quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Em nome de nós

    Você dormiu. Virou para o lado, deixando as cobertas cobrirem docemente seu corpo nu, moldando sua forma de ossos, carnes e pele tão translucida que agora, eu já não conseguia mais ver. Você dormiu, ouvi seu ressonar baixinho, fiquei ouvindo, escutando você dormir, você e a chuva, caindo os dois sobre o espaço tempo de algum lugar mágico do universo. Embora a chuva só batesse, firme e decididamente, sobre as nossas cabeças naquela noite.
    Você dormiu, sem vigilância alguma. Eu espiei você, gravei seus detalhes, entrei na sua mente sorrateiramente e descobri seus sonhos. Tudo isso enquanto você dormia, mas você nem viu, nem percebeu. Você dormia. E eu fiquei ali, no escuro, querendo alguém para abraçar. Fiquei ali no escuro querendo um calor humano para envolver o meu calor humano também. Fiquei ali ruminando formas de te acordar e te trazer daquele sono tão tranquilo, tão sereno, mas que no fundo eu invejava.
    Chorei no escuro do quarto, perdida entre as quatro paredes simétricas e perfeitas de cor azul. Chorei sobre aquele colchão que já tinha a forma do meu corpo desenhada no canto, próximo a parede. Chorei lágrimas duras e frias, sem você ver. Porque você dormia. Você nem sabia, nem desconfiou, você não me vigiou mais.
    Você não acordou nem mesmo quando eu abracei meu corpo e disse “eu preciso tanto, eu preciso tanto de um abraço agora, eu me sinto só, só nesse imenso quarto, nesse imenso azul, nessa condensação lenta que me desgasta, nessa coisa copiosa e dura em que me perco”. Você não acordou com os meus soluços, meus lamentos. Chorei por muito tempo, pedi paz, falei baixinho pedindo muita paz. Queria algo bem doce e depois sentir cheiro de alecrim, pensei em Paris, chorei mais um pouco e me senti só, mas depois o coração encontrou alento. E você dormia.
    Nesse sono só eu fui me perdendo naquele escuro condensado daquele quarto tão simétrico e perfeito. Você nem percebeu. Você estava ali, deitado ao meu lado, ressonando baixo como um anjo perdido em sonhos, perdido em fábulas, perdido de mim, perdido em nós ou de nós mesmos, sem se quer acordar. Qualquer movimento brusco era incapaz de te tirar dali, daquele sono tão rarefeito. E por isso eu chorei, não existia o que eu pudesse fazer, eu só queria teu corpo, eu precisava de você inteiro e acordado, olhando nos meus olhos, os teus olhos tão limpos e claros e cheios de luz e cor, olhando para mim assim, bem aberto. Eu precisava do teu sexo, do teu abraço apertado, da tua mão enroscada nos meus cabelos, dos teus passeios com a boca sobre o meu ventre. Precisava das caminhadas de sol no domingo, do café amargo numa mesa perdida da cidade, de uma aventura cheia de Flâneur. De um ônibus para lugar nenhum, de um destino, de um rumo, um mergulho, uma direção, você e eu, nós dois, no escuro do teu quarto, sobre a claridade do meu, na luz ofuscante de uma manhã de sexta feira ou no final de uma segunda feira cheia de chuva, cheia de apagão. Eu precisava, eu precisava. Eu muito precisei.

    E agora? E agora? A pergunta bate como um pingo de chuva que estivesse caindo sobre a minha cabeça. E agora? Esperamos a chuva parar, esperamos o dia amanhecer? Esperamos pelo sol? Here comes the sun... 
    Ou aceitamos? Aceitamos que o disco arranhou e que a vitrola perdeu a sua agulha. Aceitamos que a vida é assim, independente da musica, ela simplesmente toca, aceitamos o duro, no duro, nessa coisa chamada engolir em seco, sem piedade. Aceitamos o 'sem você e eu'. Corredores vazios, livros mofados, ônibus lotado, café frio, música ruim, gente estranha, tudo isso, sem você e eu. E sem as conversas, claro, longas e intermináveis, até as quatro no telefone. Meus pés roçando tuas pernas, minha boca pedindo pela tua, meu corpo pequeno vestido num pijama bobo, perdido no meio do teu quarto esperando você chegar de algum outro canto da casa. E tudo e tudo e nada e nada. E vamos indo, como quem há muito tempo já se esqueceu de que horas são.
    Então você dormiu. Assim, como quem gradativamente vai caindo num lugar onde não se tem mais como sair. Você foi indo e eu fiquei aqui, puxando as cobertas sobre meu corpo, tentando a custo e a fio, a choro e desespero, salvar qualquer coisa como um sou de ser, de como era antes, desse desgastado nós.


 Annabel Laurino 




quarta-feira, 12 de novembro de 2014

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In my place, in my place
Were lines that I couldn't change
I was lost, oh yeah

Lonely

    Alguma coisa se partiu em cacos e algo se perdeu. Depois disso, depois do baque, depois da queda lenta e fria, dura sobre o piso frio e sólido, a coisa, a coisa nunca mais foi a mesma.
    O sol desponta na minha cara fresca matinal, recém lavada com cheiro de sabonete, o gosto de café ainda tão forte na boca quente, o sol das oito da manhã, meu cabelo vermelho reluz forte sobre um raio morno e eu caminho firme de encontro ao ônibus, eu sigo em direção ao rumo certo sem saber que rumo eu devo pegar. 
    O ar é rarefeito nessa cidade de pedras onde encontro sossego atrás das portas de uma livraria. Mas tudo me sufoca agora. Eu lembro de Cecília, eu me pergunto constantemente "em que espelho ficou perdida a minha face?'. E você me ronrona no ouvido quente se eu não penso em você e eu afirmo com a cabeça, sim, eu penso, eu penso em você as sete da manhã enquanto tomo o meu café forte e assisto ao noticiário, eu penso em você. 
    Eu penso em nós?
    Mas nós, quem?
    Você brinca com os meus dedos dos pés e eu tenho vontade de afundar a cara na curva perfeita do teu ombro tão branco, de encontrar teus ossos, te raspar a pele na tua barba. Você me chama de pequenininha e eu só penso em ficar mil anos com você. Mas houve a queda, houve o baque e tudo agora é uma mistura de sol forte, cidade vazia, sons abafados e café forte as sete da manhã. Alguma coisa se perdeu.
    Parece que alguma coisa vai endurecendo com o tempo, é isso mesmo? Parece que tudo tem por obrigação de alguma forma... se perder. 
    E eu penso em algum filme que não vimos, eu penso em algo que ainda não fizemos, em alguma viagem já planejada tantas vezes, planos refeitos mil vezes e lembro de tudo, desde o pequeno começo e vejo o quanto nossos rostos, agora pintados num quadro da memória,  mudaram, o quanto o percurso se tornou diferente e eu me pergunto se você ainda vai continuar brincando com os dedos do meu pé, se vamos ver todos os filmes que queremos ver juntos e se essa coisa quebrada pode ser colada novamente.
    Dói, eu sei que dói, e é por isso que eu caminho em direção ao ônibus procurando um rumo certo as oito da manhã, com gosto de café na boca e pensando em te ligar mas não ligo. Eu quase nunca ligo, nos últimos dias eu não ligo mais. É por isso também que choro, claro que você não sabe de todas as vezes que eu choro sentindo um vazio enorme aqui dentro e uma vontade insana de desaparecer por completo, claro que não. Claro que você não tem ideia da metade das coisas que faço sem você saber. E por conta disso ando me sentindo cada vez mais só.
    Talvez eu tenha sido a pessoa mais doida que você conheceu desde que veio ao mundo. Não me orgulho disso. A gente não pode mesmo mudar o que foi feito para ser. A gente só pode mudar o que somos num conjunto. Mudamos.
    Caminho com a lembrança quente dos meus braços enlaçando teu pescoço, da minha boca encontrando a tua no escuro breu do teu quarto as duas da manhã, você pegando minha mão e dizendo que tudo ia dar certo e eu lembro de tudo e tudo dói, então eu só caminho em direção ao ônibus que agora me espera, eu me pergunto sobre o futuro, eu sinto tudo aqui dentro, eu continuo, mas eu nem sei bem por que. 


