Noites frias aquelas. Levantava do sofá sonolenta e
desperta, entre um cochilo e outro, entre um bocejar e o abrir e fechar de
olhos. Levantava-se, corria até a janela, com os pés pequenos como os de uma
gueixa e afastando as cortinas da janela, olhava com seus olhos de gato branco
a rua deserta. Espichava o corpo macio e pequeno na ponta dos pés em direção a
enorme janela da sala, olhos atentos. Nada dele chegar.
Era quase sempre
assim, nos últimos tempos. Uma espera desesperada que não surtia efeito, só
esmagava. E esmagava cada vez mais. Ela própria se sentia afundar a cada
nanosegundo nas almofadas indianas do sofá. O canal de compras da televisão era
puro tédio, misturado com a energia de um café meio frio, meio quente, a vida
era continuamente estranha, e ele nunca chegava. Noites frias aquelas.
Talvez ele viesse
a chegar um dia, quem sabe. Na hora marcada, se convisse ele marcar uma hora.
Mas ela acabava sempre desistindo. Levantava do sofá, com os pios alegres dos
pássaros lá fora e relutantemente, passava o trinco na porta, indo se jogar
sobre a cama com as lágrimas. Isso sempre quando
amanhecia o dia, quando era obrigada à desistência.
Desde que ele foi
embora era um ritual frívolo aquele. Como afundar a faca na carne bem
devagarzinho, não devagar, mas muito e muito, cada vez mais e sempre, devagar.
Um milímetro a cada longos segundos e a dor sempre aguda, roçando a pele na
faca até sangrar.
Coitada dela,
diziam os vizinhos que sempre viam as luzes acessas da casa. As amigas
insistiam que deveria seguir em frente, quem sabe tentar Yoga, pilates, jump,
viajar para o Quênia e cuidar de elefantes órfãos ou Dubai então? Um pouco de ouro
não faz mal a ninguém. Mas nenhuma pessoa viva sentia o seu
sofrimento. Depois de muitos naufrágios, abandonar o barco era como a
desistência de uma longa jornada, era o fracasso de uma vida. Uma vida que aos
poucos deixava de existir.
Claro que se
perguntava as vezes, entre a mordida de uma bolacha Bonno e um gole de
coca-cola, que se afinal ele havia ido embora então era por fim o terrível
ponto da história. Mas, e sempre havia o mas, havia a esperança.
Branca e
reluzente, a acompanhava nas noites longas.
Noites que até o
podia ver com muita nitidez abrindo a porta, então com a barba por fazer, meio
castanha, meio ruiva, os cabelos desgrenhados do vento frio da noite, a jaqueta
de couro preta e as calças meio folgadas nos joelhos, os olhos de tigre
desesperado, meio verdes, meio negros, afundados pelo cansaço. Não haveria
palavras para serem ditas, a pegaria no colo e a levaria para a cama, o resto
era a sua imaginação febril que a acompanhava.
Eis que teve uma noite em que
desistiu, não ficou na sala, sentou na porta, com chinelos havaianas e cabelos
presos em um rabo de cavalo despenteado. Ele não chegou, claro. Ela fechou a porta e
saiu caminhando pelas ruas. Cinco horas da manhã. A visão dele indo embora
pelas calçadas era vivida. Se soubesse que era a ultima vez que ele tinha ido
embora, que o estaria vendo, enfim, não sabia, não tinha como saber, isso só
provava que a vida era inútil, injusta, malvada.
Mas antes de sair pela porta, subiu até o quarto e abriu o guarda roupa. Pegou o calção
negro que ele sempre usava para dormir. Sua mente protestava com a aproximação
da dor, agora quase familiar, e seu coração gritou por um pouco de piedade. Mas
não resistiu. Levou a roupa até as narinas e aspirou o cheiro. Era só o aroma de guardado e umidade. Quanto tempo fazia agora desde que aquela roupa estava
ali? Cinco meses? Quatro anos? Calçou a peça e desceu as escadas, o calção bamboleando nos quadris. Não era assim tão magra antigamente, mas agora, com sua alimentação virada em bolachas doces na madrugada e nada mais do que isso, os ossos dos quadris eram nitidos. Não comia como antes, quando ele fazia o café da manhã e preparava os jantares, sempre tão deliciosas as massas e os sorvetes caseiros.
As luzes matinais
de uma manhã fria de verão reluziu vermelho lá longe no céu, só as luzes, pois a
estrela grande estava escondida ainda. Ao longo da caminhada silenciosa podia
ter jurado que ouviu seus passos lentos ao seu lado, mas ele estava longe, não era
possível, compreendeu enfim. Caminhou entre os muros pixados e desbotados e jurou tê-lo ouvido
sussurrar seu nome, mas era impossível, ele havia partido. Olhou uma nuvem
crespa, branca e enevoada lá acima e jurou tê-lo visto debruçado sobre uma pluma de nuvem, sorrindo,
flutuando entre as nuances prateadas e arroxeadas de uma manhã prestes a nascer.
A dor de uma partida as vezes é tão viva quanto a morte. E ele já não vivia
mais ali. Era uma dor que não aceitava a compreensão dos fatos, o desespero de uma espera sem sentido, afogada em saudades.
Annabel Laurino