Eis que se sente agora algo estranho que paira e sobrepaira como se tivesse recém nascido dentro de mim. Um sentimento que nunca esteve aqui, desconhecido por minhas pequeninas células escandalosas. Ele - o sentimento - gostou do meu corpo, alojou-se dentre esse vaso corporal adornado de cafeina e gostou. Gostou das paredes enfeitadas de fotos antigas, retratos felizes, gostou dos bilhares de livros arrumados nas prateleiras, do cheiro de folhas velhas, páginas impressas, dos meus escritos, gostou da cama arrumada e cheirando a macadâmia, adorou as roupas organizadas no roupeiro, das minhas poesias, do cheiro de helianto entrando pela janela aberta. Esse sentimento me amou, me adotou. Não consigo resistir ao seu encanto tão doce, me parece certo. O que posso fazer?
Como uma criança olhando suplicante para sua mãe quando quando se encontram em um Pet Shop, e dão de cara com aquela criatura fofa e macia, de olhos amanteigados, pedindo atenção:, atráz de uma gaiola, completamente, aparente, indefeso. "Podemos ficar com ele?", a criança pergunta.
Dai vem todas aquelas responsabilidades de sempre. Oras, custará muito, tempo, dedicação, carinho, abrir mão de algumas coisas, dinheiro gasto, você terá que organizar a casa, separar um espaço para ele morar e se alojar confortável, terá que cuidar dele todo os dias e levá-lo para passear, e terá de ser paciente acima de tudo, por que ele destruirá muitas coisas, talvez até mesmo aqueles sapatos mais caros e que você tanto ama. E depois todas aquelas idas ao mercado, veja bem, comprando sustento. Sim, por que ele pedira para que cada vez mais você o alimente. E logo ele ira crescer, sim, e ficará gigante, isso vai doer tanto, e olhe só, ele morrerá um dia. Sim, eles sempre morrem.
Não, não podemos.
Expurgo esse sentimento com maldade mesmo. Olho para a pilha de revistas em cima da mesa, todas marcadas com marca-textos para todos os lugares que eu desejo ir, olho para a pilha de sonhos nas prateleiras, olho para tudo planejado, pelas viagens por fazer, por tudo. Não, não da. Pego a criança, puxo-a da mão bruscamente, tapo os ouvidos diante de seu choro histérico e saio correndo, a puxando sem dó. Ou melhor, puxando a mim mesma, criança, pequena, iludida e frágil, apenas desejando um pouquinho de amor, um pouquinho de carinho, desejando pegar o celular em cima da mesa e te chamar aqui, dizer para você bem claro, como nunca disse, "Sou sua, me tome, me pegue, me cuide. Eu aceito. Vamos esquecer os antes, eu esqueço tudo, tudo bem, não me importo com seus defeitos, mas me carregue, me puxe."
Mas não, eu sou a má adulta, a Cruel, amarrei a criança pequena na cadeira do quarto, amordacei sua boca, dei-lhe remédio para dormir por mais ou menos, quase sempre. Logo, fiquei aqui sentada, respirando pesadamente diante dos utensílios utilizados na cena do crime. Fico pensando o quanto tudo seria fácil e bom, e maravilhoso, se quem sabe, só quem sabe, se eu admitisse esse sentimento, se eu o deixasse entrar... Não nem pensar, olhe os sonhos, olhe tudo pela frente, não da...
Annabel Laurino.