É difícil olhar suas fotos e não entender por que eu ainda gosto tanto de você.
    Gosto mesmo?
    Não sei.
    Mas se dói tanto, difícil achar que não.
    Quando alguém te faz sentir tantas coisas assim, esmagadoras, vorazes, é difícil achar, mesmo que por um segundo, que é mera bobagem.
    Sem mover um músculo, eu não me movo na minha divagação solitária, faço cara de paisagem, choro baixinho, caminho até a cama e me escondo embaixo das cobertas. O coração? Um cactos retorcido, aspinhaçado, cheio de espinhos, de buracos verdes, queimaduras do sol, um vegetal dolorido. Chorando pela proibição do sentir.

Annabel Laurino.

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Não sei como me defender dessa ternura que cresce escondido e, de repente, salta para fora de mim, querendo atingir todo mundo. Tão inesperada quanto a vontade de ferir, e com o mesmo ímpeto, a mesma densidade. Mas é mais frustrante. Sempre encontro a quem magoar com uma palavra ou um gesto. Mas nunca alguém que eu possa acariciar os cabelos, apertar a mão ou deitar a cabeça no ombro. Sempre o mesmo círculo vicioso: da solidão nasce a ternura, da ternura frustrada a agressão, e da agressividade torna a surgir a solidão. Todos os dias o ciclo se repete, às vezes com mais rapidez, outras mais lentamente. E eu me pergunto se viver não será essa espécie de ciranda de sentimentos que se sucedem e se sucedem e deixam  sempre sede no fim. 




 Caio Fernando Abreu

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Talvez ele tenha ido embora, talvez volte, talvez tenha morrido. Não sei. A minha cabeça estala. Eu não suporto mais. Espalhei os retratos em cima da mesa.  Fiquei olhando. Despetalei devagar a margarida até não restar mais que o miolo granuloso.  O sexto retrato é um cadáver. Acho que sei por que ele não veio. O barulho da chuva é o mesmo de seus passos esmagando folhas que não existiam. 
Flor é abismo, repeti. 
Flor e abismo.




Caio Fernando Abreu