Annabel Laurino 



segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Sobre os olhos e as luzes

    Nas conotações azuis dos meus dias, são seus olhos castanhos dourados que salpicam doçura onde antes havia tédio. São teus olhos que eu vejo quando eu fecho os meus, castanhos dourados, brilhando por trás das lentes de teus óculos lascados. São teus olhos que me seguem nas ruas, que lambem as curvas delineadas do meu corpo, que riscam no meu rosto palavras eternas e mais, escrevem os caminhos por onde eu devo ir. Teus olhos.
    Mas eles ainda estarão lá quando eu abrir os meus olhos? Eu já não sei mais, é recém segunda feira, falta muito para a semana acabar. Ontem era domingo, o pior domingo do ano. Sim, o pior domingo do ano. E hoje é segunda, como aponta o calendário. Chafurdo no café quente disposto sobre a mesa, pululo e danço em meio as minhas palavras que não são nem claras e nem doces, dolorosas. Dolorido-só. Já viu coisa mais horrível que essa? Dolorido-só.
    Dessa vez eu não fiz um coque no cabelo com um lápis colorido e nem liguei o som para escrever no embalo de uma musica gostosa, não há intenção de escrita, dessa vez é apenas eu mesma falando por mim, descontando nos dedos a pressão latente de um coração quebrado, amassado. Seus olhos não estão aqui agora, eles sumiram. Quem apagou a luz?
    Dormi a noite inteira, a mão ao lado do corpo, morta por cima do colchão quente procurando qualquer coisa vaga como a tua coxa, o teu braço, o teu peito ou o toque rijo dos teus pelos me roçando a mão. Dormi a noite inteira sem saber se acordava ou dormia um pouco mais, quando acordei era dia, o sol forte batendo na janela ao lado da cama, o telefone tocando, era você. Mas, teus olhos não estavam mais lá.
    Teus olhos. Teus olhos e você. Engraçado, minha avó dizia uma coisa interessante, os olhos são a janela da alma. Poético, clichê, que seja. Eu achava o máximo, eu com uns centímetros a menos, minhas pernas roliças e minha franja de boneca, achava tudo aquilo muito grande de se imaginar. Quer dizer que eu podia espiar uma pessoa por dentro dela mesma só de olhar em seus olhos? Genial.
    Quando olhei seus olhos eles eram tudo, eles eram o mar revolto em meio de um lugar gélido onde não existe calmaria. E se eu quisesse, e se eu fizesse, e eu fiz, eu sou curiosa, eu poderia espiar por dentro deles e ver uma paz amiga e serena, uma coisa muito branda, muito branca, era de uma alma clara e tranquila. Uma alma azul.
    E porque eu falo isso? Eu não sei, não há intenção. Sou só eu e o meu café espiralando sua fumaça aqui, nada mais, não há nada a ser dito e ao mesmo tudo. E eu digo lento, gaguejo no meio de uma frase, escondo nas entrelinhas, sussurro lentamente, eu digo claro que essa coisa ferrenha e estúpida, tão má e bonita, ela dói.
    Não era para doer, era para doar. Sim. O amor deve ser soma. Coisa aberta, fresca, nova, clara. Ah eu quase liguei agorinha mesmo para o meu amigo distante, o Zé. To afim de chorar um pouquinho no ombro de alguém, porque as vezes parece que eu sei lidar, mas eu não sei. As vezes parece que eu sou forte, mas eu nem sei de onde tiro essa coisa chamada força. Eu quase peguei o telefone, mas me veio outra coisa na cabeça e então eu esqueci. Já falei tanto de você para ele, contei de Paris, Gramado, o apartamento próximo a praia. Coisas boas. Dessa vez eu ia só chorar, falar de ontem, falar da dorzinha amarga que fica latejando no peito e que parece que ninguém sabe entender.
    O meu café e eu. Somos só nós dois. Eu lembrei de uma musica agora, uma musica francesa muito bonita, ontem mesmo, ao chegar em casa com um vazio imenso eu devo ter ouvido repetidas e inúmeras vezes e se não fosse tão dramático assim, mas já sendo, o mundo poderia ter acabado e salvado apenas aquela musica. Se esvaído em uma explosão lenta de faíscas douradas e azuis. A musica é linda, mandei para o Zé, tinha algo no meio que eu lembro agora, algo assim ”Balayé les amours avec leurs trémolos. Balayés pour toujours. Je repars à zéro.”.
    Coloco a musica para tocar. E ela toca, meneio a cabeça, penso nas luzes, nas luzes simplesmente. E penso nisso por um bom tempo.
     A unica pergunta que fica, dura e fria, escondida em um canto onde ninguém pode ver é essa "Quem apagou as luzes?".



Annabel Laurino


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

O Esconderijo, rijo e quente

    Na curva quente do teu ombro é onde eu mergulho o rosto. Mergulho dentre a pele tão quente e branca. Veias azuis, sangue pulsando. Na curva do teu ombro é onde mergulho no teu cheiro tão familiar, meu alecrim. Te cubro de beijos, te deixo uma marca. É nessa curva exata onde perdida nos teus braços eu me encaixo por fim em teu corpo inteiro, selando nosso encontro, repouso meu rosto. Me visto de você, me cobres a pele. Ah, meu amor...



Annabel Laurino

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Saudade Parisiense

    Isso não é Paris, eu bem que o sei. Abro as janelas do meu quarto e vejo o céu quase escurecido lá fora, vislumbro a cor amarronzada, com pinceladas de um vermelho quente e o negrume que toma conta agora de todas as árvores do quintal. Não é Paris, mas é algo bom e fico contente, gosto do que vejo, gosto desse lugar, dessa cidade de pedras e água. Gosto do ar que finalmente entra pelo quarto, esse ar gelado e perfumado que agosto trás, esse agosto que recém chegou. Dentro das formas e nuances perdidas lá fora, no mundo que tange através da janela do meu quarto, dessa caixinha azul por onde me perco e me encontro, eu gosto de imaginar que mesmo não sendo Paris, Hemingway tinha razão quando disse que onde estava, no seu quarto, produziria suas palavras sinceras, verdadeiras. Faço isso agora, dou vida as frases perdidas no fundo da minha cabeça congestionada de divagações e sou sincera. Tenho que ser.
    Ontem mesmo, por acaso ou coincidência, tive uma conversa que há muito tempo reservei apenas para as minhas próprias introspecções. E se não habitamos casas e nem lugares e nem cidades e nem países e sim pessoas? E se não importa nada disso, esses tijolos fabricados, essas argamassas endurecidas e essas paredes levantadas para nos abrigarmos se não existíssemos tão fielmente e tão verdadeiramente, de alguma forma, dentro de alguém? O que habita em mim? Eu habito assim em alguém? Pergunto-me isso enquanto vejo a luz refletida de uma janela vizinha acesa e a televisão acendendo e apagando enquanto alguém troca de canal. Eu sei quem habita em mim, eu sei o que habita em mim, ‘tenho em mim todos os sonhos do mundo’. E onde me faço morada?
    É sexta feira e eu nem acredito. Se eu contasse que alguns dias atrás tudo parecia um caos completo. Não que agora tudo esteja completamente bem, mas as coisas caóticas tende por entrarem no eixo de alguma maneira, e acho que é isso, as coisas estão entrando no eixo. Não quero ser esperançosa, não, eu só quero pensar que tudo está bem, que tudo pode ficar bem. Não é como se eu acreditasse nisso, é só que eu quero pensar nisso.
    Você pode me perguntar, e qual é a diferença? Por que você não quer acreditar, por que você não quer ter esperanças? Eu já tive tantas. Tantas esperanças, fragmentadas e profundas, por muito tempo foram minhas balinhas coloridas de açúcar. Hoje eu prefiro só pensar, pensar que tudo pode ficar bem e o que tiver que ser vai ser, não importa. Eu prefiro dessa forma e é assim que tem sido, é assim que tem funcionado.
    Meu som favorito, sempre tem sido desde então, é o da cafeteira gorgolejando, aquele ronco produzindo o melhor aroma do mundo, o de café recém-passado. Agora não que esse não seja mais o meu som favorito, mas possuo outros para a minha coleção, outros sons e aromas favoritos.
    Tenho descoberto pequenos prazeres da vida, pequeninos e pequenos grandes. Caminho pela cidade, compro discos de queijo na livraria do centro, vejo rostos e pessoas, pessoas e seus rostos cansados, ouço as buzinas desesperadas e vejo o desespero em olhos demasiado tristes. Há uma beleza nisso, mesmo que quase melancólica, mesmo que seja loucura admirar a tristeza assim, nos olhos de outrem. Mas não estou mais só, divido qualquer coisa como um sorriso, uma música, uma conversa, as minhas próprias mãos e eu inteira. Se isso me assusta? Muitíssimo. Muitíssimo e latentemente. Ignoro, continuo. A vida é um frenesi sem fim de abocanhar e morder as coisas mais doces, mais gostosas. Como receber beijos e flores azuis.
    Nos dias de chuva eu pulo poças d’água dispostas nas calçadas, me escondo embaixo de um guarda-chuva, vezes compartilhado, vezes sozinha, agora mais do que nunca, sempre compartilhado. Vejo as folhas secas chafurdando na lama, os jovens perdidos de botas compridas tentando desviar dos ônibus ensandecidos e em movimento, sinto frio nas faces geladas e escondo o pescoço no meu cachecol. Como diria o Caio, “na ultima sexta feira eu tive certeza, devo mesmo estar enlouquecendo”. Nas sextas feiras eu deixo para sentir saudade, chafurdo nas águas desconhecidas da qual vou adentrando, com medo, e por isso penso que enlouqueço, mas por gosto porque eu quero e porque eu sei, eu me sinto viva. Nessas saudades eu coloco uma musica para tocar, sento na janela do quarto, vejo o céu de inverno, penso, repenso e trespenso, e repito quase baixinho “Não é Paris, mas podia ser.”.
     Escrevi um bilhete recentemente, o começo tem por inicio algo assim “Nas reentrâncias das minhas entrelinhas misteriosas, tu me descobristes só, fizestes do meu tédio cotidiano o teu tédio também, me vestistes das tuas cores e experimentasses do meu mundo. Se mesclados numa singela mistura ambos os dois, veremos que nos enamoramos bem...”. Não irei contar como prossegue, mas a pouco eu o terminei e sorri ao final.
    Sexta feira. Não é Paris. Sexta feira agasalhada de saudade junto desse céu que agora, no fim dessas palavras já se veste de negro. Ah, sexta feira. Agosto. Quanta coisa mudou de um ano para cá, quanta coisa, quanta coisa já não existe mais e hoje são apenas borrões e lapsos de memória empoeirados num lugar distante dentro de mim. Hoje tudo faz sentido, hoje, nessa sexta feira de saudade, eu penso em rosas azuis, em coisas novas.
    Me vejo não mais refletida nos reflexos de um espelho onde deixei minha face, não. Me vejo pululando, repercutindo e respirando através de cada palavra que escrevo, cada ponto, cada vírgula, cada linha enviesada e cruzada em si mesma numa reentrância mista de sentimentos que não escondo, que não demonstro, que conto baixinho, assim, só para dizer no ouvido quente de quem procuro “Gosto tanto de você.”.
                                                                                                                  

