sexta-feira, 27 de julho de 2012

Quando eu deixei Anna


    Ficou parado no meio do corredor durante aqueles longos segundos pesarosos. Não lembrava como tinha ido parar ali. As pessoas passavam som suas bagagens cheias de seus vícios consumistas. Seu corpo não se mexia. Seus pés retesados no chão, paralisados por todo o peso árduo de seu corpo, como uma areia úmida e densa, quase como um cimento solidificado. Estava paralisado. As únicas coisas que se moviam para ele eram seus pensamentos dentro de si, como bilhares de flechas, setas contorcidas e confusas, se direcionando para todos os lugares da mente.
    Forçou um movimento. Seus olhos se ergueram. Viu uma placa amarela acima de sua cabeça, era grande, amarelo forte. O que tinha escrito nela? Forçou a vista, mas não fazia sentido, as letras não se uniam. Abaixou um tanto os olhos e havia um amontoado de batatas fritas em diversos sabores empilhadas organizadamente a sua frente. Ergueu novamente os olhos e conseguiu ler, estavam na promoção. O slogan da marca remetia que o produto era saborissíssimo e que o consumidor não se arrependeria de sua escolha. Mas ele sabia que se arrependeria sim, que assim que comprasse as benditas batatas e abrisse o pacote só para então colocar a primeira dita cuja batata oleosa, escamando em seu óleo industrial e a arremessasse dentro da boca daria por si do quão horrível eram, mesmo que valessem quase nada.
    Sentia fome. Ali parado, em meio a um supermercado cheio, era sábado, tarde de sábado. As pessoas sempre resolvem fazer compras aos sábados à tarde, quando saem dos seus serviços e precisam saber o que irão fazer de almoço no domingo e então se abastecer de compras, comida e suprimentos para uma semana toda.
    Uma velha, muito velha, de pantufas e cabelos grisalhos passou por ele com seu carrinho do supermercado raspando rente ao seu corpo fazendo-o balançar para frente e depois para trás. A velha continuou o rumo, ele apressou-se em manter o equilíbrio. Olhou suas costas virando o corredor adiante e sentiu todo o ódio que podia sentir jorrando como coisa velha e suja. Teve vontade de gritar com a velha e suas pantufas patéticas. Mas não o fez. Voltou sua atenção para as batatas. Há quanto tempo estava ali? E se comprasse um pacote e provasse uma e fossem boas? Se caso comprasse o dinheiro que tinha daria para uma garrafa de Gatorade? Que horas eram?
    Mas a pergunta essencial de por que estava ali, aquela hora da tarde, de cabelo oleoso, pele escamando e oleiras roxas não parava de pairar em sua mente desconjunta. A mais importante.
     Desistiu das batatas. Danem-se as batatas. Começou a caminhar para fora do supermercado lotado, todos aqueles corpos cheios de si, seguindo todas aquelas direções desordenadas e confusas, será que toda essa gente percebe o quão idiota são, com suas vidinhas cheias de afazeres, seus relacionamentos arrumadinhos, questionou-se.
   Quando chegou a porta, o sol forte golpeou seu rosto e sentiu arder todo aquele calor em sua pele tão branca. Semicerrou os olhos. Que peso duro que sentia dentro de si. A noite passada encheu sua mente com um golpe violento.
     Era tarde da noite. Tinha se atrasado. Não queria ter se atrasado. Em recompensa trazia embaixo do braço a comida chinesa favorita dela. Podia dar uma desculpa qualquer. Era sexta feira. Não era verdade que a cafeteria tinha estado lotada o dia todo. Tinha dado muito movimento. Mas não tinha estado lá o dia todo. Então não seria verdade. Daria uma desculpa. Uma convincente.
