segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Diagnóstico

    - Você tem certeza? Você olhou direito? Porque eu desconfio que você deixou alguma coisa passar.
    - Não, eu tenho certeza. Está tudo correto aqui.
    - Não é possível, não é possível! Você nem se quer me examinou direito. Olhe mais uma vez!
    - Receio que não será necessário, uma vez que já estou com seu diagnóstico em mãos. Sendo assim, eu tenho certeza, não há nada de errado.
    - Olha, veja bem, preste a atenção. Eu acordei hoje cedo, bem cedo, sete da manhã por aí, e lavei o rosto, coloquei a cafeteira para passar um café, abri as janelas, essas coisas matinais. Depois acendi um cigarro e fumei, devagar, com sono ainda, colocando as cinzas no cinzeiro, aquele cinzeiro me incomodou por um tempo enquanto eu o olhava, sabe, de ferro batido com pedras coladas nele, não lembrava de ter comprado aquela porcaria em nenhuma feira hippie em que lembro de ter estado. Mas mesmo assim bebi meu café, comi um pão e fui para a janela do meu apartamento. E foi então que eu senti uma dor bem forte no peito, pensei que tinha levado um tiro. Uma bala perdida, pensei. Corri para o espelho do quarto e não vi nada. Nada. E depois me deitei, com dor ainda, procurei o telefone, fechei os olhos. Pensei 'bem, deve ser isso, a morte chega para todos'. Mas foi quando fechei os olhos que eu me senti esquisita sabe, vazia. E a dor passou e eu não senti mais nada. Nada.
    - Hum, sim, eu entendo. Claro, claro. Bem, pode ter sido uma dor muscular, um mal jeito sabe. Essas coisas.
    - Doutor, ou o senhor entende que eu nunca senti isso na minha vida antes e analise novamente o meu diagnóstico ou eu lhe enfio esse estetoscópio no...
    - Olha minha senhora, acalme-se. Não é necessário tudo isso. Bem, como queira.
    O homem com o jaleco branco se inclinou sob sua paciente, alta, magra, cabelos castanhos ondulados e bagunçados. Para uma paciente que insitia em um problema não existente, ela parecia ótima. Ergueu as mãos enluvadas e tratou de examiná-la durante algum tempo. 
    - E então doutor, encontrou algo?
    - Hum, não exatamente.
    - Não exatamente?
    - Minha senhora...
    - Senhora não, senhorita.
    - Senhorita, como seja... Você tem sofrido de problemas emocionais?
    - Emocionais?
    -Sim, você sabe, problemas com o coração. Término de namoros, morte de mãe, pai, cachorro e o papagaio. 
    - Ninguém da minha família morreu..
    -...
    - Ah bem, há um mês atrás talvez, eu tenha tido alguns desentendimentos.
    - Sei.
    - Mas eu apaguei tudo da minha cabeça sabe, e estou bem.
    - Apagou tudo?
    - É, esqueci, fiz um tratamento. 
    - Hum, sei.
    - É.
    - E está bem agora? Você disse que o cinzeiro lhe incomodou...
    - Ah bem, as vezes parece que me lembro, as vezes parece que esqueço, mas quando eu lembro que eu esqueci eu lembro de me lembrar e isso é confuso e então eu finjo que esqueço. As vezes eu encontro algo perdido por ai e me lembro de algo que nem sei se me lembro direito. Acho que o cinzeiro foi algo assim. Algo dele. - disse a paciente pronunciando a ultima palavra como se pronunciasse algo secreto de mais para ser ouvido pelas paredes.
    - Acho que entendi.
    - E dói.
    - Dói?
    - Sim, algumas memórias voltam e dói um pouco, sabe, as vezes.
    - Ah, sim. 
    - E o meu diagnóstico?
    - Bem, eu acho que você mesma chegou a conclusão correta, dores emocionais.
    - Dores emocionais?
    - Sim, você deve ter tido um reflexo de uma memória, algo doloroso.
    [silêncio]
    - E... E é só isso? O senhor não achou mais nada no meu cérebro ou coração?
    - Não, mais nada. Parece tudo limpo. Talvez, eventualmente você sinta alguma dor, devido aos flashes de lembranças, mas isso vai passar, quando isso acontecer apenas se sente e beba uma água.
    - Certo. Só isso?
    - Só isso.
    - E... E mais nada?
    - Mais nada. 
    - Bem, esse é o meu problema.
    - Nada?
    - Nada. Tudo limpo.
    - Limpo demais?
    - Limpo demais.