Annabel laurino



ô, Ana


Mallu Magalhães

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Cigarra desaventurada nas entranhas da solidão

    Não me recordo a primeira vez que a avistei. Não, não. Agora tudo são nuances cinzas dentro da minha massa cefálica, tudo é uma nuvem esfumaçada do que existiu e eu não me recordo com avidez de todos os mínimos detalhes. Por exemplo esse, de quando foi a primeira vez que a vi. Porque, bem o sabe, poderia ser em qualquer época de minha vida, em qualquer esquina ou cruzamento, na padaria ou no metrô e eu, bem, eu não lembro.
    Mas eu me recordo muito bem quando eu a avistei de fato pela primeira vez. Quando a reconheci de uns desses cruzamentos da vida em que não me lembrava em meio as nuvens cinzentas e esfumaçadas de minha memória. Tão tentadoramente ela mesma que repercutia como o som de uma mordida em uma fruta, suculenta, deliciosa.
    Fumava seu cigarro tão distraidamente, tão perdidamente sozinha em meio a fumaça que subia sobre o alto de seus cabelos brilhando ao sol, que podia-se até pensar que tragava a vida, ou quem arriscaria também, que o tédio a tragava copiosamente através daquele único cigarro.
    Antes que você, leitor, queira a invejar ou sinta-se atraído, eu aviso: não o faça. Não se atraia por aquelas pernas, por aquele tom branco condensado no rubi de seus lábios bem desenhados, pois ela tem escondido no céu de sua boca ferina um desejo inabalável. O desejo de te devorar.
    Ah mon Cher, ela é uma devoradora, destruidora de corações. Vai mastigar você. Vai repartir você. Vai distroçar em mil pedaços todas suas esperanças construídas em anos, seus sonhos filosóficos que ditou a si mesmo em frente ao espelho do banheiro todas as manhãs, com as olheiras protuberantes de noites mal dormidas. Vai acabar com seu coração másculo e empedrado, isso não irá existir. Sentirás vontade de cantar um mantra, de chorar, de se entregar e depois partir. Não conseguirás. Ela plantará em ti o mais terrível dos sentimentos, a melancolia.
    Possui um riso cômico, meio infantil é verdade, meio histérico também, mas isso se deve ao fato de quão surpresa se sente com o ato de sorrir. Raramente sorri. É como a Senhora Darling de Peter Pan, que escondia o beijo secretamente, assim era essa dama, que escondia o sorriso, enviesado em meios aos lábios contornados de vermelho, raramente os curvava, e quando o fazia parecia sempre uma mesura, por simples educação.
    Dentinhos brancos e afiados se escondem atrás de seus lábios, fininhos e cortantes como pequeninas navalhas genuínas que vão devorar você, mastigar suas carnes. E adorarás. Implorarás em júbilo por mais uma mordida, por mais um corte sereno na tua pele acalorada. Pois ela te morde, mas no fim acaba por te beijar, acaricia tua cara desmantelada de cansaço, massageia teus ombros de pesos fartos. Ouvirá seus dramas como uma mãe, te amará como uma santa, se entregará a ti como uma puta. Te restará apenas a tentação. E não resistirás.
    Você a acha cruel? Eu não a acho. Falando assim, eu sei, bem que parece. Lembrando-me agora de quando a vi pela primeira vez, parada no meio do comício de um dia cheio, tantas pessoas passando em sua volta e ela era a única que parecia se destacar no meio daquele trânsito, daquela loucura. De vestido branco e os cabelos assim, caindo-lhe a tez. Eu quis perguntar seu nome, me aproximar, tocar seu rosto, saber se era real. Mas eu a conhecia bem, pois desenvolvia em seus atos um trejeito que eu bem já sabia e a reconhecia. Não precisava de informações que eu sei, ela me mentiria. Só iria ludibriar-me para depois me mastigar como sempre e como todas. Me atrevi aos detalhes, aos fundamentos. 
    Você não sabe como eu sei, mas assim como a dama escondia nos seus lábios o seu sorriso, escondia também embaixo da sua pele embebida de branco marcas profundas de solidão. Perdida demais em ser ela mesma. Perdida demais que repetia sempre os mesmos rituais, indo a livrarias e cafés, conversando distraidamente com os jovens nas boutiques e cinemas, embora não se recordasse depois dessas conversas, as esquecia de imediato. Preferia a solidão de seu próprio ser. Ninguém entendia o porque, tinha uma inclinação ao drama, ao romance, ao perdido e ao acaso.
    Acostumou-se em ser uma marca no asfalto, uma coisa corriqueira, um alguém, simples ninguém sem voz. Por isso a dama não possui nome, deste eu não sei nem se quer a primeira letra. Seu rosto eu vislumbrei apenas uma vez, que me recordo. Não me lembro se em uma avenida movimentada, em um final de março talvez. Não era ruiva nem loira, morena muito menos. Não defino sua idade pois poderia ser jovem, muito jovem, com aquele corpinho pequeno e de ombros estreitinhos. Mas seu ar teatral a denunciava e parecia mais velha, sua malícia a entregava, eu não saberia dizer.
    O que me chamou a atenção naquela pobre dama? Seus olhos, ah sim, seus olhos. Não a cor e nem a forma, mas a maneira voraz como ao mesmo tempo distraída, devorava o mundo ao seu redor, como se buscasse entre a apatia diária algum tipo de salvação.
    E por que te conto sobre essa dama? Para que tenhas cuidado, meu caro. Caso a encontres em meio as vielas dessas ruas noturnas, caso a aviste nos recônditos escondidos dessa cidade de pedras. Eu mesmo não esperava, agora convivo com a solidão da sua imagem presa na minha memória meio gasta, estarei sempre a espera de a reencontrar, eu sei.
    De toda forma, se a encontrar, cuidado. Sei que não resistirás ao vícios, ao olhar, as pernas e nem aos cabelos perfumados de sândalo quem sabe, ou patchouli talvez. Escutarás uma música e se sentirás vivo. Te aviso. Comprarás um terno novo, será como ir a missa de domingo. Te sentirás salvo, embriagado, embebido, bêbado de ilusão. 
    Nunca mais a vi depois daquele dia de sábado, vestida de solidão.




Annabel Laurino

domingo, 27 de julho de 2014

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    [...]Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. Que tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como - eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a concha ao lado da conha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te estendo a minha mão.
    No meio da fome, do comício, da crise, no meio do vírus, da noite e do deserto - preciso de alguém para dividir comigo esta sede. Para olhar seus olhos que não adivinho castanhos nem verdes nem azuis e dizer assim: que longa e áspera sede, meu amor. Que vontade, que vontade enorme de dizer outra vez meu amor, depois de tanto tempo e tanto medo. Que vontade escapista e burra de encontrar noutro olhar que não o meu próprio - tão cansado, tão causado - qualquer coisa vasta e abstrata quanto, digamos assim, um Caminho. Esse, simples mas proibido agora: o de tocar no outro. Querer um futuro só porque você estará lá, meu amor. O caminho de encontrar num outro humano o mais humilde de nós. Então direi da boca luminosa de ilusão: te amo tanto. E te beijarei fundo molhado, em puro engano de instantes enganosos transitórios - que importa?
    (Mas finjo de adulto, digo coisas falsamente sábias, faço caras sérias, responsáveis. Engano, mistifico. Disfarço esta sede de ti, meu amor que nunca veio - viria? virá? - e minto não, já não preciso.)
    Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos demorados quanto minhas insônias insuportáveis. Tanto meu ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu ciclo etílico bukovskiano. Que me desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. Tanto faz, e sem dizer nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como eu sou o outro ser conjunto ao teu, mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo de mel na minha boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da minha mão crispada de solidão. Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e as pessoas não tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do outro e misturar coxas e espíritos no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-igual-sedento-de-não-solidão, bicho-carente, tigre e lótus. Preciso de você que eu tanto amo e nunca encontrei. Para continuar vivendo, preciso da parte de mim que não está em mim, mas guardada em você que eu não conheço.
     Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar. [...] Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes destas palavras todas cairem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do embuste: preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse possível, como se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã.






