sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Caleidoscópica - Parte 2 de A Arte da Contemplação

   Acordo num solavanco. Abro os olhos. É instintivo. 
   Foi um sonho ou foi uma lembrança, não sei ao certo distinguir mas o rosto familiar estava lá e acordo agora com os olhos abertos de surpresa, pavor, medo, doloridas lembranças que nunca existiram mas me assolam forte. A cama quente e o corpo suado, procuro o copo d'água que está sempre ao lado da cama e bebo a água, quase engasgo e depois deito novamente e na procura para não me sentir mais só eu procuro a mim mesma dentro do emaranhado de cobertas e abraço qualquer coisa minha, como meu estomago, minhas pernas, acalmo meus braços e digo "está tudo bem, foi só um sonho.".
    Acordar é sempre tão difícil. Acordar depois que ele foi embora é sempre tão... Difícil. 
    Não foi só um sonho, eu sei que não foi. Duas noites seguidas com o mesmo rosto familiar, os mesmos lugares estranhos, a cidade acessa numa confusão. A beautiful Mess. É a minha mente me tratando como refém e eu nunca descanso, nem mesmo quando acordo, como agora. As lembranças do que sonhei ficam em mim durante todo o dia, se pelo menos elas acabassem quando o sonho termina e eu só sentisse a injeção delas durante e não sendo forçada a senti-las até mesmo depois.
    Saio da cama e calço os sapatos, visto uma camisa grande, aquela camisa grande de flanela vermelha que era dele e que foi esquecida por aqui, esquecida como tudo nesse apartamento, inclusive eu. 
    Quinta-feira. Quinta-feira são dias ruins, vai ver é isso. Anoto mentalmente. Quinta-feira são dias do mal.
    E é aqui que me encontro agora, te escrevendo palavras a solta desde que me tornei lucida após meus sonhos congestionados, esvaziando a cabeça, acalmando o peito. Sei que você não se importa que eu te diga tudo isso, você é meu amigo e não como todos os outros. Eu sei que você me ouve e me consola, você vai entender. Não dirá nada, mas ponderadamente vai me dizer que foi um sonho e que a vida é aqui e agora, tudo bem, está tudo bem.
    Sou desconfiada e me pergunto, está mesmo? Está mesmo tudo bem? É normal isso depois de tanto tempo? Se eu ligasse para minha mãe agora mesmo ela diria que eu preciso de um chá quente e talvez um paracetamol, uma dose de sol, estou muito branca, que estou sofrendo de uma crise depressiva só preciso aceitar que a vida é dinâmica, tudo se encaixará. Ah esses psicoterapeutas e suas soluções de fast-food. Já estou transbordando de soluções. Preciso de efetivas.
     Então escolho o mais sensato a se fazer e a abro a janela, a unica janela do meu minusculo lar, a de frente para a cama e deixo o ar entrar. Pego um pão e faço uma torrada e depois faço um café e sinto que a vida vai começar ou que pelo menos o dia vai começar. Mas o dia já começou faz algumas horas, já é à tarde e eu sinto mais uma vez que estou atrasada para tudo. Que eles são mais rápidos do que a minha lerdeza para digerir a vida.
     Tudo bem, amanhã é sexta-feira, amanhã eu acordo cedo, vou a feira, compro comida para o gato, limpo a casa, levo as roupas para lavar e quem sabe gasto algum dinheiro naquelas rapadinhas que me prometem a sorte grande de ganhar uma bolada de trezentos mil reais. Vai ver pode ser uma sexta-feira interessante.
     Caminho pelo espaço, desvio das caixas, as caixas com o nome dele e que ainda não entreguei. Não entreguei e nem ao menos sei quando irei entregar. Não importa. Nada mais tem tanta importância assim, é por isso que não entrego. Deixo estar.
     Faço cafuné no Camafeu, o gato. Ele não liga muito e continua a ficar deitado preguiçosamente na soleira da janela, sua atividade mais importante do dia enquanto fica observando o aquário de peixes do vizinho em exposição na janela. Pelo menos ele é atento aos seus sonhos. Gato esperto.
     Então eu entro no meu paradigma. Bem, sair então. Pego a bolsa, cato as chaves dentro de uma tigela de cereal esquecida por cima da mesa e encontro cinco reais dentro de um jeans abandonado no sofá, um jeans que não é meu. E saio, desço as escadas, abro a porta e lá está a rua e todas as pessoas. Alguém me cumprimenta, retribuo com um aceno com a cabeça, não presto a atenção. Acendo um cigarro. Caminho e caminho, a bolsa dependurada no ombro, é como nadar num oceano sem fim e não ter uma direção que eu possa seguir, eu só vou indo e vou deixando ser levada. Passo por lojas, pessoas, farmácias, placas de construções, pedreiros, é um barulho sem descanso, britadeiras à todo escândalo e senhores de idade reclamando na fila do banco.