    Abriu a porta. Parou de chofre no marco da porta, a mão congelada na maçaneta da porta assim como seu cérebro paralisado tentando absorver o que via. O sofá da sala era apinhado de roupas, roupas e roupas. Sua camisa do flamengo, seu boné do clube do futebol, sua jaqueta de couro preta, suas calças jeans rasgadas, seus tênis de esporte, tudo estava jogado pelo apartamento. Tudo era uma confusão. Parado na porta com a chave de chaveiro estranho, e como odiava aquele chaveiro estranho com um maldito porco que devia ser rosa, mas com o passar do tempo e de mão e mão o porco que seria rosa mas agora preto e sujo, pendido pela sua mão.
      Não, pensou. Como se um freio tivesse sido acionado na sua mente. Não. Não. Não pode ser.
      Ela estava sentada na poltrona ao lado da TV. A TV que não ligava e que ele já havia prometido milhares de vezes que daria um jeito.
      O corpo acentuado vestindo um vestido de algodão azul bebê, muito transparente, a linha curva dos seios, parecia que não usava nada por baixo, ele percebeu, os cabelos molhados, segurava o queixo com a mão olhando para fora da janela pensando, ou chorando, mas quieta. Era uma quietude gritante aquela.
     Soltou a comida chinesa na mesa de entrada. Como um robô. Como se fosse um sonho. Não teve coragem de acender a luz, de dizer oi, nem mesmo de largar o chaveiro imundo para não provocar ruído algum. Mas não se conteve.
   - Anna, o que aconteceu?
    Silêncio.
    Ela se levantou, calma e lentamente e ficou parada diante da janela, com os pés fundos no chão, no tapete chinês ao lado do abajur de conchas. Ele estava certo, não vestia nada por baixo do vestido azul bebê. Como se tivesse saído de baixo do chuveiro e apenas colocado o vestido, nada mais. Os cabelos negros pendiam sobre as costas delgadas a brancas.
    - Anna...
     Ela não respondeu. Continuava quieta como uma folha seca.
    Começou a caminhar pelo apartamento. Tudo revirado do avesso. Suas roupas, suas coisas, o banheiro era uma desordem de toalhas úmidas, desodorantes, pasta de dentes, escovas, cremes, espalhados pelo chão.
    - Anna o que está havendo?
     Mas Anna não se mexeu, Anna continuava a não se mexer. Então ele chegou bem perto, se aproximando devagar e lhe tocou com o dedo, como uma criança curiosa cutuca um objeto estranho com muito cuidado, para ter certeza que ele não vai lhe machucar, lhe ferir.
   - Anna, me responde. Anna, amor, me responde.
    Seus olhos negros eram tão negros, brilhavam pela luz da cidade que entrava sorrateiramente.
    Ela abriu os lábios de botão agora muito cinzas e secos, abriu lentamente como se os descolasse um do outro. Ficou com eles entreabertos, os dentes curvos e brancos transparecendo na linha dos lábios. Os olhos fitando lá longe algo sem importância.
    - Vai embora. – conseguiu dizer – Pega suas coisas, vai embora.
     Mas ele não entendeu. Ou entendeu e não queria entender. Anna se afastou, a mão dele pendeu no ar como coisa morta e perdida. Ele entendia sim, lá no fundo da memória, lá no riozinho perdido da retina, ele entendia completamente.
     Foi só um caso, duas semanas. Apenas duas semanas. Duas semanas confusas em que seu corpo não se satisfazia de nada, e não era água, não era comida, não era bebidas, festas, futebol com os amigos, um xaveco no bar, uma curtida com uma puta qualquer, ele tinha que ter um caso. E hoje tinha sido o ultimo dia. Tinha se prometido que hoje iria ser o ultimo dia. Droga. Tinha comprado comida chinesa. Esperava chegar em casa e ver aquele filme com o Tom Hanks que Anna gostava. Ele não gostava. Mas era o mínimo. Droga. Tinha sido a ultima vez.
     - Anna... – Não sabia como começar. Se falasse que sabia do que ela estava sabendo conseqüentemente ele admitira o erro. O maldito erro.