Caio Fernando Abreu 

(Crônica publicada no “Estadão” Caderno 2 de 29/07/87)


terça-feira, 22 de julho de 2014

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"Olho tudo isso que vejo e não tem outra magia além dessa, a de ser real, e vou dizendo lento, como quem tem medo de quebrar a rija perfeição das coisas, e vou dizendo leve, então, no seu ouvido duro, na tua alma fria, e vou dizendo louco, e vou dizendo longo sem pausa - gosto muito de você gosto muito de você gosto muito de você."


Caio Fernando Abreu

segunda-feira, 14 de julho de 2014

1/2 ?

    Afaga essa minha cabeça de cabelos bagunçados e pensamentos tão tempestuosos. Me ajuda? Sim, me ajuda nessa crise diária de enfrentar o espelho com a cara lavada e não saber o porque que eu sou. Vicia em mim, cola em mim e me consola. Consola com um café, com um beijo, uma surpresa qualquer. Me faz procurar nos seus braços qualquer coisa como paz, tranquilidade, refugio e sossego. Seja o meu porto seguro, seja minha toca do coelho, alguma coisa palpável.
    Eu sei que ando muito desesperada, muito tudo. Eu sei, culpa do tempo. É esse clima todo daqui, não combina comigo, não me encaixo. E esses cabelos em pé, essa cara de sono, esses olhos vidrados, é tudo desespero. Não sei dizer. É a estática.
    Eu estou farta de ‘um meios’, ou de ‘três quartos’, não aguento mais rabiscar metades nos meus papéis, não aguento mais rabiscar metades na vida inteira. Porque tudo é feito de metades? A vida é um recheio feito só pela metade, o resto é fim. Literatura.
    Acho que os velhos e encardidos com suas roupas de final de domingo dentro daquele boteco lá fora onde eu consigo ver daqui de dentro pela janela do ônibus, concordam comigo. Seus cafés são servidos pela metade, assim como as pingas. E eles pagam um atrás do outro, todos eles. Porque o costume mantém o hábito e a coisa é assim, é um ciclo. A diferença é que eles sabem, em seus íntimos, e tem a cachaça como consolação.
    Mas não quero cachaça e nem pinga. E nem boteco nenhum, e nem reclamar em mesa de bar, colocando uma musica brega para tocar num jukebox dos anos 70 com luzes de néon. Nada disso. Mesmo que minha inclinação ao drama peça algo assim, mesmo que o caos de agora peça algo assim.
    Quero você e seus braços fortes, suas mãos, seus pés, suas pernas e seu corpo inteiro, inteirinho. Depois eu quero o que fica do lado de dentro, o que não pode ser tocado a não ser com os olhos, com o peito. Por falar nisso, me toca, vai. Me puxa, repuxa, abusa. Toca. Toca no fundo e me faz acreditar. Me para no meio do rabisco de uma metade no canto de uma folha qualquer e me faz ter um café completo, quente, encorpado, sem ser pela metade. Ou melhor, me faz ter você todinho, sem ser pela metade. 
    Ah, esses momentos de misantropia, se eu pudesse me desfaria de todos eles. Aglutinam minhas horas solitárias multiplicando cada segundo em duas horas, bebo o chá de cor vermelha, caminho, sinto o vento gelado batendo no rosto. Tudo gira sem sair do lugar.
    Eu não quero ser metade e nem um vazio inteiro. Eu quero transbordar. Eu quero o mais de todos os mais e muitos de um todo. Eu quero tudo. Com você.




Annabel Laurino 


domingo, 13 de julho de 2014

O disco e a Vitrola

    Quero que você fique, que você fique. Quero que você fique. Começa assim baixinho, uma melodia calma, clarinha, bonitinha. Cantada calmamente soa devagar até que finalmente a agulha encontra o disco e ele começa a rodar na vitrola então torna-se mais precisa, mais urgente, e roda e roda e o som se espalha como um suspiro. Quero que você fique.
    Quero que você se torne feixe de luz brilhante que irá pulular contente no teto do meu quarto, quero que você seja doce como jujubas coloridas, daquelas minhas favoritas, as azuis, que lembram muito jasmim, assim, docinhas. E por falar em lembrar, não quero te lembrar nada que possa ter sombreado no seu passado algo bom ou ruim, quero ser sua coisa nova, brilhante, que irá iluminar algum recanto bom da sua vida. Deixe o passado para depois, onde ele deve ficar, porque não existe mais tempo para ele.
    Por isso mesmo, eu não quero ser para você nada que já tenhas tido. Quero ser presente novo, sua surpresa, seu gosto bom. Assim como eu quero. E que tenhas lugar no meio da sua estante para mais um livro já meio amassado, com páginas rabiscadas e orelhas marcadas, porém em sua defesa, existem coisas nele, frases e segredos, principalmente nas entrelinhas, que ainda ninguém leu. E você pode ler.
    Que eu seja para você o que ainda ninguém foi. Pode ser até um reflexo, uma paisagem outonal, uma pintura, um sorriso. Que você faça por mim o que não fez por ninguém, que faça comigo o que não fez com ninguém. Porque não haverá passados, não haverá coisas velhas. Algo muda perto de você porque tudo se faz novo. E isso faz sentido agora.
    Como um disco e uma vitrola, nós dois combinamos bem. Como uma dupla vintage, meio démodé, meio blasé e que fica cute, eu acho cool. Nós nos enamoramos bem.
     Vamos ouvir discos velhos na vitrola do seu quarto, vamos nos beijar por horas e horas e horas. E depois rir descontroladamente um com o outro ou um da cara do outro. Deixa eu fazer manha, a minha manha, enrolar meus pés nas suas pernas, ronronar baixinho quando o beijo estiver bom, dizer que não quero que você me abrace mesmo já envolvendo meus braços em torno da sua cintura magra e que eu gosto tanto. Deixa eu me deliciar com os seus detalhes, com as suas pernas compridas, seus ossos protuberantes, suas costas brancas, seus olhos fortes.
    Se você não quiser, tudo bem. Estou enviando para você minha caixinha de biscoitos da Alice, mesmo assim. A regra é clara. “Coma cada um deles”, servem para isso. E você pode morder devagarzinho, para se deliciar com calma.
    Se chover não tem problema, a gente corre no meio da chuva, ri, pula as poças, se molha, claro, faz parte. Não tem problema. A gente até desafia o tempo e para no meio do caminho, se beija e tudo bem, volta a correr depois.
    Descobrir você ou você ter me descoberto foi como não saber que ainda estavam vendendo de ultima hora os ingressos da minha banda favorita e que eu ainda poderia me divertir e ir ao show. Não hesitei, eu comprei os ingressos. Foi foda, foi incrível, foi surpreendente. Descobrir você foi assim.
    De repente tudo isso não passa de um sonho, brincadeira, coisa que a gente nem irá saber definir. Talvez depois de amanhã você queira ir embora, talvez eu tenha que ir embora. Talvez tudo fique entoando como uma nota de uma flauta soando suave num disco que ainda roda na vitrola sem ninguém ouvir. Faz parte, nós sabemos e corremos o risco.
    Depende se você quer ficar, se eu vou ficar. Mas o que importa é que ainda temos Paris, ainda temos os Macarrons para serem provados, ainda temos Gramado, ainda temos os discos, os livros, as bandas e Camel. Ainda temos um universo nosso que sem querer e talvez sem nem mesmo perceber moldamos secretamente sem permitir a entrada de ninguém a não ser de nós mesmos. 
    E dançamos, dançamos sobre a luz da lua que banha nosso universo mágico que ninguém pode ver, a não ser os reflexos ofuscantes que emanam dele. É cheio de literatura, música e sons, e beijos e coisas doces e tudo e tudo. É um universo Polisipo, todo Polisipo. A nossa pausa da dor. I’m your recall, you are my locomotive breath.