Annabel Laurino

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

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“Era malcriada demais, revoltada demais, embora depois caísse em si e pedisse desculpas.”


Clarice Lispector

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Só mais uma página

    Tanta coisa se foi menina. Tanta coisa voou do seu diário, páginas que ficaram bolorentas pelo tempo, desgastadas, ruídas pelas traças. Outras, em branco. Daquele tipo de página que você poderia ter escrito, mas não. Nada. Apenas um silêncio contido diante do papel sem uso. Em branco.
    Tanta coisa meu amor que deixou de ser e agora já não é mais. Fica só aí, nas linhas retas e monótonas do seu diário escondido. Coisas bobas, memórias, acontecimentos passados. Porque tudo é passado, até mesmo esses papéis com letra rabiscada as pressas, na euforia de escrever novas e mais novas coisas, de preencher as folhas avidamente, com sucesso, com amor, carinho, como uma criança feliz. Hoje, me aconteceu algo... E assim por diante. 
    A onda do tempo vem e nos arrasta para longe, tão longe ficamos da praia. A arrebentação nos empurra, nos coloca contra os ponteiros do relógio numa luta sem fim. Como nadar contra a corrente, como diria um velho pensador. 
    Lá estão suas páginas, preenchidas, seus dias de inverno, suas tardes de café quente, seus amores enfeitados com uma tinta de caneta colorida, dado codinomes para que ninguém além de você pudesse saber. É como um segredo bom que só você carrega no peito, ninguém precisa entender, ninguém irá entender. Essas coisas de gente grande a gente só finge que não acontece, a gente enfeita a vida para que fique mais bonita, mais aceita, mais florida. 
    Como jogar purpurina para o alto e ver as partículas coloridas e brilhantes fosforescerem no alto da sua cabeça, assopra, assopra. Elas caem sobre seus cabelos, a luz bate nos seus cílios agora cobertos de pó brilhante e você acredita quase que por um fio que a vida é como uma purpurina lilás.
    O hoje, amanhã já será passado. Já terá passado.
    No seu diário secreto que guarda embaixo da cama terão outras páginas a serem preenchidas, que você irá escrever num lusco fusco de uma tarde de verão perfumada. Tomando chá gelado na varanda, sentada sobre uma rede, o cabelo preso num coque bagunçado, você pensará mil vezes que a vida é mágica. Você aprendeu a esquecer os cortes lentos que já levou. Tirará o gosto doce.
    E o gosto doce esse sempre virá. Mesmo que as vezes não se perceba. Te surpreenderás que mesmo depois do choro você aprenderá de novo e de novo e novamente e vai conseguir tirar seu próprio coelho branco da cartola. Ou o que quiser tirar lá de dentro. Você pode escolher, a vida é sua. 
    Ah menina, se tudo fosse fácil, essas palavras não existiriam. Se tudo fosse belo e não assim tão frágil, as palavras não existiriam. O seu diário secreto perfurado de codinomes nas entrelinhas também não existiria. É preciso sempre disfarçar um pouco para que não doa.
    E assim nós vamos indo, nadando contra a corrente só para exercitar. Um dia a gente aprende, ou não, quem sabe. 
    Buscando o gosto bom que tudo isso pode ter, esquecendo, lembrando, anotando, dançando numa musica louca, cantando até encontrar a rouquidão da garganta seca. 
    We are infinite. 
    E essa é só mais uma página. 






Annabel laurino 


Ma perché scrivo? È l’unico mio conforto. by Silvia Sala on Flickr.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

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     Ela é uma moça de poses delicadas, sorrisos discretos e olhar misterioso. Ela tem cara de menina mimada, um quê de esquisitice, uma sensibilidade de flor, um jeito encantado de ser, um toquede intuição e um tom de doçura. Ela reflete lilás, um brilho de estrela, uma inquietude, uma solidão de artista e um ar sensato de cientista. Ela é intensa e tem mania de sentir por completo, de amar por completo e de ser por completo. Dentro dela tem um coração bobo, que é sempre capaz de amar e de acreditar outra vez. Ela tem aquele gosto doce de menina romântica e aquele gosto ácido de mulher moderna.



