quarta-feira, 6 de julho de 2011

Cicatriz

    Um brilho. Pequeno, muito pequeno, mas é nítido mesmo assim. Ele sai da pontinha redonda e achatada da sua caneta dourada refletindo na luz acima de sua cabeça e dançando no ar denso e quente e remotamente limpo. Que coisa engraçada! Eu nem o conheço.
    Mas seus olhos me olham assim e eu sorrio.
    Que coisa pare de fazer isso, eu penso.
    Eu não iria embora, se não precisasse ir.
    Mas eu preciso.
    Sua pele é branca, quase cinza, seus olhos são castanhos claros quase verdes. Suas mãos são compridas, brancas e gélidas e eu me pergunto por que você rói as unhas, por que seu cabelo é tão bagunçado e se a cicatriz no lado esquerdo de seu pescoço é seu único defeito.
    Não é uma cicatriz grande, é pequena, branca da cor de sua pele e ela nem parece uma cicatriz, parece uma distorção na sua pele perfeita, como se alguém houvesse lhe beliscado forte e puxado a pele para cima até marcar.
    E você me olha.
    Meus olhos estão marcados pelos seus.
    E agora nós dois fomos marcados por alguma coisa. Minha cicatriz é invisível. Branca e reluzente, apesar de que ninguém possa vê-la. É uma idéia apenas, compartilhada da lembrança de te ver.
    E eu guardo aqui.

 
Annabel Laurino.




Todo mundo tem.

    Todo mundo tem medo de alguma coisa. Todo mundo, eu também.
    A pergunta espiralasse no ar, assim: “O que, que eu to fazendo?”
    Enquanto eu lambo delicadamente a ponta da colher suja de sopa instantânea de frango, ainda quente por que fora recém tirada da tigela, e fico olhando o filme em preto e branco passando no canal de filmes antigos e vendo aquelas cenas tão remotamente vividas mesmo pela falta de cor penso que as coisas estavam indo bem, eu estava indo bem... Mas...
    Há algo em mim, algum caminho suntuoso e singelo, secreto que nem mesmo eu conheço que diz “venha” quando eu já não posso mais resistir, me impedindo de caminhar até o ponto certo do modo mais fácil.
    Eu tenho medo só de pensar em estragar com tudo, sabe como é, perder as chances quando elas estiverem bem na minha mão. Daí, dez anos depois eu vou me tornar uma idiota amargurada parada na fila da padaria fumando um cigarro barato que amarela até os últimos fios de cabelo, vestindo uma calça de abrigo suja há semanas e um moletom de magas puídas esfarrapado e sujo de manteiga com a frente escrita “você sabe que me ama”, gritando com as pessoas e odiando a mim própria por ter sido estúpida e não ter feito as coisas certas enquanto ainda tinha tempo de fazê-las. Até mesmo a menção do pensamento em escrito faz a idéia parecer ainda mais aterrorizante.
    Eu tenho medo de um turbilhão de coisas.
    Tenho medo de passar a idéia errada, daí afastar. Tenho medo de caminhar por caminhos que não deveria caminhar pensando serem certos. Tenho medo de acordar em um dia pela manhã quando eu já tenha feito de tudo e me sentir... vazia.
    O medo paralisa. Esse é o problema. É aquela droga de matéria que você tem que estudar, aquele encontro para ir com aquela pessoa que você estava cuidando a mais de semanas, aquele emprego novo que surgiu, aquela chance de mostrar que você é capaz, aquele negócio pra fazer, aquela música nova para aprender... Então você sente que não é capaz.
    Mas, que droga, quem foi que disse afinal? Quem disse o que é errado? Quem disse que não? Quem disse pra parar? Quem?


Annabel Laurino.

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Você nunca teve aquela sensação de que as pessoas certas sempre acabam com as erradas, quando as certas estão, tipo assim, dez centímetros delas?



Annabel Laurino.