Amália era uma moça em recente descoberta da vida.
Vida, para Amália, era coisa frágil. Podia acabar a qualquer momento. Por isso
Amália enxergava a vida como um objeto quebrável, sem reconciliações com seu
antigo estado após a mínima queda, e por isso Amália também tinha medo de dar
seus passos em vão. A
vida, para Amália, deveria ser intensamente vivida, mas cuidadosamente
percorrida.
Amália observava as multicores facetadas nas pétalas
das flores por onde passava, encontrava prazer no primeiro gole de sua primeira
caneca de café da manhã, não dispensava um bom livro, gostava de ouvir o ruminar
gostoso das páginas se esfregando uma na outra, como se contassem um segredo,
após serem viradas durante a leitura, se atentava aos mínimos detalhes, achava
belo a feiúra dos outros, gostava de lamber balas de mel, beber chá amargo as
onze da noite e ir dormir quando amanhecia o dia, tinha medo do escuro e música boa era aquela que te
fazia querer transar.
Não tinha gato, nem
cachorro e nem namorado. Passeava sozinha pelas ruas da cidade numa procura por
detalhes desconhecidos, a rachadura de um prédio, a lasca profunda e corrosiva
no asfalto, o feio, o tenebroso, a lata de lixo entupida, o cheiro fétido, o
mendigo, as roupas feias das vitrines baratas, o amargo e o desgostoso, a
sacola de lixo voando como uma borboleta numa esquina pichada, isso tudo encantava
Amália. Ela não via como coisa feia, via como coisa bela, a vida como ela é.
Frágil, descarada, bruta.
A vida bate na cara daquele que não quer ver. Ela
esbofeteia, te encobre, te vira do avesso, te enche de porrada, até que numa
noite boa ela te acaricia os cabelos com beijos e ternura e te fala manso que
tudo vai passar, é só uma fase. Porque a vida, afinal, é cheia de fases.
Falar dos seios de Amália é só para demonstrar a sua
forma anatômica, seu formato transparente entre formas e gêneros de se viver
nessa selvageria humana, nessa cidade quente. Amália não é só seios, não é só
mulher, não é só sexo feminino. Amália pensa, respira, colore e descolore o
mundo inteiro em mil partículas de átomos que estão juntos. É um corpo, mas
também é mais que um corpo. É fruto da mesma árvore, é grito e ponto de exclamação.
Amália atravessa a rua, Amália é vida. É coração pela metade, forma tiritante e
dor pulsante, Amália vive e é única.
Nas curvas do seus seios, num lugar dentro do
peito, esconde-se um coração machucado, que ela tenta esconder. Esconde dentre a
fumaça do seu cigarro que acende sem parar e os seus lábios pintados de um vermelho disfarçam as marcas dos seus dentes afiados e agudos, numa insana tentativa
de segurar o choro ou o impulso de gritar e gritar sem parar nunca. Mas não,
não gritava, olhava-se no espelho com freqüência e dizia a si mesma frases como
"fique calma" ou "vai passar, sabes que vai passar". Mas
não passava. Por isso se escondia nos livros, nos poemas, nos versos, na
música, na frase solta, na letra em garrancho grafada na ultima página do seu
caderno.
Paris hoje, ou amanhã, não sabia. Paris, quem sabe.
Estava sedenta por uma vida nova em algum outro lugar, uma paisagem cheia de
coisas novas para viver. Essa era Amália, sedenta por vida, sedenta por cores e
coisas que nem ela sabia, mas queria tudo, uma colher farta e cheia de tudo que
tivesse direito. Para Amália, viver também era fartura, quanto mais soubesse,
quanto mais vivesse e vivenciasse, melhor estaria vivendo. Viver, para ela,
também era abrir o pára-quedas. Viver é se jogar.
E ela atravessava as ruas, passando pelo sinal aberto,
seus passos compassados como uma música de jazz. Se você abrir seus ouvidos
Ella Fitzgerald estará cantando melodiosamente ao fundo, ouça só enquanto
Amália caminha, anda por dentre a multidão. Olhando-a assim é só mais uma
dentre tanta gente. Mas Amália sabe do seu eu ferido, carregado e pesado, as
vezes feliz, as vezes saltitante, dias leve, dias pesado, que tem por dentro.
Sem escolha, por que viver é isso também, é aceitar a lama que te espera. É
aceitar que somos o que somos por que somos e não há jeito de mudar isso.
Amália aceitava. Por isso atravessava o sinal sem medo, sem olhar para os
lados, Amália aceitava viver.
Annabel Laurino
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