Aqueles pincéis eram tudo para ela. Via-a organizando-os sobre a mesa depois do almoço, ou como sempre ocorria nos dias chuvosos - e me lembro de chover muito naquele tempo - antes do chá das três. Havia sempre uma xícara de chá ao lado dos pinceis, todos manchados de inúmeras cores, suas hastes descascadas, mas ela não parecia se importar. Os olhos eram como olhos de gato, incrivelmente perceptivos, anotavam mentalmente o tamanho da tela e vagueavam sobre o espaço branco e genuíno, como se descifrasse a si mesma no que seria feito.
Nunca falei sobre ela. Nunca consegui escrever sobre ela. E nem mesmo agora, nesse impeto momento de coragem para expurgar essa avalanche de lembranças as palavras me parecem insuficientes para descrever ela, olhos de gato, a senhora dos pinceis manchados.
Ela passava as tardes ali, pintando flores e frutas, de telas em alto relevo a linhas delicadas, recheadas de uma realidade transbordante que vezes eu me pegava duvidando se a realidade mesmo não seriam suas pinturas e não mais o momento presente em que vivíamos. Quando ela entrava para seu ateliler, fazendo crochês tranquilamente sentada no sofá desbotado, ela levantava os olhos de gato incrivelmente verdes sobre seus óculos moderninhos e sorria displicente quando me via chegar, as maças do rosto coradas e cheias de bluch rosado erguidas sobre o rosto anguloso e clássico. O nariz fino sem se mover, os lábios delineados como os de Monalisa, em um sorriso nada aberto, nada sensível.
Ela não era uma pessoa sensível. Apesar de todas aquelas cores em que tinha de conviver todos os dias. Tinha um ar ferino, resguardado e durão. Mas era de certa forma uma porta não trancada, porém sem maçaneta alguma, você só tinha que dizer as palavras certas para poder entrar lá dentro e descobrir o seu lado mais obscuro. E eu tinha medo disso, de descobrir ele, o lado obscuro, que quase ninguém conhecia. Sei hoje, pois entendo tudo muito melhor.
Fico me perguntando se ela teria como saber disso que escrevo agora. Sei que não, tudo bem. Mas talvez, se houvesse alguma maneira, eu gostaria de saber como ela mantinha toda aquela calma pintando e de onde ela encontrava tanta força para conseguir ser ela mesmo em seu próprio mundo. Que cores eram aquelas que ela via sobre as flores e que ninguém mais conseguia enxergar? Como exatamente ela via o mundo?
Não obterei respostas. Aqui nesse silêncio mudo, o tilintar das palavras não expressam minha gigantesca saudade. E aqui, ruminando lembranças me delicio sorridente em momentos felizes em que olhos de gato me ensinou tanto em seu formoso silêncio sem nem desconfiar que enquanto a observava com meus olhinhos brilhantes como as lentes de uma máquina fotográfica, registrava tudo.
Saudades. Muitas saudades de olhos de gato, minha majestosa senhora de lábios de Monalisa.
Encerro mansa essa lembrança, lembrança fiél que o tempo não poderá apagar.
Annabel Laurino.