Caio Fernando Abreu

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Ao toque de mim

   Flagro a mim mesma dentro de mim, espiando-me. Olhe bem, junto comigo, porque agora eu deixo. Venha, pode entrar. Sinta-se a vontade, óh caro expectador e intruso. Entre e sirva-se de uma xícara de chá de hortelã, sente-se sobre o puf azul marinho e permita-se vislumbrar a mim mesma, dentro de mim. Porque agora, eu te permito. 
    Eis então, eu mesma, não eu cá como me conhecesses, eu presa nesta forma física que caminha, corre, fala, gesticula e se esconde fácil. Não o meu eu de óculos grande e mãos pequenas. Mas Eu, como não podias ver antes até que fosses convidado a entrar e te sentar comigo a ver então eu mesma por dentro de mim, aquela que ninguém conhece, aquela que está aqui mas ao mesmo tempo não está. Aquela que vos fala.
    Na minha imensidão de mim mesma penso constantemente o quanto, bem, o quanto o mundo é gigante. O universo é infinito. Os cosmos são perfeitos, as nuvens, incontáveis e estrelas são brilhantes. O mundo da voltas, todos os dias, o dia inteiro. Enquanto volta e meia um carro quebra, seu cabelo é lavado, alguém morre, você pega o ônibus, bebês nascem e mais bebês são feitos, a vida é dinâmica e nunca para, o universo não para, o mundo não para, o tempo não para. 
     Foi assim que num frenesi sem fim a imensidão das coisas se tornou evidente de uma forma unica nunca vista por mim, pois diminuiu ainda mais as pequenas coisas insignificantes, que são dadas muito valor. 
    E desta forma, foi assim, que agora, como podes ver, meu caro expectador, as paredes de onde você se encontra foram pintadas, veja, azuis. Sim, e não só isso, as janelas também. Por sua vez, os rodapés. E todos os móveis foram mudados de lugar, alguns incensos foram acessos, as roupas dobradas, veja, e os livros na estante foram reorganizados de uma forma mais elegante, mais convidativa aos olhos. Como você pode perceber, sim, tudo mudou dentro de mim mesma, dentro de mim. As coisas alteraram-se, muitas delas, foram recicladas, refeitas. Pensamentos antes impensáveis, hoje, são conclusões bem resolvidas, que tiro de letra. Mágoas, tristezas, essas coisas mais que prefiro nem comentar, bom, elas foram colocadas fora, não precisava mais daquilo tudo. 
     Bilhetes, cartas, fotos e cartões de Natal coloquei fogo em todos, não precisava mais daquilo tudo, a memória é um bom lugar para se guardar coisas e se ela já estava tão congestionada imagina minhas gavetas como não deveriam de estar. 
     O mundo particular de mim mesma dentro de mim se alterou por toda sua forma, cor, exuberância, essência, maneira de ser. Mudei-me no momento em que me permiti sentir ao toque. Que me permiti recomeçar. 
     O meu mundo não parou por nem um instante, e assim, enquanto um copo caia no chão, enquanto uma musica era tocada, um cão latia ou uma comida era preparada numa manhã de domingo, eu me refazia em pedaços, como se me construísse novamente para que eu voltasse a caber dentro de mim.
    Veja, você que foi convidado para entrar, veja com os seus próprios olhos, até onde eles lhe permitem enxergar. Ou se não, sinta como fluo, sinta como eu falo, sinta apenas. 
     É no toque que nos encontramos.




Annabel Laurino

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

sábado, 7 de dezembro de 2013

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“O destino normal do leitor fanático é se transformar num escritor.”


Rubem Fonseca 

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

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“Que você me guarde na memória, mais do que nas fotos. E que, até o último dia da sua vida, você espalhe delicadamente a nossa história, para poucos ouvintes, como se ela tivesse sido a mais bela história de amor da sua vida. E que uma parte de você acredite que ela foi, de fato, a mais bela história de amor da sua vida. Quero que você nunca mais deixe de pensar em mim.”