Annabel Laurino

hiptonized:

 vintage/nature

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Chafurdando

    Ei Zé, tudo bem? Quanto tempo que não nos falamos, ein amigo? Quanto tempo faz que não compro papel de cartas e te escrevo algumas palavras meio doloridas desses dias cotidianos demais para o meu gosto meio doce. Ultimamente o que me falta é luz, luz que clareie forte nessa minha cabeça com pensamentos tão congestionados, ando até meio fatigada, sempre quando acho que a coisa vai engrenar ela desanda e acabou, já era.
    Não to falando de uma coisa especifica não, eu to falando no geral. Tem tanta coisa que eu achei que ia dar certo e não deu, não teve jeito. E depois claro, eu nem fiz mais questão que desse, mas sabe quando parece que vai dar?
    De qualquer forma eu não te escrevo essas palavras para elas serem lidas, te escrevo essas palavras para elas serem desenhadas na sua memória, Zé. Porque se você apenas ler, sentado no seu banco, em frente ao fogo, tomando seu copo de café e esquentando os pés já envoltos nas suas meias de lã velhas, eu sei que você vai esquecer. Que vai entender que tudo isso é apenas um drama, nada mais. Mas não é drama, juro que não é. Dessa vez não.
    Ontem acordei num solavanco, achei que a casa tava caindo. Deitei na cama sem a intenção de dormir e quando menos esperei eu estava num sonho daqueles mais loucos, mais viajados. E quando acordei achei tudo estranho, sabe quando bate um reflexo de sol na sua cara nas primeiras horas do dia e soca você com aquele ‘acorda, acorda, acorda’ insistente? Então, foi isso. Acordei daquele sonho com um reflexo de luz que me cegou, me deixou tonta, me deixou meio zonza e depois clareou os cantos mais estranhos da minha mente, aqueles que eu não estava conseguindo ver.
    Se foi culpa do sonho ou não, eu não sei Zé. Não sei dizer.
    Fico chafurdando dentro desse café amargo nesse exato instante e me sinto mergulhar nessa água de mistura negra. Eu mergulho e depois volto. Zé, quando é que alguma coisa nessa minha vida vai ser permanente?
    As vezes, quando não tenho nada para fazer eu me pergunto quando será que irá surgir o Ultimo dos Moicanos a habitar nessas terras isoladas por onde me encontro e então, decidir ficar. E sim, eu sei que tudo em mim é muito estranho, é muito caos, é muito tudo. Eu sei. Sei também que a minha casa é muito Weasley demais, meio torta, as vezes se tem a impressão de que realmente irá cair, que nada faz sentido e tudo é caótico e turbulento. Culpa de saturno, meu caro. Não importa. Quando é que alguém simplesmente irá ficar por aqui, se encantar por aqui, se encaixar nas rachaduras das paredes e se interessar pela bagunça do meu roupeiro?
    As coisas de dentro são muito mais importantes daquelas que estão de fora e eu me pergunto onde estão essas coisas de dentro que às vezes nem eu mesmo enxergo. Alguém pode enxergar para mim?
    Ah Zé, se você soubesse, se você imaginasse... Eu ando por essas ruas, eu vejo tanta gente, nada me interessa. É apenas em meio aos livros onde me encontro, em meio aquelas palavras grafadas ali, há tanto tempo, saídas de sabe-se onde e quando e porque. É no mundo de outrém por onde vago, mas o que eu queria mesmo era habitar aqui onde fico sempre, embaixo da soleira dessa janela velha e descascada, procurando poemas nos jornais bolorentos de noticias feias e tentando encontrar a beleza em rostos cansados.
    Te escrevo essa carta Zé, para você saber que ando inclusive dormindo muito. Quase sempre que posso e quando consigo. Durmo e depois acordo, e sonho quase sempre, quando lembro. Mas o que eu queria mesmo é que alguém ficasse, que combinasse com as paredes desse quarto, nesse clima. Não, eu não quero alguém, quero o alguém. E você sabe Zé, as vezes eu sei, eu me convenço, eu devo estar cada vez mais só. E é o que eu quero mesmo, estar cada vez mais só. Essa incapacidade de encontrar alguém que nos entenda cansa tanto, da tanto trabalho que ficar só como agora, te escrevendo essa carta, tomando meu café, olhando para meus livros e contando os dias é muito melhor, é mais saudável, é mais aceitável. Sabe, aceita-se, aceita-se os fatos.
    O fato de não saber lidar, de não corresponder, de não saber dividir ou ser. De não se fazer entender se não por partes ou por cifras e códigos e entrelinhas. É tudo entre pausas e não flui. E cansa. Se corre o risco.
    Queria mesmo era estar em Paris. Ah, Paris! Como sonhei esses dias, exatamente como sonhei esses dias. Como em Paris é Uma Festa de Hemingway. Estar lá, respirar Paris, ir nos lugares e nas ruas mais escondidas, mais feias e mais bonitas, comer as comidas mais gordurosas e gostosas. Paris e seu point zero, ainda estarei lá. Que tal, Zé? Topa no próximo inverno? Eu e você, juntos com nossa Polaroid, podemos comer crepes de Nutella e dançar no Jardim das Tulherias. 
    Enquanto isso, enquanto não se pode ter tudo, nós vamos vivendo. Tapando os buracos, mastigando os vazios que nos faltam. E tudo bem.
    Te escrevo, Zé. E abraços, com cheiro de jasmim.


Annabel Laurino



sexta-feira, 4 de julho de 2014

Eco e cacos

    Alguma coisa, coisa essa que eu não sei o que, porque não tem nome e ninguém sabe se existe ou não, se é matéria ou imaterial, essa coisa quebrou-se. Partida em cacos, se estilhou no chão. A coisa caiu e quebrou-se. Causando aquele som agudo de algo que se quebra, que estilhaça-se em cacos, aquele som que quebra o silêncio, corrompe o monótono, o som de algo que impõe caos em algo que antes era simplesmente silêncio.
    Quebrou, mudou, não é mais o mesmo. No mesmo instante em que alguém atravessava a rua, que um cigarro era acendido, que a criança começou a chorar, que o senhor de idade entrou no consultório médico, que o café foi servido, o jornal aberto, o dinheiro gasto, o choro derramado, o abraço dado, o beijo proibido, a mentira contada, a fome saciada, tudo e tudo, nada e nada. Foi por um segundo. Um pequeno segundo. Ninguém soube de onde veio, eram tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, o que é um algo sem nome caindo no chão? Nada, não tem importância. Levantaram os ouvidos quando o barulho se fez presente onde antes era apenas aquele silêncio, mas não se deram o trabalho de procurar os vestígios, de analisar as provas, de ver de onde vinha aquele som de eco que repercutia após a queda. Havia outras coisas das quais se preocupar.
    Ela foi embora e ele nem viu quando ela foi embora.  Ela juntou todas as coisas, não as roupas, as fotos ou os livros, nem se quer se preocupou com o casaco favorito, seu marcador de páginas ou algo qualquer, nada desse tipo palpável, ela simplesmente juntou as coisas, os retalhos descosturados daquela relação maltratada, pegou o que era seu por direito, o que era dele ela deixou, não quis mais. Juntou tudo, saiu pela porta da frente. Ele não viu. Ele ouviu sim algum som estranho soando firme naquele estranho silêncio, mas não parecia importante, ele continuou pintando cores nas paredes de seu mundo encantado.
    Tão importante quanto um choque drástico, um apagão, o real caos, a guerra. Aquele som mudou tudo, aquela coisa quebrada deixou rastros de minúsculas evidências que alteraram todo o sentido da história, da história deles. Ele nunca mais viu aqueles pequenos pés se agitando na beirada da sua cama, aqueles pezinhos de unhas pintadas de cor de rosa, ele nunca mais avistou aqueles cabelos bagunçados numa manhã de domingo, nunca mais a viu passando delineador no espelho do seu quarto, não cheirou mais o seu cheiro, nem sentiu suas coxas, não se lembrava mais com exatidão a cor daqueles olhos, se castanhos ou quase verdes, tanto tempo passou e alguma coisa mudou.  Aqueles mesmos olhos que o olharam com incredulidade, com repulsa, com medo, com repreensão, “por que você não ouviu quando eu deixei a coisa cair? Eu pensei que você iria ouvir, eu pensei que você se importasse. Por que você fez isso?”. Não houveram palavras pronunciadas, apenas esse simples olhar que disse tudo.  Pediu tudo.
    Se ele tivesse levantado do sofá para ver através da janela talvez teria visto a coisa repartida em cacos no chão, talvez se tivesse parado por um segundo de viver suas pinturas naquela parede colorida e ilusória ele teria visto as iminências. Eram tão simples. Talvez ela nem tivesse ido, ela poderia ter ficado, ajudado a reconstruir os cacos, a conviver com as rachaduras.
    Através dessa lente caleidoscópica podemos observar o mundo gigante e pequeno, pequeno e gigante. E lá está ele caminhando por aquela praça vazia, oito horas da noite, sentindo os ecos quase mudos de algo que se perdeu. Ele avista um corpo de um homem sentado num banco à frente e parece  perdido, ali sentado. O homem abraça o próprio corpo, mas não parece respirar e nem se quer se move. Ele se pergunta se existe vida ali dentro, e que tipo de vida, que coisas seriam aquelas que se passam por dentro de alguém que se senta na praça as oito da noite e abraça o próprio corpo, como para não sentir o peso do mundo. O peso do mundo.
    Agora ele já sabe que ela foi embora. Agora ele entende, recebeu as mensagens, entendeu os códigos, ainda ouve os ecos, ele ainda sente a partida, a coisa quebrada. Mas tudo bem, acontece, teve que acontecer. Aconteceu não porque ele não ouviu ou porque ele não deu importância. Aconteceria de qualquer jeito, é assim mesmo.
    Caminha entre as pessoas e pensa que a cidade a noite é melhor que de dia. Ele ama a noite, pensa nas luzes da cidade, nas sombras das luzes, pensa na coisa quebrada e perdida, pensa na vida e pensa nas pessoas ainda encerradas em escritórios cobrindo o expediente, fumando seus cigarros, bebendo os seus cafés quentes, trabalhando e vivendo. Vivendo e trabalhando. Ou seria vivendo e perdendo? Vivendo e sentindo o eco. Vivendo e ouvindo o eco de coisas que se quebram e ninguém se importa. Vivendo e voltando desesperadamente ao passado, ao segundo exato, aos cacos repartidos no chão, tentando freneticamente juntar todos eles. É em vão, é em vão. Aceitação é o primeiro passo, vivendo e aceitando.
    Talvez seja isso que aquele homem sentado no banco da praça e abraçando o próprio corpo sentia, a aceitação muda, a aceitação sem palavras, o fechar de olhos em consentimento, o saber exato de que não há o que possa ser feito.
    Bilhares de coisas sem nome quebram-se por dia. Ninguém ouve de fato. Todos continuam ignorando os ecos. 