     Eu não me prendo aos pontos de exclamações a minha volta, as coisas gritantes como o que as pessoas estão vestindo hoje, qual é a ultima tendência, veja só aquele casal gay atravessando a rua ou 'o que é aquilo no rosto daquele cara, uma tatuagem?'. Me perco é nos detalhes, nas chaminés das casas, nos prédios e arranha-céus, nas buzinas, nas conversas ao telefone, nas fumaças de cigarro, as xícaras de café abandonadas nos botecos do centro, os feirantes com suas solas de sapato gastos. Eu sou uma intrusa, eu me interrompo no meio. Eu os observo e ele nem notam, estão aflitos em sobreviver à mais um dia de vida, de rotina pura, de gritante e desesperada fome de mais um dia. 
     Chego até ao cais da cidade e me sento perto do mar. Tem cheiro de peixe porque alguns pescadores cortam e vendem seus pescados de manhã, o cheiro é fresco e se mescla com a tarde de sol baixo e a maresia. É confortante e olhando para o lado vejo que não sou só eu que penso isso, há outras pessoas por aqui, grupos de adolescentes e garotos com um violão desafinado. Fumo enquanto penso e não esqueço de nada, a cabeça é como filtro onde mantenho viva todas as memórias de um tempo que deixou de existir. Hoje é dia de melancolia, percebo.
     Me deixo ser levada para o passado como naturalmente sou levada a cair no sono ou a piscar os olhos, ações naturais de mim mesma, mas que não doem, não machucam como essa faz. E lá está ele com a garrafa de cerveja na mão me dizendo que iria embora, que o sonho tinha acabado. Foi naquele momento que passei a odiá-lo? Não, não, eu lembro que já o odiava antes, mas antes sempre era amor mais do que ódio e por isso durava, claro que durava. Dessa vez foi só ódio, foi só eu mesma gritando para que ele fosse embora e levasse consigo tudo que era dele. Ele não levou e uma semana depois eu ainda usava sua camisa de flanelas e colocava para tocar a mesma musica. 
     Não sinto ódio até hoje. E isso já faz seis meses.
     É entendiante ser tão só as vezes, porque nesses momentos de raiva ou de pura melancolia eu queria confessar para alguém que tudo é uma merda do caramba e que sim, todos nós somos solitários, que precisamos de algo a mais e por não encontrarmos nós nos apaixonamos, bebemos, fumamos, temos filhos e sei lá, morremos sem lembrarmos porque estivemos ou o que nos faz ou fez feliz. É nessas horas que eu queria admitir que vezenquando eu tenho vontade de chorar.
     Desisto do drama. Levanto e saio caminhando e vejo uma pichação na base de um lampião do cais. "Estão todos surdos.". É a coisa mais inteligente que li hoje e por isso fico lendo a frase repetidas vezes. Concluo que estou surda também. Estamos todos surdos. É profundo e eu quero abraçar quem deixou essa marca por aqui. Pego a máquina de dentro da bolsa e registro o que vejo. 
     Se você ainda está lendo isso você pode adivinhar para onde eu vou agora. Está certo, eu vou para aquele lugar. Eu vou me sentir mais caleidoscópica do que nunca lá, no topo. Registrar mentalmente as transmutações inervosas de um mundo decadente. Surdo.
    Chego perto do prédio, é velho, é feio. Abro o portão e cumprimento um grupo de moradores que já me conhecem, o cheiro de meia velha é forte. Subo as escadas, passo por roupas secando em portas abertas, cenas que me corrompem, flashs de vidas esquecidas. Todos aqui são tão intrusos quanto eu. 
     Piso no ultimo degrau, no 75° degrau, quase sem folêgo, retomo a compostura e como se com sede caminho até a porta em pedaços, já aberta. Entro como um gato entraria por uma fresta de uma casa a noite e vou para a janela, horário perfeito, um sol brilhando ao fundo me cumprimenta. 
      Não faço ideia de por onde ele deve estar a essa hora da tarde, no trabalho, na faculdade, em outro país, em outra cama, com a nova namorada, beijando a ela como beijava a mim e depois dizendo pra ela que nunca foi tão bom como dizia que nunca tinha sido tão bom comigo. Imagino tudo isso num frenesi, minha cabeça parece que vai rachar. Gasto oito horas do meu dia pensando nisso e quando percebo já se passaram mais 8 e assim vou indo. 
      No prédio à frente do meu as janelas estão todas abertas. Uma em especial possui um individuo que me observa e sua fumaça de cigarro espirala pelo ar como uma chaminé, e sei em silêncio que ele esperava por mim. Não sei se ele sorri ou se parece sério, mas ele não sorriria, ele não é do tipo de pessoa com sorriso fácil, por isso eu sei que ele só está me olhando. No pescoço eu consigo ver sua tatuagem negra e então ele levanta a mão e me acena. 
     Encerro meus registros e acendo outro cigarro. A vida numa mutação assídua lá fora enquanto me visto neutra, aqui dentro. Por quando tempo posso me esconder? Por quanto tempo posso fingir que o barco não irá virar? Por quanto tempo até você me descobrir?


 



Annabel Laurino