sexta-feira, 4 de julho de 2014

Eco e cacos

    Alguma coisa, coisa essa que eu não sei o que, porque não tem nome e ninguém sabe se existe ou não, se é matéria ou imaterial, essa coisa quebrou-se. Partida em cacos, se estilhou no chão. A coisa caiu e quebrou-se. Causando aquele som agudo de algo que se quebra, que estilhaça-se em cacos, aquele som que quebra o silêncio, corrompe o monótono, o som de algo que impõe caos em algo que antes era simplesmente silêncio.
    Quebrou, mudou, não é mais o mesmo. No mesmo instante em que alguém atravessava a rua, que um cigarro era acendido, que a criança começou a chorar, que o senhor de idade entrou no consultório médico, que o café foi servido, o jornal aberto, o dinheiro gasto, o choro derramado, o abraço dado, o beijo proibido, a mentira contada, a fome saciada, tudo e tudo, nada e nada. Foi por um segundo. Um pequeno segundo. Ninguém soube de onde veio, eram tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, o que é um algo sem nome caindo no chão? Nada, não tem importância. Levantaram os ouvidos quando o barulho se fez presente onde antes era apenas aquele silêncio, mas não se deram o trabalho de procurar os vestígios, de analisar as provas, de ver de onde vinha aquele som de eco que repercutia após a queda. Havia outras coisas das quais se preocupar.
    Ela foi embora e ele nem viu quando ela foi embora.  Ela juntou todas as coisas, não as roupas, as fotos ou os livros, nem se quer se preocupou com o casaco favorito, seu marcador de páginas ou algo qualquer, nada desse tipo palpável, ela simplesmente juntou as coisas, os retalhos descosturados daquela relação maltratada, pegou o que era seu por direito, o que era dele ela deixou, não quis mais. Juntou tudo, saiu pela porta da frente. Ele não viu. Ele ouviu sim algum som estranho soando firme naquele estranho silêncio, mas não parecia importante, ele continuou pintando cores nas paredes de seu mundo encantado.
    Tão importante quanto um choque drástico, um apagão, o real caos, a guerra. Aquele som mudou tudo, aquela coisa quebrada deixou rastros de minúsculas evidências que alteraram todo o sentido da história, da história deles. Ele nunca mais viu aqueles pequenos pés se agitando na beirada da sua cama, aqueles pezinhos de unhas pintadas de cor de rosa, ele nunca mais avistou aqueles cabelos bagunçados numa manhã de domingo, nunca mais a viu passando delineador no espelho do seu quarto, não cheirou mais o seu cheiro, nem sentiu suas coxas, não se lembrava mais com exatidão a cor daqueles olhos, se castanhos ou quase verdes, tanto tempo passou e alguma coisa mudou.  Aqueles mesmos olhos que o olharam com incredulidade, com repulsa, com medo, com repreensão, “por que você não ouviu quando eu deixei a coisa cair? Eu pensei que você iria ouvir, eu pensei que você se importasse. Por que você fez isso?”. Não houveram palavras pronunciadas, apenas esse simples olhar que disse tudo.  Pediu tudo.
    Se ele tivesse levantado do sofá para ver através da janela talvez teria visto a coisa repartida em cacos no chão, talvez se tivesse parado por um segundo de viver suas pinturas naquela parede colorida e ilusória ele teria visto as iminências. Eram tão simples. Talvez ela nem tivesse ido, ela poderia ter ficado, ajudado a reconstruir os cacos, a conviver com as rachaduras.
    Através dessa lente caleidoscópica podemos observar o mundo gigante e pequeno, pequeno e gigante. E lá está ele caminhando por aquela praça vazia, oito horas da noite, sentindo os ecos quase mudos de algo que se perdeu. Ele avista um corpo de um homem sentado num banco à frente e parece  perdido, ali sentado. O homem abraça o próprio corpo, mas não parece respirar e nem se quer se move. Ele se pergunta se existe vida ali dentro, e que tipo de vida, que coisas seriam aquelas que se passam por dentro de alguém que se senta na praça as oito da noite e abraça o próprio corpo, como para não sentir o peso do mundo. O peso do mundo.
    Agora ele já sabe que ela foi embora. Agora ele entende, recebeu as mensagens, entendeu os códigos, ainda ouve os ecos, ele ainda sente a partida, a coisa quebrada. Mas tudo bem, acontece, teve que acontecer. Aconteceu não porque ele não ouviu ou porque ele não deu importância. Aconteceria de qualquer jeito, é assim mesmo.
    Caminha entre as pessoas e pensa que a cidade a noite é melhor que de dia. Ele ama a noite, pensa nas luzes da cidade, nas sombras das luzes, pensa na coisa quebrada e perdida, pensa na vida e pensa nas pessoas ainda encerradas em escritórios cobrindo o expediente, fumando seus cigarros, bebendo os seus cafés quentes, trabalhando e vivendo. Vivendo e trabalhando. Ou seria vivendo e perdendo? Vivendo e sentindo o eco. Vivendo e ouvindo o eco de coisas que se quebram e ninguém se importa. Vivendo e voltando desesperadamente ao passado, ao segundo exato, aos cacos repartidos no chão, tentando freneticamente juntar todos eles. É em vão, é em vão. Aceitação é o primeiro passo, vivendo e aceitando.
    Talvez seja isso que aquele homem sentado no banco da praça e abraçando o próprio corpo sentia, a aceitação muda, a aceitação sem palavras, o fechar de olhos em consentimento, o saber exato de que não há o que possa ser feito.
    Bilhares de coisas sem nome quebram-se por dia. Ninguém ouve de fato. Todos continuam ignorando os ecos. 




Annabel Laurino 


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