terça-feira, 30 de outubro de 2012

In: Irreversível



"Eu detesto gente bêbada, eu odeio essa cultura cervejeira e seus comerciais ilusórios e seus cus faturando dinheiro enquanto quatro jovens perdem suas cabeças embaixo de um caminhão após uma festa, ou enquanto dois irmãozinhos se escondem debaixo da cama porque, assim como anteontem, hoje também é dia da mamãe levar surra do papai. Se você bebe por vício, hábito ou ritual – e não pelo sabor e pelo prazer autêntico –, para metamorfosear sua identidade ou aliviar alguma angústia ou remorso, não há argumento racional que me tire da cabeça que você é um idiota. Você pode ser um doente social agora, tudo bem, coitado, mas algum dia já foi um idiota. Na bocada inicial ou quando passou a glamorizar a alegria ou o conforto dos goles seguintes.
Gente bêbada é chata, covarde, prepotente, burra, deprimente, uma personalidade fraudulenta, um prejuízo ambulante, um fardo futurístico, uma estatística lamentável. Quanto de dinheiro você já gastou com destilados, meu amigo, e até onde você foi com isso? E quando você puxa papo e me conta todo empolgado quantas doses variadas você consumiu na noite anterior, achando tudo super legal, silenciosamente eu só consigo te achar idiota. Desculpe, camarada, desdenhar seu mérito. Mas aposto que aquele mendigo na porta da farmácia absorve três vezes mais garrafas do que você. E vai continuar mendigo."




Gabito Nunes

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"Que se possa sonhar, isso é que conta, com mãos dadas, suspiros, juras, projetos, abraços no convés à luz da lua cheia, brilhos na costa ao longe. E beijos, muitos. Bem molhados."

 Caio Fernando Abreu

DESespera


    Noites frias aquelas. Levantava do sofá sonolenta e desperta, entre um cochilo e outro, entre um bocejar e o abrir e fechar de olhos. Levantava-se, corria até a janela, com os pés pequenos como os de uma gueixa e afastando as cortinas da janela, olhava com seus olhos de gato branco a rua deserta. Espichava o corpo macio e pequeno na ponta dos pés em direção a enorme janela da sala, olhos atentos. Nada dele chegar.
    Era quase sempre assim, nos últimos tempos. Uma espera desesperada que não surtia efeito, só esmagava. E esmagava cada vez mais. Ela própria se sentia afundar a cada nanosegundo nas almofadas indianas do sofá. O canal de compras da televisão era puro tédio, misturado com a energia de um café meio frio, meio quente, a vida era continuamente estranha, e ele nunca chegava. Noites frias aquelas.
    Talvez ele viesse a chegar um dia, quem sabe. Na hora marcada, se convisse ele marcar uma hora. Mas ela acabava sempre desistindo. Levantava do sofá, com os pios alegres dos pássaros lá fora e relutantemente, passava o trinco na porta, indo se jogar sobre a cama com as lágrimas. Isso sempre quando amanhecia o dia, quando era obrigada à desistência.
    Desde que ele foi embora era um ritual frívolo aquele. Como afundar a faca na carne bem devagarzinho, não devagar, mas muito e muito, cada vez mais e sempre, devagar. Um milímetro a cada longos segundos e a dor sempre aguda, roçando a pele na faca até sangrar.
    Coitada dela, diziam os vizinhos que sempre viam as luzes acessas da casa. As amigas insistiam que deveria seguir em frente, quem sabe tentar Yoga, pilates, jump, viajar para o Quênia e cuidar de elefantes órfãos ou Dubai então? Um pouco de ouro não faz mal a ninguém. Mas nenhuma pessoa viva sentia o seu sofrimento. Depois de muitos naufrágios, abandonar o barco era como a desistência de uma longa jornada, era o fracasso de uma vida. Uma vida que aos poucos deixava de existir.
    Claro que se perguntava as vezes, entre a mordida de uma bolacha Bonno e um gole de coca-cola, que se afinal ele havia ido embora então era por fim o terrível ponto da história. Mas, e sempre havia o mas, havia a esperança.
    Branca e reluzente, a acompanhava nas noites longas.
    Noites que até o podia ver com muita nitidez abrindo a porta, então com a barba por fazer, meio castanha, meio ruiva, os cabelos desgrenhados do vento frio da noite, a jaqueta de couro preta e as calças meio folgadas nos joelhos, os olhos de tigre desesperado, meio verdes, meio negros, afundados pelo cansaço. Não haveria palavras para serem ditas, a pegaria no colo e a levaria para a cama, o resto era a sua imaginação febril que a acompanhava.
     Eis que teve uma noite em que desistiu, não ficou na sala, sentou na porta, com chinelos havaianas e cabelos presos em um rabo de cavalo despenteado. Ele não chegou, claro. Ela fechou a porta e saiu caminhando pelas ruas. Cinco horas da manhã. A visão dele indo embora pelas calçadas era vivida. Se soubesse que era a ultima vez que ele tinha ido embora, que o estaria vendo, enfim, não sabia, não tinha como saber, isso só provava que a vida era inútil, injusta, malvada.
   Mas antes de sair pela porta, subiu até o quarto e abriu o guarda roupa. Pegou o calção negro que ele sempre usava para dormir. Sua mente protestava com a aproximação da dor, agora quase familiar, e seu coração gritou por um pouco de piedade. Mas não resistiu. Levou a roupa até as narinas e aspirou o cheiro. Era só o aroma de guardado e umidade. Quanto tempo fazia agora desde que aquela roupa estava ali? Cinco meses? Quatro anos? Calçou a peça e desceu as escadas, o calção bamboleando nos quadris. Não era assim tão magra antigamente, mas agora, com sua alimentação virada em bolachas doces na madrugada e nada mais do que isso, os ossos dos quadris eram nitidos. Não comia como antes, quando ele fazia o café da manhã e preparava os jantares, sempre tão deliciosas as massas e os sorvetes caseiros. 
    As luzes matinais de uma manhã fria de verão reluziu vermelho lá longe no céu, só as luzes, pois a estrela grande estava escondida ainda. Ao longo da caminhada silenciosa podia ter jurado que ouviu seus passos lentos ao seu lado, mas ele estava longe, não era possível, compreendeu enfim. Caminhou entre os muros pixados e desbotados e jurou tê-lo ouvido sussurrar seu nome, mas era impossível, ele havia partido. Olhou uma nuvem crespa, branca e enevoada lá acima e jurou tê-lo visto debruçado sobre uma pluma de nuvem, sorrindo, flutuando entre as nuances prateadas e arroxeadas de uma manhã prestes a nascer. A dor de uma partida as vezes é tão viva quanto a morte. E ele já não vivia mais ali. Era uma dor que não aceitava a compreensão dos fatos, o desespero de uma espera sem sentido, afogada em saudades. 



Annabel Laurino