sábado, 23 de novembro de 2013

Marina

    Sua boca tinha a cor de um m&m's cor de rosa. Seus olhos, de um marrom escuro, quase negro. Ela fitou ao longe e permaneceu ressentida na sua própria forma de pensar. A cor do mar era de um cinza sujo, quase que um marrom desbotado, coisa esquisita mesmo. Hoje os peixeiros não estavam em seus postos, cortando os peixes e falando coisas avulsas e sem nexo. Hoje o dia era vazio.
    Marina ficou aqui, encostada na base de um lampião todo pichado e sujo enquanto analisava o outro lado do porto. Acendeu seu cigarro, calma e lentamente e depois vislumbrou um homem alto vir em sua direção. "Me empresta o fogo ai, moça?". Claro que não iria dizer para ele que não tinha como lhe emprestar fogo algum, mas contendo as palavras lhe entregou na mão enorme e cheia de calos seu isqueiro, esperando ele acender seu cigarro e lhe devolver, e o homem se foi. 
    O vento subia e descia lentamente sobre o mar e fazia cócegas no seu rosto, dançava com os seus cabelos, encarapitando-o para todas as direções, prendeu algumas poucas mechas, as que podia, atrás das orelhas e continuou ali, encostada, como se não tivesse nada para fazer, como se por algum motivo do acaso tivesse caído exatamente ali, naquela posição, naquele minuto e horário do dia. Vinda de lugar nenhum. 
    Se fechasse seus olhos e os abrisse novamente poderia ver a cena de ontem como se não fosse a protagonista da própria e sim uma telespectadora. Marina e ele sentados lá naquele banquinho cor de creme, do outro lado do porto, sua bolsa entre os dois. Perto por centímetros, separados por quilômetros invisíveis e ao mesmo tempo tão visíveis aos seus próprios olhos. Separados para sempre pensou. 
    Sabia exatamente o que o tempo havia feito com eles, pois ele havia os separado, uma distância absurda um do outro, como uma crosta se abrindo sobre a terra em bilhares de rachaduras e vincos, assim tinha sido, até que de repente ficou-se um abismo, irrefutável, irreparável. Irremediável. 
    Sentiu saudade, sua mente vagava exatamente como a visão de um telespectador ali, a observar tudo. Podia vislumbrar os dois, a ela mesma e a ele, sentados. A diferença abrupta de tamanho dos corpos um do outro, ele tão imenso, ela tão pequena. Podia vislumbrar ele acendendo o seu cigarro e a fumaça sucumbindo no ar, o cão vadio passando atrás deles, ela mesma secando o rosto e encurvando os ombros como se sentisse frágil, como se tentasse sumir dentro de si mesma e se auto desligar, sumir dali. 
    O tempo é ladrão. Ele rouba a nossa juventude, nossas lembranças, ele assalta os momentos mais genuínos e se você tiver sorte, talvez ele esqueça de vasculhar embaixo da sua cama ou por dentro da sua gaveta alguma coisa que você deixou escondida, na esperança de pelo menos aquilo não pudesse ser tirado de si, talvez você tenha sorte se ele não quiser levar tudo consigo, seus bibelôs e quadros na parede, seus livros e seus beijos roubados.
    Sentia-se profundamente amargurada e a maresia trouxe um gosto amargo à sua boca cor de rosa, agora já meio desbotada. Quis ter algum poder sobrenatural, como nos filmes ou nos livros, quis salvar alguma coisa que não podia ser salva, como aquela cena agora já fundida na sua memória. Teria a escrito novamente e mudado o seu rumo para todo o sempre. Teria dramatizado eloquentemente em alguns pontos e posto ali um final digno, uma coisa bonita e rara, e por que não feliz? 
    Mas agora o tempo já havia entrado e roubado seus últimos restos de coisas guardadas, escondidas. E ele já havia partido, como sempre, rápido. Marina era assim, maresia a solta, saudade branda, cheia de amores não desfrutados e memórias guardadas. 
    Como se batesse os vãos de uma claquete, ela fechou a cena da memória dentro de sua cabeça e se resignou a só sentir saudade. Apenas isso. Até que o tempo retornasse mais uma vez e lhe roubasse isso.
    Se tivesse sorte.





Annabel Laurino