    - Eu sei de tudo. Eu to sabendo Fernando, mas vai lá, pega suas coisas, rápido, vai embora, sai daqui, vai pra casa daquela... Vai embora.
    Quando olhou para ele seus olhos ardiam, ele não pode não dar um passo para trás. Suas palavras eram tão frias, tão duras. Então resolveu se calar, porque sentiu foi a vontade de se jogar no chão por baixo daqueles olhos negros e tão cheios de desgosto, de decepção. Ele podia ver todas as viagens, as conquistas deles juntos sendo jogadas pela janela ao seu lado, cada uma, uma a uma, e logo tudo que eles fariam dali a um ano. Tudo por um casinho, por sua sede detestável e suja.
    Caminhou com as mãos na cabeça até o quarto e pegou uma mochila velha preta de lona empoeirada, começou a juntar tudo. Suas camisas, suas calças, seus tênis, seus... Não, não pegaria mais nada. E as fotos? Os CDS de musica, deveria pegar? Que desgraçado, cachorro, imbecil, um relacionamento de dois anos e ele preocupado com os CDS e as fotos.
    Pegou o essencial. Saiu para a sala, pegando o resto. Anna tinha sumido.
    Sentou-se no banco próximo a porta. Começou a se desesperar. Era o fim. Tinha acabado. Anna não ia lhe perdoar.
    De repente ela apareceu, os cabelos molhados, o rosto longo com o nariz fino e as sardas sobre as bochechas fazendo uma envergadura sexy pelo rosto de pele macia e branca. Teve vontade de pular sobre a mesa da sala e sair jogando tudo longe, alcançá-la e agarrá-la nos braços, apertar aqueles braços, sentir aquele seu cheiro, então tudo voltaria ao normal, eles ririam, foi só um caso, sentariam na varanda, a noite tava linda lá fora, Anna faria aquele seu chá de flores e frutas que fazia tão bem, e então sentariam sobre o sol, Anna com sua pele transparente, com uma flor no cabelo servindo de presilha, seus chinelos coloridos e seus vestidos hippie com Féris, o gato, em seu colo para que alisasse seu pelo cinza desbotado em meio ao seu ronronar.
   - Anna. – pediu. Era um chamado, um pedido, uma súplica.
   Ela não respondeu, sentou-se no sofá agora vazio, isento de todas aquelas tralhas que agora estavam todas amontoadas dentro de suas malas na porta. A coluna ereta. Não se mexia. Cruzou as pernas, acendeu um cigarro, um cigarro com a baga vermelha, meu Deus, teve vontade de se atirar sobre ela e arrancar aquilo de suas mãos, estava louca, sabia que era para irritá-lo. Então soprou a fumaça, lentamente, o cheiro enjoou seu estomago, entranhou nas suas vísceras e ele teve nojo, da fumaça, de Anna apática de sua presença, nojo das suas coisas nas malas, do caso de duas semanas. Era um nojo inexplicável, uma vontade parecida com a de não fazer mais nada, enfiar a cabeça dentro da terra e se esconder.
    Não tinha mais o que dizer. Se dissesse iria chorar. Iria gritar. Ela não o escutaria. Conhecia Anna. Ele podia fazer uma cena se quisesse. Fingir um ataque cardíaco no meio da sala e ela ficaria ali, sentada, fumando aquele maldito cigarro, mergulhada no seu ódio.
   Começou a sair do apartamento, fechou a porta atrás de si todo sem jeito, as bolsas de roupas pesando mais do que na verdade pesavam.
    Sem rumo, foi para a casa do amigo, o Pedro, que morava no centro. Ficou no sofá. Não dormiu. O Pedro só falava de pegar umas garotas loucas que moravam a duas quadras, coisas nojentas, seu cérebro não assimilava. Onde estava com a cabeça? Por que teria feito aquilo?
