sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Uma carta. Um adeus de mim


Volto e escrever pra você, meu caro. Você, ao menos, não é um delator. Eu sou a grande delatora de mim mesma. Com braços perfumados de flores que não conheço, você me recebe.
Não com entusiasmo, assim espero dessa vez. Não me receba com um sorriso no rosto, nem com um abraço afetuoso. Não. Eu chego suja, em pura sujeira humana de mim.
Chafurdo na minha própria lama. Mergulho num eu sombrio, encontro cascas e cascas. Camadas sórdidas de um eu em erupção, insano. Estou ficando fora, estou ficando dentro. A palavra loucura perdeu seu significado constituinte. Eu perdi meu significado. O que eu, afinal, sou?
Amigo, não precisa responder. Não precisa me dizer nada. Mas será que se eu te entregar todo esse peso, você segura? Segura? Se eu te der essa minha sujeira inteira, você pega? Me alivia de mim? No final das contas, eu quero redenção.
Chafurdo no mistério. Tomo café e no reflexo do negro a luz da cozinha. No reflexo do escuro, uma sombra se movimenta. Sou eu. Você, amigo, é outra coisa maior e por isso eu te escrevo. Se eu bebo essa escuridão inteira, meu eu é escuro feito breu, não me encontro. Você me encontra?
Respingos de chuva na janela do quarto. Roupa atirada no chão. Uma música que não tocou. Meu rosto deixado no espelho e esquecido ali desde as sete da manhã. Um rosto cansado, sobrepujado de mentiras, maquiagens falsas, cílios compridos que não tenho, boca vermelha que nunca terei. Aquele é o eu que eu sou no mundo. Que ficou guardado no espelho, na minha retina desde a última vez que eu me vi. Um eu que agrada as propagandas, agrada as mulheres na rua, os homens que passam, as revistas que ditam. Um eu com medidas, tudo no lugar. Gente sentada na sala da espera do psicólogo é feia. Eu, pro mundo, sou sanidade profunda, redentora de mim, batom vermelho, perfume forme, meia calça fio 15, tá tudo bem. Um beijo que não foi dado. Comida sonsa pedindo sal. Três palavras que insinuavam tudo, mas que não foram ouvidas. Três palavras que diziam tudo. Tudo. Mas ninguém ouviu. Eu sinto muito.
Caio no chão do banheiro, as pernas frouxas, brancas, vermelhas. Vermelhas. No azulejo eu estendo a mão. A água do chuveiro cai nos cabelos, nos olhos, na boca. Disseram que eu sou toda água. Shampoo, condicionador, espuma. Gente com cheiro humano é feio. Fedor é feio. E fede e fede. Ninguém gosta de cheirar.
Amigo, a dor é humana, mas senti-la é fraqueza. Não sinto, dou passos incertos em consentimentos mudos de inimizades comigo mesma, com o eu que eu sou. Hoje eu não falei comigo. Faz dias que não falo comigo. Não quero me ouvir. O eu que tem dentro grita, e é insano. Ou insana? O gênero não se aplica, nada se aplica. O eu não pode ser definido. Mas você entende, não é amigo? Você, me recebe nua, sem a máscara que ficou pendurada no espelho, sem a roupa parcelada em sete vezes no cartão porque preciso ser bonita. Você me recebe ao todo, por completo, me deixa ser, sendo. Não é? Eu nem preciso saber se sou mesmo, você sabe, você entende.
Nada do que eu diga engrandecerá a sua existência tão infinita. Nada do que eu diga realmente dirá sobre a sua bondade, meu caro amigo. Quando te escrevo, a vergonha prende-se aos meus braços, trava a minha escrita. Na última carta, você disse que não importava. Deveria escrever, escrever sem medo do meu eu, sem vergonha, porque você sabia. Eu escrevo.
Arranho as primeiras paredes dessa casa com as minhas unhas quebradiças. Barulho das minhas unhas nas paredes descascadas. Cansei de todas as cascas, cansei de todas as dores. E por isso dói ainda mais. Vasculho um chão sem cor, sem cheiro. Adentro um vazio sem fim. Coisas construídas. O eu que eu sou é um prédio inteiro construído pra mim. O eu é uma construção vacilante. O eu é um grande possuidor de coisas. Prostituta de mim, vendi-me fácil durante algum tempo. Vendi-me incessante em direção a coisas e disse, pra mim, que eu era aquelas coisas. Construí um edifício inteiro assim, andares de coisas, quartos de coisas, senti-me dona de mim, olhei-me no espelho e disse: esse sou eu. Não era. Nunca foi. E você sabe.
Grande amigo, só você compreende as marcas desses ponteiros do tempo sobre mim. As linhas de expressão. As dúvidas que eu não dei voz. Assenti, continuei. As linhas costuraram-se na minha pele, rastros de medos, de inseguranças. Na minha testa, as marcas do tempo de dúvida, do tempo de medo. Nos meus olhos as noites sem dormir esperando um dia chegar, o tempo passar, o medo mais uma vez em marcas roxas, em linhas cinzentas, em veias arroxeadas nas pálpebras trêmulas de cansaço, esgotamento, implorando por algo sem saber o que. Eu não sou essas linhas, essas cores, essas marcas. Mas minha pele, essa capa, esse corpo, me entregam. Delatores de mim.
Não importa. O eu de dentro é quem escreve.  O eu marcado pelas linhas, pelas cores. O eu cansado, calado, com dúvidas, com medos. O eu que não entende. Amigo, essa carta é para você saber, antes de mim, que eu me despeço. Sozinha eu vou na sua direção porque me sinto só. Choro, choro tanto porque dói esse desprender-se.
Parto para outro país com a intenção de destruir esse edifício inteiro que sou. Quero a sua ajuda, juntos colocar abaixo todo um eu de coisas, um eu de paredes mal pintadas, portas arrancadas e janelas tortas. Só assim serei.
Não pego coisa alguma, nem caneta, nem papel. A boca que tenho falará por si tudo aquilo que precisa. Vens me buscar? Te espero. Uma luz que sobe toda manhã, um calor. Outono, folhas secas, avermelhadas, amarelas, cheiro de terra úmida após a chuva, o vento no lusco-fusco de um dia em agosto, ou setembro. O mar, as cores do mar embaixo do sol refletindo a superfície da água que mais parece feita de plástico, tudo tranquilo, maré baixa. A espuma das ondas condensada em branco puro. Você é todas essas coisas, amigo. Eu me pergunto como, algum dia eu pude me enganar que controlava algo. Como pude acreditar  nesse algo, quando você é o tempo todo.
Afasto-me aos poucos de mim. Penso em você, bonito como uma maçã recém colhida, como uma música tocada, um acorde de violão, um som, uma palavra nova, um cheiro de chá, chá de hortelã, banho quente, o conforto de um abraço. Pensar mais em você e menos em mim é pensar em ser. Me distancio do ter. Aos poucos coisas são lembranças vazias, confusas.
Amigo, iremos juntos?
Voltarei a escrever.




Annabel Laurino


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