sábado, 14 de abril de 2012

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E depois que aqueles dias estranhos foram embora, um eu antigo e nebuloso juntou suas roupas velhas em uma mala esfarrapada e também se dignou por ir. Bateu a porta em silêncio absoluto e partiu. Desde então, além de mais luz e mais som, a casa parece mais firme e limpa, vezes chove um pouco aqui dentro, mas tudo bem, natural, tudo estável, mais feliz, mais leve. Desde aqueles dias em que o eu antigo me abandonou e eu nova e recente cheguei para ficar, tudo parece mais lindo, mais simples, sempre tão mais bonito e cristalino. Brilhante, eu diria.


Annabel Laurino

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Porque as mãos dele eram quentes sobre aquelas mãozinhas dela, tão pequeninas e gélidas. Porque o corpo dele era tão grande perto do corpinho pequenino dela. Porque quando ele a olhava havia aquela doçura candente e brilhante. Porque quando ele a beijava, era um beijo doce e delicado. Porque quando suas mãos pousavam na cintura dela eram sempre tão sigilosas e cuidadosas, subindo por suas costas, protetoras. Porque quando ele sorria era capaz de arrancar os maiores pesares de dentro do coração dela, fazia-a sentir nova, como se todas aquelas coisas feias e terríveis, e todos os bichos papões de dentro do armário e as bruxas feias com seus narizes envergados houvessem evaporado do ar. Ele a fazia sentir de uma forma nunca sentida antes. Porque quando ela olhava para ele, com aquele jeito todo altruísta, doce, forte e protetor, aquela maneira responsável e tão – Deus do céu! – homem de ser, ela realmente o via em seu futuro, ela realmente o via segurando sua mão em todos os momentos que futuramente poderiam passar juntos. Não havia duvidas sobre isso. Porque, simplesmente, era ele. Simples assim.


Annabel Laurino.




Custa, chega, não cansa, descansa

Se você quer saber, é claro que custa muito até você entender realmente. E custa. Custa tempo, olhos inchados, pensamentos vazios e as vezes transbordantes. Custa insonia, ou até sono demais - como desculpa para os dias ferinos que nos engolem aos poucos e o único jeito é dormir - custa tudo, nariz inchado, olhos pequenos, lenços de papel jogados pelo quarto e uma Mata Amazônica inteira desmatada. Claro, vem logo o custo da culpa. Custa ansiedade, chutes e socos no travesseiro, ursos de pelúcia tragicamente mortos e descabeçados, textos escritos com frenética e devoção para logo, excluídos sem a menor piedade. Custa tudo irmão. Custa. Mas depois de todo esse custo, você realmente entende tudo que deveria entender e nada mais faz sentido. Sim, nem mesmo entendendo a coisa faz um sentido completo. Porque dai você percebe que não teve razão todo o trabalho que teve esperando o entendimento vir. E assim, você só aprende que é mais fácil sentar num banquinho e esperar. Esperar a coisa vir é mais fácil do que buscar ela em toda esse martilho cansativo. Você sabe, um dia, cedo ou tarde, não tem diferença, você entende.




Annabel Laurino.

Chafurdando naquela caneca negra e brilhante de ponteiros tardios e flutuantes


    Mais uma daquelas noites em que se passa em claro. As pálpebras relutantes, cansadas e arroxeadas, suplicantes por nem que sejam trinta minutos de um tranqüilo descanso. O café posto ao lado, fumegante. As mãos tamborilando aflitas no teclado e uma solidão indefesa e raquítica, como um filhote de rato recém nascido e abandonado.
    São nessas horas da noite, quando o frio se faz intenso sobre o corpo sozinho, quando não há mão alguma para repor por cima da minha ou um braço sobre meus ombros desfalecidos e cansados, são nessas horas de dispersa atenção do mundo que reflito sem nada mais refletir.
    Fico um tanto só nesses pensamentos cristalinos. Brotam como gotículas de chuva encarapitando-se na soleira de uma janela ou decaindo da ponta fininha e delicada da pétala de uma flor. São pensamentos que me trazem saudade, pois conseqüentemente me trazem lembranças. Vezes esses pensamentos nascem como idéias, com questões introspectivas e paralelos múltiplos sobre o que ser e não ser.
     Não faz sentido, eu sei. Mas é como se uma parte minha me obrigasse a todo instante a pelo menos me entregar a mim mesma a esses momentos que vem tão raramente e se debruçam sobre mim.
    Queria escrever uma musica ou pintar um quadro, tirar fotografias, registrar uma arte, fazer algo que talvez expressasse todo esse sentimento acumulado que trasborda desde o medo a solidão e depois retorna a saudade.
    Queria não me sentir assim tão só, e literalmente só, nessa hora da madrugada. A companhia se faz apenas pelo som dos dedos trabalhando freneticamente no teclado, o arrastar dos lábios sugando a bebida na caneca quente, e alguns grilos do lado de fora da janela do quarto.
     Tudo parece tão imenso.
     Estou vestindo um moleton gigante que cobre meu corpo inteiro, desde os braços por completo até os joelhos. Não é meu, claramente. E traz nele um cheirinho tão bom. Vesti-o na esperança de não me sentir mais assim, tão só.
     Sei lá, talvez sejam essas duvidas todas que não consigo – e não tem jeito de conseguir – transparecer e expressar, de alguma forma que não ferisse a ninguém. Tais como todos os meus pensamentos conclusivos. E esses tão vorazes já até me tiraram quem eu mais queria por perto.
     Acho que não tem jeito. A maneira é terminar afogada nessa caneca de café, minha boa dose de companhia e chafurdar na cama, ler um pouco, escutar uma musica que faça algum sentido e dormir, ou não dormir e ver o dia rarear com o sol límpido nascendo lá longe e então fingir que depois de tendo dormido posso começar um dia que na verdade nem terminou, para mim.
    Concluo que essa solidão não é domável. Que só sentindo-a posso desfazer-me dela.
    E veja. Só sentindo, sentindo-me só, posso desfazer-me dela.


Annabel Laurino.