domingo, 12 de fevereiro de 2017

A história que não se conta



São movimentos que destoam. Não se pode saber em qual esquina encontrará os destroços de algum caos que esqueceu. Sutiã apertado, dor de cabeça no canto esquerdo da testa. Não deveria ter saído de salto, ela pensa. Salto alto e pedras não combinam. Os calcanhares doem assim como todas as pedras fora do lugar nessa cidade.
Esta que ninguém sabe o nome, diz para si mesma que não quer voltar para as louças sujas jogadas na pia. Não quero voltar para aquelas louças sujas na pia, embora eu mesma tenha escolhido aquelas louças. E acrescenta mais uma vez, entre um tropeço e outro, que não deveria ter saído de salto.
Ninguém saberá seu nome porque criatura alguma é lembrada aqui. Ninguém saberá quantos prédios de fachadas sujas esses olhos negros não destrincharam. Olhos negros de uma criatura sem nome. Que não saberão, não lembrarão.
Como poderiam? Não poderiam. Passos podem ser ouvidos no escuro. Os passos de quem são? A cidade dorme de baixo de uma cortina, véu azul escuro, desacortinado de memórias confusas, rostos que estamparam no presente passado.
Ela vai voltar para as louças sujas? Voltará. Em algum momento do dia enquanto estiver entre mastigar as cenas das ruas e beber as ultimas gotas da sua esperança, ela, sem nome, voltará para a casa, para os compêndios de frases não ditas, amontoados de sensações esquisitas de quase morte, nunca de verdade sentida. Como é futuro e de futuro ela nada sabe, mesmo que quisesse não acreditaria. Nem em cartas, tarôs ou búzios, porque em coisa alguma acredita, mesmo que todas essas coisas lhe falassem de futuro. Dorme não pensando no que acontecerá. Acorda sabendo que mais uma vez venceu o sono e que sem saber por que, acordou.
Se levanta em madrugadas de domingo e como não sabe para onde ir, espera o sol surgir no céu e ir rabiscando mais uma vez, uma porção de sensações esquisitas. Escorrega nos espaços abertos de uma história que não deveria ter começado. Porque ela não contará.


Annabel Laurino

thunderstruck9:
“ Charles Lacoste (French, 1870-1959), Rue de Paris, 1911. Watercolour, 16.6 x 11.10 cm.
”

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