     Então Pedro trouxe as garotas loucas para casa. Duas loiras, uma alta com cara da Zooey Deschanel e a outra com corpo de atlética com luzes prateadas e voz de menina de quinze. Não tava com paciência. A garota com a voz de menina de quinze tentou conversar. Não respondeu. Ficou sentado no sofá preocupado em ver o programa do Jô Soares e segurar o telefone como se Anna fosse ligar.
     Até que a garota com voz de quinze desistiu e foi para o quarto de Pedro se sumindo lá dentro com o próprio e a cópia da Zooey Deschanel.
     Quando o primeiro raio de sol de sábado brilhou lá fora, jorrando-se sobre os prédios das ruas, vestiu uma calça qualquer, e saiu sem rumo. Pedro não estava em casa, não o vira sair. Não vira ninguém sair.
     Desde que Anna me deixou, esse seria seu novo monologo que deveria escrever, pensava enquanto descia as ruas sem rumo. Mas Anna não havia o deixado. Anna havia o mandado embora. Com todas as suas coisas. Ou ele que se mandou embora? Era isso então que queria? Se ver livre? Mas livre de que?
    Teve uma saudade imensa de Anna, de seus vestidos de algodão, dos seus pés gelados, das suas sardas, seus chás, suas musicas indianas, seus amigos gays, suas unhas vermelhas, sua pinta minúscula sobre a omoplata, seus olhos sérios e distantes, sua voz ronronando no seu ouvido no domingo de manhã implorando que buscasse o jornal. A forma como lia o jornal com os óculos pendido na ponte do nariz, as mãos de boneca segurando firme o papel em tom sério e compenetrado.
    Horas depois, sem rumo foi no supermercado que encontrou sua fuga.
    Fora lá, naquele supermercado fedorento da cidade que conhecera Anna. Ou que reencontrara Anna. Depois de seis meses que não se viam desde uma festa estranha na casa de um cara também estranho na praia, no verão, foram destinados aquele supermercado batido de final de bairro, todo velho. Se olharam na fila do caixa, Anna sorriu com seu riso de dentes ondulados e brancos, aquela suas sardas parecendo dançar no rosto fino, os cabelos negros e compridos presos como uma onda em uma fita vermelha, uma mancha de tinta amarela na profundidade do queixo com o pescoço. Duas semanas depois e estavam apaixonados. Duas semanas depois e Anna dormia nua na sua cama, a omoplata branca com uma pinta minúscula e sexy, de bruços sobre seus travesseiros de fronhas desbotadas. Dois meses depois e ele havia lhe entregue a chave do apartamento. Uma semana a mais e descobriram que o apartamento de Anna era melhor, tinha uma sacada e ela tinha espaço para trabalhar. Mais dois meses e haviam comprado Féris, ou ele havia lhe dado com uma fita azul marinho envolta do pescoço. Por que Anna havia amado o gato. Por que ele fazia tudo por ela.
    O sol rugiu na sua cara desmantelada e branca. Sentiu o gosto de ferro na boca, não havia comido nada ainda. Começou a caminhar falsamente pelas calçadas.
    Passou a mão na franja loira.
    Desde quando deixei Anna.
    Seria assim seu monólogo. Um longo monólogo sem solução.
    E não é da mesma forma a vida?
    Questionou-se sem parar de caminhar.
  
   
Annabel laurino.

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"Daquelas que namoram como crianças, como se fosse seu primeiro beijo. Daquelas que ocupam seu tempo e pegam na sua mão bem rapidinho, deixando milhares de desejos. Daquelas que sem querer treinam seu subconsciente para agradá-las, mas é tão bom vê-la sorrindo que você vai pelo impulso de satisfazê-la, tão menininha ela que você precisa dessa sensação. Que ciclo de infantilidade mais vicioso. (...) você precisa de uma dose dela diariamente. Pode evitar três dias, mas no quarto você já está em contagem regressiva para tê-la. Aquela menina com expressões faciais de criança, que você quer apertar até ela gritar: - Sou sua, sou sua."

Tati Bernardi