Annabel Laurino 


segunda-feira, 30 de junho de 2014

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Confusion in her eyes that says it all.
She's lost control.
And she's clinging to the nearest passer by,
She's lost control.
And she gave away the secrets of her past,
And said I've lost control again,
And a voice that told her when and where to act,
She said I've lost control again.


She's Lost Control - Joy Division 

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Luz Negra




Sempre só
eu vivo procurando alguém
que sofra como eu também
mas não consigo achar ninguém




Cazuza

quinta-feira, 26 de junho de 2014

O Quarto

    Ao contrário desse documento branco por onde começo essas frases que te escrevo, inóspito e sem nada, aquele quarto era escuro. Da mesma forma que agora, onde esse texto toma forma, textura e cor, o quarto no escuro se acendeu pela luz comprida que entrava pelas frestas da janela. E lá estava ele e lá estava ela. Ela e ele. Poderia repetir isso mil vezes e o gosto seria como coisa doce na boca, aglutinando todo um conjunto de coisas que estão por trás, nas entrelinhas desse simples e tão grande “ele e ela”, onde a língua encontra o céu da boca duas vezes num mergulho perfeito e depois volta. É gostoso.
    Seus abençoados corpos nus beijaram-se na languidez daquela tarde de chuva. Seus corpos nus se encontraram como duas perfeitas formas estrelares que se abençoam num véu escuro e denso no universo galáctico.
    A boca dele encontrou o corpo dela. A mão dela encontrou a nudez dele. O cabelo dela se abria sobre os travesseiros como um leque loiro e ruivo, que confuso. As mãos dele eram ágeis, carinhosas, precisas. Ela não sabia se ele havia entendido, se ele enfim conseguia ver seus grandes olhos brilharem no escuro ou não, se ainda era uma incógnita. Ele arfava denso e respirava profundo. Ela não queria que ele parasse, que a mão dele se afastasse das suas pernas, que a sua barba parasse de roçar no seu ventre.
     Era uma dança bonita de duas mentes fundidas em um e dois corpos vagueando juntos sobre o colchão, sobre a colcha, sobre a pele tremida e arrepiada, sobre os pelos e os gostos, sobre os lugares antes escondidos pelas roupas agora empilhadas no chão, em desordem. Dançavam.
    Máscaras na parede, livros e mais livros por toda a estante, uma máquina de escrever e um violoncelo na parede, tudo encoberto pelo escuro do quarto.  Lugar familiar aquele, longe da cidade, longe do comício, das buzinas dos carros, dos motores dos ônibus, dos passos apressados das pessoas correndo para lugar algum. Familiar porque era um pedaço de um refugio quente e pertencente aquele corpo deitado sobre o seu, refugio parecido com o dela.
     Era como se nada mais existisse, só a respiração dele e o coraçãozinho dela, batendo e batendo naquele peito de seios desnudos e brancos. A chuva poderia ter cessado, ou não. Algum cachorro latido, o telefone tocado, a televisão ligada, o jogo passando, alguém chamado, o mundo se virado em cacos repartidos e eles não teriam percebido. As horas passando. Ela perdida na branca pele dele, nos braços dele, no calor e nos olhos profundamente escuros como um pedaço de galáxia. Nada mais estava escondido, não era como as caixas de cigarros atrás dos livros nas prateleiras, ou as palavras não ditas. Era real, palpável, firme, latente. Era aquilo e era para ser. Sabiam os dois.
     A boca dele procurava a dela e em seguida vinha aquela mordida, forte e forte. Depois virava carinho, o tesão virou um afago, tudo bem. Alinharam-se nas cobertas, sólidos e maciços, reais e instigados. Ela pensava no que recém havia lhe acontecido. Pensava na loucura diária, na aventura, na adrenalina, no desassossego do seu coração batendo forte e de repente tão calmo, tão calmo que flutuava. Deitou de bruços e respirou o ar daquele quarto fechado, respirou o cheiro da pele daquele corpo ao lado do seu, cheiro bom. Respirou os golfos de ar que a vida estava lhe dando, expirou profundo e lentamente enquanto a vida bebia de suas carnes quentes, e gostou. Sentia-se viva.

      


   Annabel Laurino


sábado, 21 de junho de 2014

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   “ - [...]O certo é que não persistirei como sou – devo então renunciar em consideração a quê? Pertencer a um homem a quem não amo simplesmente porque um dia o amei? Não, eu a tanto me recuso; amo a quem me agrada, e faço felizes todos os que me amam. Feio isso? Não. É pelo menos muito mais belo do que se eu me regozijasse dos tormentos provocados pelos meus encantos e virtuosamente me desviasse do pobre que se consome por mim. Sou jovem, rica e bela, vivo serenamente para o desfrute e para o gozo.” 




A Vênus das Peles - Sacher Masoch 



terça-feira, 17 de junho de 2014

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  "Onde é que ela aprendera aquela depravação quase imaterial de ser profunda e dissimulada?" 




