Volto à gênese. O lápis é de cor azul, ceúzinho. Não paro para
pensar nas arestas dessa escrita, que vai se formando numa massa amorfa e
solta, livre, pululando por aí sozinha.
Volto
ao retorno do pensamento. Uma sala branca só pra mim. Abraço o que eu sou.
Abraço no inicio o corpo, o corpo que eu sou. Tem dias em que é tentadora a
ideia de não chegar nunca mais perto deste corpo, de olhá-lo. Mas hoje, toco as
cicatrizes da pele, as ondinhas brancas das coxas, as marquinhas vermelhas da
barriga. Toco com estranheza e digo “essa sou eu”. Começo a abraçar os pelos
escuros dos meus braços, as coxas, os joelhos quadrados, os quadris sempre tão
largos. E digo mais uma vez, “essa sou eu”. Nem sempre amo. Quase sempre
confusa, odeio a imagem distorcida de mim, que eu distorço. E se sei disso,
quando sei quem eu sou? E se sei disso, quando me amo? Não faço ideia. As mãos
percorrem a barriga nunca dura, nunca magra. Mais uma vez eu digo “essa sou
eu.”
Quando
saio, não quero que vejam a minha juba despenteada pintada de vermelho, um
casaco caindo desajeitadamente dos ombros, carregando uma bolsa de estampa
esquisita. Quando saio, é a voz de dentro que quero que seja ouvida. Mas em tempos
de internet, de canais no Youtube, de
vlogs e vídeos caseiros ultra cults, super modernizados, quem vai parar pra ler
o que eu escrevo?
Escrevo uma frase, apago de novo.
Nada parece ficar da maneira certa de se dizer. Existe uma maneira certa?
Existe uma maneira certa de ser? Pergunta juvenil, Annabel. Pergunta de 14
anos. Pergunta dos tempos em que usava all star preto enquanto Cazuza tocava
mais uma vez nos fones de ouvido enquanto eu atravessava a praça Tamandaré,
matando aula sozinha em mais alguma quarta-feira, terça-feira, fosse o dia que
fosse.
Talvez se eu não tivesse atrasado
várias cadeiras da faculdade eu já teria me formado. Talvez sem a ansiedade eu
teria encarado melhor a prova do ENEM. Talvez se eu fosse mais esperta, mais
animada, extrovertida, quem sabe eu pudesse ter tido mais amigos. Uma pausa, um
gole de café e eu volto a pensar em mim mesma com dezesseis anos, a pergunta, a
pergunta que volta sempre, aquela, aquela, se existe mesmo, sabe, afinal, uma
maneira certa...
Azul, rosa, amarelo, vermelho,
tantas cores já foram os meus cabelos. Antigamente parava na frente do espelho,
segurava as peles flácidas das coxas com desprezo, perguntava “porque assim?”
enquanto uma revista de nome qualquer ficava aberta em cima da cama, com a
imagem perfeitamente retocada e ilustrada de uma famosa de nome ainda qualquer
com um corpo mais do que perfeito. Ah, se eu tivesse, se eu tivesse entendido
como percorrer o caminho dos tijolinhos amarelos, talvez eu já teria entendido
onde estava a resposta.
Continuei minha busca durante todos
esses anos atrás de um falso Oz. Sapatinhos vermelhos abandonados no fundo do
roupeiro com adesivos de chiclete colados na porta. Risquei frases, joguei fora
rascunhos não terminados que hoje, eu faria muito para tê-los de volta. Medo de
escrever pro mundo. Medo de dizer. Poemas, contos, histórias, engavetados
todos. Volto ao inicio germinativo.
E
se essa escrita, se escrita ainda fosse minha, quem sabe eu não mandaria
lapidar, cada frase, cada frase... Não há dúvidas de que eu posso me encontrar.
Annabel
Laurino
Foto da Jade Luzardo
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