Choveu quase toda a semana. Choveu enquanto eu
dormia, mas não fui capaz de perceber as gotas de chuva tamborilando nos vidros
da janela ao lado da cama. Choveu quase todos os dias, uma chuva que lambeu as
ruas com poças espalhafatosas de água, uma chuva que há dias não caía, ensopou
as calçadas, os calçados dos passantes despercebidos e apressados, e estampou
gotículas nos guarda-chuvas aglomerados na rua central.
A chuva oscilava em suas
cheganças, principalmente nas tardes quentes desse verão abafado e denso, quase
claustrofóbico. Quando parecia que ia cessar, lá estava ela, espalhando-se
vivaz, acompanhada de nuvens carregadas e gordas, anuviando o sol.
Mas o resto você já sabe,
muito aguado. O que importa é que por segundos apenas, quando a janela era
aberta, podia-se ter um vislumbre faceiro daquele tempo cinza e fechado,
daquelas nuvens carregadas, daquela brisa contente e um tanto gelada brincando
na ponta do nariz, uma lembrança quase próxima dos tempos invernais. Saudade,
saudade. Faz uma caneca de café e senta na soleira da sua janela, menina, veja
a chuva escorrendo pelas telhas e por tudo, levando todas as partículas de
poeira embora. Nada melhor.
Nos noticiários, a semana
inteira nada foi bom, teve um ataque terrorista do outro lado do mundo, teve
gente afundando nas próprias mentiras e você sabe, todos nós sabemos, é a mesma
coisa de sempre, aquela coisa ideológica/hipócrita e hostilizada com
todos no fim da história tentando salvar seus calções. Mas não estamos nós
todos tentando salvar nossos próprios calções? Não importa, reflito, o mundo
está escorrendo pelas nuvens nesse exato instante, não importa. E volto a
pensar, mastigar, sentir o amargo ferrenho e doce dessa incrível incapacidade
de compreensão do porque existir enquanto tudo lá fora só chove, e chuva e
chove, pingo que não para de cair, e cai aqui, na minha cabeça confusa e
descabelada, cara amassada de dormir mal a noite inteira, cara com olhos
dissimulados de cigana oblíqua.
Minha escrita não é clara,
eu sei. Eu falo com pressa, como quem não sabe aonde chegar, não sabe onde
estacionar o carro no meio da estação lotada de tantos outros carros. Mas eu
insisto, eu quero uma vaga sem nem saber por que. E falo mesmo assim, escrevo
nessas linhas que não existem, parafraseio nesse instante que já passou. Minha
escrita tem como forma uma existência de peso que se eleva em sua própria
leveza. Levo meus dedos em direção dessa máquina que tem por tarefa me deixar
entrar, para escorrer calma e precisa, como a chuva lá fora.
Se você vem ou não eu já
não sei mais, mas venha. Aparece no meio da noite e para ser dramática logo, me
salva. Me salva desse importuno desesperado de não saber onde estou, se eu já
fui ou se já cheguei. Me salva dessa pressa, desse desesperado desaparecer de
faces que me tem por inteira. Vem e abraça meu corpo, se cubra comigo nas
minhas próprias cobertas e aquece esses braços seus. Canta para mim, o violão
ta logo ali, ao lado da porta, dedilha ele como se dedilhasse a mim e depois
dedilhe-me também, por que não? Eu te espero e tenho urgência na minha espera
desesperada em desesperar.
Do outro lado da cidade eu
sei que um pingo acabou de cair sobre sua face rubra e feliz. Um ônibus acabou
de dobrar a esquina e levantar água de uma poça no meio da rua, uma música toca
alto dentro de um apartamento do outro lado da praça principal, nossa música
favorita. O universo sussurra canções harmoniosas. Te procuro na imensidão vasta
dessa chuva que não para de cair sabendo que do outro lado da cidade você me
procura em qualquer coisa como um livro, uma frase solta, uma lembrança
vaporosa, um café sem açúcar ou chuva, porque eu sou toda chuva, toda temporal.
Do outro lado da cidade ou do outro lado do mundo, o universo abraça tudo e ele
conspira a meu-seu-nosso favor.
Agora você já sabe, foi por
isso que choveu quase todos os dias. Até mesmo a chuva tem seu próprio e
particular som, sua maneira de se comunicar. Ouvi atentamente. Logo, tive a
delicadeza de não me silenciar.
Annabel
Laurino