sábado, 14 de junho de 2014

O Poema

    Decidiu naquele dia fatídico, cinza, preto e branco, de nuvens pesadas e frio arranhando sua pele, que pintaria suas unhas e os lábios de vermelho carmim. Em frente ao espelho de seu quarto, inclinou-se como a menina que ainda era no seu corpo de uma mulher que ainda não reconhecia até que ponto, onde e em que parte da história havia crescido. Perpassou o batom em seus lábios secos e sem cor, até tomar forma e delineio da cor vermelha carmim. Fez o mesmo com suas unhas, satisfeita, esperou que secassem enquanto tomava seu chá deixando com que a marca de seu batom se instalasse na borda cristalina e branca de sua xícara de boneca.
    Ainda tinha sonhos ruins a noite. Morar sozinha ainda era estranho e a falta que lhe faziam seus pais doía crivelmente em seu peito como uma dor não suficientemente sofrida. Olhava os cartazes de viagens, estava sempre por dentro das promoções e pacotes de cruzeiros, mas queria mesmo era viajar por mais de um mês ou dois para um lugar onde não se sentisse oprimida pelo prazo de retorno, pensava em algo como Itália, em algum vilarejo ou Irlanda, nos recônditos de Dublin, pensava em algo como a França, Paris e a Notre Dame. Queria sair de onde estava, precisava ver algo que enchesse seus olhos para além do que estava acostumada a ver todos os dias.
    Tomava dois remédios coloridos para dormir, nas suas mentiras a si mesma brincava que eram apenas doces, doces coloridos que a fariam descansar por algumas horas até o próximo dia chegar, o que era sempre extenuante, quando o outro dia chegava. Ouvia musicas, estudava seus exercícios de alemão, lia poesias, já sabia tudo sobre Caetano e queria entender como era viver em 1820, sentia-se uma refugiada solitária em seu mundo insólito no meio de uma terra de ninguém.
    Um dia desses, antes do dia fatídico chegar, estava caminhando nas ruas da cidade e avistou um homem do outro lado da rua. Agora enquanto repensava os fatos não saberia dizer porque aquele homem em especifico havia chamado sua atenção. Concluía agora que não era um homem qualquer, era alguém que carregava livros em seus braços. Ele estava parado em frente a livraria e olhava atentamente através de uma longa vitrine, para os livros em exposição. Olhou-o olhar os livros, olhou-o atentamente e discretamente com o máximo de cuidado que ambos requeriam fazer. Era alto e claro, tinha uma luz bonita que emanava de si, parecia gentil e tranquilo, seus ombros não carregavam pressa, suas faces eram bonitas, iluminadas. Seus olhos ela não podia ver, pois estavam perdidos nas capas duras e nas lombadas douradas, o imaginava castanhos clarinhos, como seus cabelos lisos e curtos.
    Não chamou-o, não fez menção de se aproximar, de falar sobre livros, não quis interromper a cena. Achou tudo tão bonito, aquele sol de final de sábado batendo sobre seu cabelo e seu suéter vermelho, não queria ser ninguém para ele e nem que ele a visse naquele momento. Ela só queria observar.
    Ele foi embora, caminhou a passos lentos e subiu a rua. Ela ficou. Ele não a viu e ela não sabia seu nome. Nunca mais se viram.
    Nesse dia fatídico em que começa a história, ela decidiu que iria voltar a encontrá-lo. Como, ela não sabia ainda, mas precisava de alguma motivação em sua vida assim tão águas mornas. Pintou as unhas e os lábios de vermelho porque pensou que assim ficaria mais bonita, e de fato havia ficado. Vestiu-se e saiu. Deixou metade de seu chá esfriando na mesa da sala.
    Não sabia por onde começar a procurá-lo. Não sabia seu nome, seu endereço, nem mesmo a cor de seus olhos ou o som de sua voz. Sabia apenas que sua imagem já havia sido costurada em sua memória, não esqueceria tão facilmente. Se o visse de costas talvez soubesse distingui-lo em meio a multidão, reconheceria as costas magras, as pernas longas, o jeito de caminhar, o cabelo e o alto de sua cabeça confiante. Mas a sorte poderia não estar ao seu favor e por isso sentiu medo, esperava ansiosamente encontra-lo. Desesperadamente acabar com aquele vazio simultâneo que hora ou outra a mastigava por dentro e a corroía. Queria uma nova face sobre o seu mundo, queria ouvi-lo falar 'olá', e não sabia porque mas queria encontra-lo. Talvez ele fosse seu companheiro de poesias perdido por ai, esperando que o encontrasse. Talvez fosse ele que viajaria com ela para outro país, fariam torta de maça juntos e daria errado, ririam um do outro, descabelados e confusos em um sábado de manhã. Talvez, talvez.
    Foi em direção a livraria, a rua estava um caos, ônibus, barulho e vozes e buzinas e loucura cotidiana, pessoas passando, pessoas apressadas passando, trafego e sinaleiras mudando de cor, pessoas passavam em frente umas as outras e não se preocupavam em se olhar. Não havia ninguém em frente a vitrine da livraria, chegou mais perto e se pôs a olhar para ela, através dela. Livros em exposição enfeitavam a vitrine, tão bonita. Olhou um a um e depois esqueceu que os havia visto pois se sentiu tola. Ali parada, vestida em vermelho esperando encontrá-lo em frente ao mesmo lugar. Era muito para tão pouco. Sentiu-se pequenina em frente ao prédio com tantas pessoas em volta.
    Decidiu entrar, o peso e o desanimo eram novos amigos abraçados em seus ombros, sentimento familiar. Caminhou em volta da livraria, olhou as prateleiras e foi para onde estavam os livros de poesia.
    Uma voz atrás de si chamou-a, não pelo nome, mas o tom dizia que era com ela mesma a quem se referia e virou-se. Era ele, ele mesmo, o rapaz da vitrine. Alto e claro, luminoso e gentil. Era ele. Vestia o uniforme da livraria e trazia um sorriso gentil. E seus olhos, castanhos claros, exatamente como havia imaginado. Perguntou "Em que posso lhe ajudar?" e ela não soube responder, talvez poderia ter dito que em tudo ou contado que o livro que ele carregava naquele dia em que o havia visto ela já havia lido também e era ótimo e era lindo e amava aquela parte em que o poeta dizia que tinha em si mesmo todos os sonhos do mundo, mas não queria ser assim tão louca e sorriu, olhou para seus pés, envergonhada e tímida. Poderia ter dito tudo, deveria ter dito. "Ajude-me em tudo.", mas não disse. Não ousaria. Ousaria em suas unhas e seu batom, mas não assim, dessa forma.
     Comprou um livro com ele, do escritor que ela já sabia que ele gostava e durante a compra conversaram sobre o poeta, falaram de seus versos favoritos. Seu nome ela ficou sabendo e ele perguntou o dela também. Disse no final da conversa que já a havia visto no ônibus, dia qualquer, lendo o tal escritor, mas não quis interromper a leitura e nem a calma em que ela estava, disse assim mesmo, "você parecia tão calma e luminosa lendo o livro, não ousaria interromper.". Mal sabia ele. Trocaram os telefones. Voltaram a se ver. Ela usou tantas outras vezes a cor vermelha e de todos os sonhos do mundo, dentro de si, ela ousou fazer-se. Realizou-se. Meses depois, saiu da agência de viagens, passagens compradas e o destino era Paris, na França.



Annabel Laurino