        Gustave Flaubert in Madame Bovary - pag 267

sábado, 14 de junho de 2014

O Poema

    Decidiu naquele dia fatídico, cinza, preto e branco, de nuvens pesadas e frio arranhando sua pele, que pintaria suas unhas e os lábios de vermelho carmim. Em frente ao espelho de seu quarto, inclinou-se como a menina que ainda era no seu corpo de uma mulher que ainda não reconhecia até que ponto, onde e em que parte da história havia crescido. Perpassou o batom em seus lábios secos e sem cor, até tomar forma e delineio da cor vermelha carmim. Fez o mesmo com suas unhas, satisfeita, esperou que secassem enquanto tomava seu chá deixando com que a marca de seu batom se instalasse na borda cristalina e branca de sua xícara de boneca.
    Ainda tinha sonhos ruins a noite. Morar sozinha ainda era estranho e a falta que lhe faziam seus pais doía crivelmente em seu peito como uma dor não suficientemente sofrida. Olhava os cartazes de viagens, estava sempre por dentro das promoções e pacotes de cruzeiros, mas queria mesmo era viajar por mais de um mês ou dois para um lugar onde não se sentisse oprimida pelo prazo de retorno, pensava em algo como Itália, em algum vilarejo ou Irlanda, nos recônditos de Dublin, pensava em algo como a França, Paris e a Notre Dame. Queria sair de onde estava, precisava ver algo que enchesse seus olhos para além do que estava acostumada a ver todos os dias.
    Tomava dois remédios coloridos para dormir, nas suas mentiras a si mesma brincava que eram apenas doces, doces coloridos que a fariam descansar por algumas horas até o próximo dia chegar, o que era sempre extenuante, quando o outro dia chegava. Ouvia musicas, estudava seus exercícios de alemão, lia poesias, já sabia tudo sobre Caetano e queria entender como era viver em 1820, sentia-se uma refugiada solitária em seu mundo insólito no meio de uma terra de ninguém.
    Um dia desses, antes do dia fatídico chegar, estava caminhando nas ruas da cidade e avistou um homem do outro lado da rua. Agora enquanto repensava os fatos não saberia dizer porque aquele homem em especifico havia chamado sua atenção. Concluía agora que não era um homem qualquer, era alguém que carregava livros em seus braços. Ele estava parado em frente a livraria e olhava atentamente através de uma longa vitrine, para os livros em exposição. Olhou-o olhar os livros, olhou-o atentamente e discretamente com o máximo de cuidado que ambos requeriam fazer. Era alto e claro, tinha uma luz bonita que emanava de si, parecia gentil e tranquilo, seus ombros não carregavam pressa, suas faces eram bonitas, iluminadas. Seus olhos ela não podia ver, pois estavam perdidos nas capas duras e nas lombadas douradas, o imaginava castanhos clarinhos, como seus cabelos lisos e curtos.
    Não chamou-o, não fez menção de se aproximar, de falar sobre livros, não quis interromper a cena. Achou tudo tão bonito, aquele sol de final de sábado batendo sobre seu cabelo e seu suéter vermelho, não queria ser ninguém para ele e nem que ele a visse naquele momento. Ela só queria observar.
    Ele foi embora, caminhou a passos lentos e subiu a rua. Ela ficou. Ele não a viu e ela não sabia seu nome. Nunca mais se viram.
    Nesse dia fatídico em que começa a história, ela decidiu que iria voltar a encontrá-lo. Como, ela não sabia ainda, mas precisava de alguma motivação em sua vida assim tão águas mornas. Pintou as unhas e os lábios de vermelho porque pensou que assim ficaria mais bonita, e de fato havia ficado. Vestiu-se e saiu. Deixou metade de seu chá esfriando na mesa da sala.
    Não sabia por onde começar a procurá-lo. Não sabia seu nome, seu endereço, nem mesmo a cor de seus olhos ou o som de sua voz. Sabia apenas que sua imagem já havia sido costurada em sua memória, não esqueceria tão facilmente. Se o visse de costas talvez soubesse distingui-lo em meio a multidão, reconheceria as costas magras, as pernas longas, o jeito de caminhar, o cabelo e o alto de sua cabeça confiante. Mas a sorte poderia não estar ao seu favor e por isso sentiu medo, esperava ansiosamente encontra-lo. Desesperadamente acabar com aquele vazio simultâneo que hora ou outra a mastigava por dentro e a corroía. Queria uma nova face sobre o seu mundo, queria ouvi-lo falar 'olá', e não sabia porque mas queria encontra-lo. Talvez ele fosse seu companheiro de poesias perdido por ai, esperando que o encontrasse. Talvez fosse ele que viajaria com ela para outro país, fariam torta de maça juntos e daria errado, ririam um do outro, descabelados e confusos em um sábado de manhã. Talvez, talvez.
    Foi em direção a livraria, a rua estava um caos, ônibus, barulho e vozes e buzinas e loucura cotidiana, pessoas passando, pessoas apressadas passando, trafego e sinaleiras mudando de cor, pessoas passavam em frente umas as outras e não se preocupavam em se olhar. Não havia ninguém em frente a vitrine da livraria, chegou mais perto e se pôs a olhar para ela, através dela. Livros em exposição enfeitavam a vitrine, tão bonita. Olhou um a um e depois esqueceu que os havia visto pois se sentiu tola. Ali parada, vestida em vermelho esperando encontrá-lo em frente ao mesmo lugar. Era muito para tão pouco. Sentiu-se pequenina em frente ao prédio com tantas pessoas em volta.
    Decidiu entrar, o peso e o desanimo eram novos amigos abraçados em seus ombros, sentimento familiar. Caminhou em volta da livraria, olhou as prateleiras e foi para onde estavam os livros de poesia.
    Uma voz atrás de si chamou-a, não pelo nome, mas o tom dizia que era com ela mesma a quem se referia e virou-se. Era ele, ele mesmo, o rapaz da vitrine. Alto e claro, luminoso e gentil. Era ele. Vestia o uniforme da livraria e trazia um sorriso gentil. E seus olhos, castanhos claros, exatamente como havia imaginado. Perguntou "Em que posso lhe ajudar?" e ela não soube responder, talvez poderia ter dito que em tudo ou contado que o livro que ele carregava naquele dia em que o havia visto ela já havia lido também e era ótimo e era lindo e amava aquela parte em que o poeta dizia que tinha em si mesmo todos os sonhos do mundo, mas não queria ser assim tão louca e sorriu, olhou para seus pés, envergonhada e tímida. Poderia ter dito tudo, deveria ter dito. "Ajude-me em tudo.", mas não disse. Não ousaria. Ousaria em suas unhas e seu batom, mas não assim, dessa forma.
     Comprou um livro com ele, do escritor que ela já sabia que ele gostava e durante a compra conversaram sobre o poeta, falaram de seus versos favoritos. Seu nome ela ficou sabendo e ele perguntou o dela também. Disse no final da conversa que já a havia visto no ônibus, dia qualquer, lendo o tal escritor, mas não quis interromper a leitura e nem a calma em que ela estava, disse assim mesmo, "você parecia tão calma e luminosa lendo o livro, não ousaria interromper.". Mal sabia ele. Trocaram os telefones. Voltaram a se ver. Ela usou tantas outras vezes a cor vermelha e de todos os sonhos do mundo, dentro de si, ela ousou fazer-se. Realizou-se. Meses depois, saiu da agência de viagens, passagens compradas e o destino era Paris, na França.



Annabel Laurino 
   

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Moon

"Sem pressa fico por aqui
Fecho os olhos pra me decidir 
Qualquer coisa vai me acontecer
Algo muda perto de você

It might be soon, my heart changes with the moon"






thiago Pethit 

quinta-feira, 12 de junho de 2014

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"Me nego a viver em um mundo ordinário como uma mulher ordinária.
A estabelecer relações ordinárias. Necessito o êxtase. Não me adaptarei ao mundo. Me adapto a mim mesma."



Anaïs Nin

terça-feira, 10 de junho de 2014

Entre a fina linha, linha torta

    Ele me tem na ponta da caneta. E me escreve, me delineia, me rascunha, me usa, me abusa. Faz de mim um esboço grosso de todos os traços mais gritantes. Ele me rabisca, desenha minhas linhas em palavras que convém dizer e depois apaga, me apaga, por não saber se continua, depois escreve. Me esconde entre versos tortos, me guarda secretamente nas entrelinhas.
    Sou foto tirada e agora memória da ponta de sua caneta azul, que pinta o traço no seu caderno bonito de capa dura. Sou a imagem presente na sentença de suas palavras. Eu vivo agora, não sou mais pensamento torto e morto, que recria. A literatura me salvou, enfim.
    Dentre os vãos mofados dessa cidade bolorenta e velha, e suja e feia, cheia de pedras e pichações, cansaço, dinheiro, assalto, comício, a fome, o interrupto, o extensivo, a burrice, a ignorância, o vicio, o cigarro, a musica alta, o olhar trocado no meio da sinaleira, o sexo, a audição presente no meio do vazio, eu fui resgatada de dentro do meu Wonderland escondido ali, na terra da maresia.
    Criei em mim um mundo cheio de personagens e flores, e campos, e livros e musica e filmes e me fechei ali, eu e meus personagens com seus problemas pessoais que mais tarde eu viria a resolver. Eu falei muito sobre as pessoas, eu me atentei a elas, eu as observei dentro de um buraco onde ninguém me via, projetei a vida a minha volta dentro de meu mundo recriado.
    Eu fui uma entrelinha, eu fui por muito tempo e ainda sou, claro, você não deixa de ser aquilo que na essência você está fadado a ser, e por isso eu continuo, entrelinhas a ser a linha escondida que eu sou. E poucos leem, poucos anotam a variação fiel de que ali, naquele porém , algo está escrito, algo está anotado. E isso é bom. Passei tempos observando a vida por fora da janela, anotando mentalmente o que acontece do lado de fora onde a vida recria cor, exercitei toda minha arte da contemplação, vendo o café sendo posto na mesa e esfriar, o amor acabar e nascer de novo e depois se tornar em ódio e em amor novamente, ver o amor escrachado no meio do asfalto, ver o amor sendo atirado pela janela através da zona de conforto, ver uma criança crescer e depois dizer palavras duras aos seus pais, ver pais dizerem palavras duras aos seus filhos, observar a vida morrer e nascer. De longe o que todos julgam mais importante, mas eu anoto mentalmente. Eles não sabem que eu sabia esse tempo todo. Até alguém me encontrar.
    Aponta a caneta no papel, escreve, escreve. Sem cores, assim como tem que ser, eu saio da caneta e vou para o papel, transmuto-me em palavras, nadando nas ondas de suas curvas requintadas e quentes, bonitas e charmosas. As palavras dão vida, correm nas minhas veias e eu corro através delas, fazemos carícias em nossos encontros e viajamos juntas pela imaginação de quem nos detém.
    Mastigo uma balinha de caramelo, a caixa e a etiqueta dizem que é de Paris. Sorrio, à la Monalisa. A bala derrete na boca quente, a língua triunfa no sabor. Eu me tornei numa espécie de personagem, e vivo. E a graça encontra-se no que eu não poderia adivinhar. Alguém me tirou da cartola, enfim.