Tati Bernardi

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

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Não posso descansar da viagem: beberei 
A vida até a ultima gota; todo tempo gozei 
Imenso, sofri imenso, tanto com aqueles
Que me amaram, como sozinho; em terra e quando
Por correntes arrastadas as Híades chuvosas
Agitavam o mar sombrio: tornei-me um nome...




(O Chamado do Cuco - Robert Galbraith)

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

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“Já passou, já passou. Se você quer saber, eu já sarei, já curou. Me pegou de mal jeito mas não foi nada, estancou.”

Chico Buarque

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Mr. Woody

    Na ultima terça feira eu tive certeza, devo mesmo estar enlouquecendo. Melhor dizendo, eu tive um sonho esquisito na noite passada. Bem, daqueles em que quando acordamos só o que nos resta é desconfiar da tamanha loucura guardada em nossa mente por ter recriado um imaginário tão extenso para um sonho tão sem lógica. 
    De forma alguma que eu não tenha me agradado muitíssimo do tal sonho. É só que, bem, quantas vezes na minha vida o próprio Woody Allen em pessoa poderia estar presente na minha sala de estar tomando uma xícara de café comigo enquanto me aconselhava calmamente a respeito de Freud? Desde a ultima vez que eu chequei, nenhuma, é claro.
    Mas é isso mesmo, Woody Allen, o próprio resolveu surgir nos meus sonhos recriado de uma forma completamente característica e real de como sempre imaginei. Descabelado, com pequenos tufos de cabelos mal espalhados sobre uma futura careca em vista, óculos de grau altíssimo com armações escuras, baixinho, nariz grande, suéter bege e calças cáqui claras, desengonçado, frenético, um humor irônico transbordante. 
    O sonho começa assim, alguém bate na porta, mas eu não escuto porque estou ocupada em tentar desentortar livros amassados que estão espalhados por toda a casa, não sei por qual motivo os livros estão tortos e tão amassados, mas volta e meia eu tento arrumá-los, página por página, então apertam a campainha, que é uma imitação bem fiel de Jingle Bells Rock numa versão anos 30. Dessa vez eu me separo dos livros e vou até a porta, mas a chaleira começa a ferver e eu volto e a tiro do fogo servindo uma xícara cheia de café até que resolvo preparar mais uma xícara, então, ao som da campainha novamente tocando, eu me encaminho até a porta e a abro. 
    Sim, ele mesmo, o tal, o senhor Woody em pessoa me sorri do batente da porta com seu sorriso irônico e pergunta "Fez o café?", eu não digo nada, meneio a cabeça em afirmação e o deixo entrar, da minha altura, magricela, uma maneira de andar como se a sua forma frenética estivesse em conflito com suas pernas bamboleando.
    Woody se senta e toma em mãos sua xícara de café que eu nem tive tempo de oferecer, pega o jornal e começa a lê-lo, por um longo tempo, até que salta do sofá deixando o jornal cair e diz "Sabe aquela galeria de arte nova de que te falei? Então, é hoje, inaugurou!". Sem perder tempo ele pega da minha mão e me arrasta porta a fora. Juntos, nós andamos por ruas de calçadas sujas, passamos por cães de raças em coleiras coloridas, guimbas de cigarros e árvores de folhas alaranjadas e desbotadas, outono, eu penso.
    Woody Allen acende um cigarro e como se recriando a cena de Manhattan, porém desta vez numa rua de um sol fraco ao fundo e dentro do meu próprio sonho, ele diz: 
    - Sei que não deveria estar fumando isso, dá câncer. Mas eu fico tão sexy com ele nas mãos, não acha? 
    - Sim, sim. De toda forma. - respondo. E ele sorri, contente pela minha resposta.
     - "Sabe Nova York era sua cidade, e será para sempre." - ele recita olhando-me por trás de suas lentes de fundo de garrafa.
     - Amo esta parte, amo este filme. É a minha frase, esta que acabou de dizer. 
     - Não, é a nossa frase, menina. 
    Caminhamos e caminhamos enquanto dividimos cigarros e vemos esquilos no Central Park. Tudo que se passa depois são flashes esquisitos. De repente estamos numa galeria toda branca e enevoada, com sofás/pufts dispostos no meio onde as pessoas se deitam e conversam e riem de qualquer coisa, mas obras de arte em exposição não há alguma. Logo, estou deitada nas pernas do senhor Woody Allen, no tal puf gigante, ouvindo-o me dizer que tudo nessa vida é natural "Natural, natural' ele repete, como se estivesse me apresentando a tal palavra pela primeira vez. E por fim, ele diz "Sabe, bem, eu nunca faria parte de um clube do qual aceitassem pessoas como eu. E sabe por que? Porque prefiro fazer parte de um lugar do qual não posso ser aceito. Quem não, não é mesmo?" 
    E o sonho termina com a imagem de eu e o senhor Woody rindo enlouquecidamente sobre os pufs gigantes de uma galeria cheia de pessoas e ao que parece, numa rua qualquer da Times Square. 
    Acordei com a sensação esquisita de que mesmo ludibriada pelo sonho eu queria que fosse verdade. Ah sim, claro que queria. Quem não? 
    E embora sabendo que nada se passou de um sonho, desejei secretamente que uma réstia dele fosse uma lembrança de algo verdadeiro. E assim, Manhattan me veio à mente, e num impulso sedento por algo palpável, eu revivo o filme por mais um milhão de vezes, incontavelmente.





