sábado, 10 de janeiro de 2015

O Som que a Chuva tem

Choveu quase toda a semana. Choveu enquanto eu dormia, mas não fui capaz de perceber as gotas de chuva tamborilando nos vidros da janela ao lado da cama. Choveu quase todos os dias, uma chuva que lambeu as ruas com poças espalhafatosas de água, uma chuva que há dias não caía, ensopou as calçadas, os calçados dos passantes despercebidos e apressados, e estampou gotículas nos guarda-chuvas aglomerados na rua central.
            A chuva oscilava em suas cheganças, principalmente nas tardes quentes desse verão abafado e denso, quase claustrofóbico. Quando parecia que ia cessar, lá estava ela, espalhando-se vivaz, acompanhada de nuvens carregadas e gordas, anuviando o sol.
            Mas o resto você já sabe, muito aguado. O que importa é que por segundos apenas, quando a janela era aberta, podia-se ter um vislumbre faceiro daquele tempo cinza e fechado, daquelas nuvens carregadas, daquela brisa contente e um tanto gelada brincando na ponta do nariz, uma lembrança quase próxima dos tempos invernais. Saudade, saudade. Faz uma caneca de café e senta na soleira da sua janela, menina, veja a chuva escorrendo pelas telhas e por tudo, levando todas as partículas de poeira embora. Nada melhor.
            Nos noticiários, a semana inteira nada foi bom, teve um ataque terrorista do outro lado do mundo, teve gente afundando nas próprias mentiras e você sabe, todos nós sabemos, é a mesma coisa de sempre, aquela coisa ideológica/hipócrita e hostilizada com todos no fim da história tentando salvar seus calções. Mas não estamos nós todos tentando salvar nossos próprios calções? Não importa, reflito, o mundo está escorrendo pelas nuvens nesse exato instante, não importa. E volto a pensar, mastigar, sentir o amargo ferrenho e doce dessa incrível incapacidade de compreensão do porque existir enquanto tudo lá fora só chove, e chuva e chove, pingo que não para de cair, e cai aqui, na minha cabeça confusa e descabelada, cara amassada de dormir mal a noite inteira, cara com olhos dissimulados de cigana oblíqua.
            Minha escrita não é clara, eu sei. Eu falo com pressa, como quem não sabe aonde chegar, não sabe onde estacionar o carro no meio da estação lotada de tantos outros carros. Mas eu insisto, eu quero uma vaga sem nem saber por que. E falo mesmo assim, escrevo nessas linhas que não existem, parafraseio nesse instante que já passou. Minha escrita tem como forma uma existência de peso que se eleva em sua própria leveza. Levo meus dedos em direção dessa máquina que tem por tarefa me deixar entrar, para escorrer calma e precisa, como a chuva lá fora.
            Se você vem ou não eu já não sei mais, mas venha. Aparece no meio da noite e para ser dramática logo, me salva. Me salva desse importuno desesperado de não saber onde estou, se eu já fui ou se já cheguei. Me salva dessa pressa, desse desesperado desaparecer de faces que me tem por inteira. Vem e abraça meu corpo, se cubra comigo nas minhas próprias cobertas e aquece esses braços seus. Canta para mim, o violão ta logo ali, ao lado da porta, dedilha ele como se dedilhasse a mim e depois dedilhe-me também, por que não? Eu te espero e tenho urgência na minha espera desesperada em desesperar.
            Do outro lado da cidade eu sei que um pingo acabou de cair sobre sua face rubra e feliz. Um ônibus acabou de dobrar a esquina e levantar água de uma poça no meio da rua, uma música toca alto dentro de um apartamento do outro lado da praça principal, nossa música favorita. O universo sussurra canções harmoniosas. Te procuro na imensidão vasta dessa chuva que não para de cair sabendo que do outro lado da cidade você me procura em qualquer coisa como um livro, uma frase solta, uma lembrança vaporosa, um café sem açúcar ou chuva, porque eu sou toda chuva, toda temporal. Do outro lado da cidade ou do outro lado do mundo, o universo abraça tudo e ele conspira a meu-seu-nosso favor.
            Agora você já sabe, foi por isso que choveu quase todos os dias. Até mesmo a chuva tem seu próprio e particular som, sua maneira de se comunicar. Ouvi atentamente. Logo, tive a delicadeza de não me silenciar. 




Annabel Laurino