Annabel Laurino 

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Alien

       Já fui de Saturno, já visitei Marte. Estive em Júpiter também, mas resolvi visitar Vênus, o meu atual lugar. Satélites a mil a minha volta pela rota interestelar. Eu não tenho medo, eu fujo de lugar em lugar, pululando as estrelas, dando olá aos cometas. Eu vi uma nova vida se acabar.
     Não importa o quanto do universo eu veja na minha xícara de café ou quantos rostos estranhos eu tenha que olhar por dia, decido que não sou daqui. Uma alienígena, uma extraterrestre de 1,56 de altura, com óculos gigantes e que não se encaixa. Não se encaixa. 
     Vejo os dias passarem. Ontem era recém segunda mas agora já é sexta, tive três provas essa semana e achei que fosse passar mal, mas não, era só uma crise de ansiedade, daquelas de palpitar o coração e de me fazer achar que o mundo vai acabar em trinta segundos. Escrevo agora porque eu prometi que dormiria cedo. Mais uma promessa para mim mesma quebrada. Quem se importa?
     De repente alguém te descobre, e te tira da caixa, da zona de conforto, do meio do sinal de trânsito, da nostalgia eterna, do tédio sufocante dos dias sem graça, sem tesão, sem nada. De repente alguém fala sua língua, sabe o seu planeta de origem, entende seu sufoco, seu tropeço, seu choramingo, seu desespero cotidiano de 'não vou alcançar'.
    Os dias funcionam como uma fila indiana que todos furam incessantemente para poderem ser os próximos, ganharem as estrelas de bonificação, ganharem na vida. Bem aventurados os espertos, aqueles que furam a fila, aqueles que tropeçam sobre os tropeços já tropeçados de outros. "A vida é assim, esse é o sistema interminável, seja vem vindo, espero que goste. Canapés e vinho na mesa ao fundo, assine aqui."
     Um café e um abraço no final do dia salvam minha reputação irrefutável de solidão. Solidão não solitária de fato, eu me relaciono, tenho amigos, colegas, você sabe, todos tem. Mas eles não entendem, eles não sabem falar a língua de que aqui falo. E assim vamos indo.
      Eu juro que tento seguir um caminho só, eu e a minha lista de afazeres para daqui até o fim do ano. Não sair da reta, se concentrar. Mas você sabe, amigo, a vida é dinâmica como só ela pode ser e eu, bem, eu para me bagunçar é tão fácil, tão simples. E como diria os Los Hermanos, eu gosto é do estrago. 
      Estou achando as coisas muito paradas aqui por Vênus, esse planeta assim tão blá, to pensando em me mudar, voltar para Saturno, o meu lugar de origem e nascença. Ficar lá por alguns meses, recuperar a saúde mental, me refazer, recuperar o folego, decidir se sou ou não sou e se sim sou o que. Essas coisas, essas coisas. 
      Vamos minha super nave, vamos para Saturno, vamos descompilar daqui. 





Annabel Laurino 

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ei, você,
você me deixa na ponta dos pés.
E eu que nao sou besta
me estico todo e tento enxergar
lá longe, onde tu costuma mirar
lá longe, onde não consigo nem ver,
mesmo que na ponta dos pés.



Apanhador Só 

terça-feira, 3 de junho de 2014

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"E só então percebi que estava diante de uma criatura cheia de delicadeza e carinho. Que se traía sem se dar conta. Ao mesmo tempo se encolhia numa mistura de insensatez e incoerência. Uma verdadeira preciosidade. Uma joia, linda e espiritual. Talvez algum homem, uma coisa qualquer, um dia a destruísse para sempre. Fiquei torcendo para que não fosse eu.”



 Charles Bukowski

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Fora do Ar

   Tem alguém ai? Alguém ainda vem me visitar? Alguém lê essas palavras tortas e enviesadas? 
   Eu não consigo ouvir respostas, como se estivesse em algum segundo plano, distante de tudo. E o mundo se silencia. Não ouço mais ninguém, nem sei se me ouvem. 
   George Harrison é meu melhor amigo nessa noite. Coloco 'While My Guitar Gently Weeps' para repetir pela décima vez e choro. E choro e choro. Os olhos ardem no começo, em relutância para não se darem por vencidos, mais ai depois eu me entrego. E choro e choro. Agora é fácil.
     Não há vergonha em chorar. Fico feliz que eu ainda sinta algo para poder chorar. 
     Se uma cor pudesse me definir no atual momento seria cinza. Foram tantos dias estáticos. Quanto tempo faz e eu não me dei de conta? Quanto tempo faz que a estação ficou com ruídos e eu nem notei? 
     Escrever agora dói, dói e eu choro. Qualquer esforço em falar, em escrever a respeito incomoda. Como uma coisa estranha, fora do lugar, que você sabe que estava o tempo inteiro ali, mas você só percebeu realmente o incomodo que ela trazia agora. Eu não sou alguém depressivo, nada de grave me aconteceu, só para explicar. Particularmente desconfio que sou apenas uma pessoa que sente de mais. Sentimental de mais. 
     Estou cansada do mundo.
     Se eu pensar de mais eu fico enjoada, enojada, cansada. Então eu parei de pensar, eu parei de escrever. Chega um momento que você cansa de lutar, que você cansa de dar braçadas contra a maré, que a musica do Cazuza não faz mais sentido. "Andar contra a corrente só para exercitar", sério? 
    Se antes eu me dava ao trabalho, nesses dias estáticos eu simplesmente me calei. Meu espirito anarquista sucumbiu no ar como um balão furado. Já era, a festa acabou. O que está havendo comigo? Alguém quer realmente saber? Nem mesmo eu sei se eu quero. 
     Sinto como se estivesse cometendo vários erros, erros e erros. Mas alguém me explica o que é errado afinal? 
     Eu nunca entendi essa porra. Não, espera, eu não posso falar porra. Porra. 
     Acordo todos os dias pensando se o dia vai me aceitar. Bem, vamos ver, será que hoje vai ser um dia bom? E novamente é um dia cinza. Nada de emocionante acontece, eu olho ao redor e parece que todas as pessoas estão o tempo inteiro interpretando suas vidas, como se não vivessem de verdade aquilo que mostram ser, aquilo que aparentam saber. E por que?
    George escreveu "eu olho para o chão e vejo que ele precisa ser limpo". Eu também vejo a mesma coisa. Tudo parece errado então. 
    Eu faço o que eu faço por que eu gosto ou por que eu fui induzida a gostar? O que eu sou quando não há ninguém para quem eu precise mostrar o que eu sou? Quem eu sou?
    Tudo estático. 
    Silêncio.
    Vozes abafadas ao fundo e que não chegam até mim. Com olhos já inchados eu choro mais um pouco. Tenho vontade de ir para Bali, Cucuias, Polo Norte, Triângulo das Bermudas, qualquer coisa. Qualquer lugar.
    Mesmo sabendo que a pergunta ainda assim perduraria no ar. 
    Sem resposta. Sem resposta. 
    Sem frequência. 




Annabel Laurino



sábado, 24 de maio de 2014

Não Sei



Eu não sei se eu tô certo ou se eu tô errado
Mas faço tudo o que eu digo e digo tudo que eu faço
Neste mundo eu sou eu você é você
Faça tudo o que quiser porque eu também vou fazer

Não sei mais o que faço
Eu já fumei dez maços
Mandei tudo pro espaço
Agora eu só quero paz

Cansei dessa gente desse papo furado
Eu viajei por todo o mundo pra ficar descansado
Mas nada feito, o meu problema foi sempre você
Diga tudo o que quiser, pois eu preciso saber

Não sei mais o que faço
Eu já fumei dez maços
Mandei tudo pro espaço
Agora eu só quero paz

Não sei se eu tô certo ou se eu tô errado
Mas faço tudo o que eu digo e digo tudo que eu faço
Neste mundo eu sou eu você é você
Faça tudo o que quiser porque eu também vou fazer

Não sei mais o que faço
Eu já fumei dez maços
Mandei tudo pro espaço
Agora eu só quero paz    


TNT

sexta-feira, 23 de maio de 2014

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Podia ser ela mesma, quando estava só. E era isto que precisava fazer com frequência: pensar. Bem, nem mesmo pensar. Ficar em silêncio; ficar sozinha. E toda a existência, toda a atividade, com tudo que possuem de expansivo, brilhante, vibrante, vocal, se evaporavam. Então podia, com uma certa solenidade, retrair-se em si mesma, no âmago pontiagudo da escuridão, algo invisível para os outros.



Virginia Woolf. Ao Farol; tradução de Luiza Lobo. Ediouro, pág. 67.