Annabel Laurino 




   

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sábado, 23 de novembro de 2013

Marina

    Sua boca tinha a cor de um m&m's cor de rosa. Seus olhos, de um marrom escuro, quase negro. Ela fitou ao longe e permaneceu ressentida na sua própria forma de pensar. A cor do mar era de um cinza sujo, quase que um marrom desbotado, coisa esquisita mesmo. Hoje os peixeiros não estavam em seus postos, cortando os peixes e falando coisas avulsas e sem nexo. Hoje o dia era vazio.
    Marina ficou aqui, encostada na base de um lampião todo pichado e sujo enquanto analisava o outro lado do porto. Acendeu seu cigarro, calma e lentamente e depois vislumbrou um homem alto vir em sua direção. "Me empresta o fogo ai, moça?". Claro que não iria dizer para ele que não tinha como lhe emprestar fogo algum, mas contendo as palavras lhe entregou na mão enorme e cheia de calos seu isqueiro, esperando ele acender seu cigarro e lhe devolver, e o homem se foi. 
    O vento subia e descia lentamente sobre o mar e fazia cócegas no seu rosto, dançava com os seus cabelos, encarapitando-o para todas as direções, prendeu algumas poucas mechas, as que podia, atrás das orelhas e continuou ali, encostada, como se não tivesse nada para fazer, como se por algum motivo do acaso tivesse caído exatamente ali, naquela posição, naquele minuto e horário do dia. Vinda de lugar nenhum. 
    Se fechasse seus olhos e os abrisse novamente poderia ver a cena de ontem como se não fosse a protagonista da própria e sim uma telespectadora. Marina e ele sentados lá naquele banquinho cor de creme, do outro lado do porto, sua bolsa entre os dois. Perto por centímetros, separados por quilômetros invisíveis e ao mesmo tempo tão visíveis aos seus próprios olhos. Separados para sempre pensou. 
    Sabia exatamente o que o tempo havia feito com eles, pois ele havia os separado, uma distância absurda um do outro, como uma crosta se abrindo sobre a terra em bilhares de rachaduras e vincos, assim tinha sido, até que de repente ficou-se um abismo, irrefutável, irreparável. Irremediável. 
    Sentiu saudade, sua mente vagava exatamente como a visão de um telespectador ali, a observar tudo. Podia vislumbrar os dois, a ela mesma e a ele, sentados. A diferença abrupta de tamanho dos corpos um do outro, ele tão imenso, ela tão pequena. Podia vislumbrar ele acendendo o seu cigarro e a fumaça sucumbindo no ar, o cão vadio passando atrás deles, ela mesma secando o rosto e encurvando os ombros como se sentisse frágil, como se tentasse sumir dentro de si mesma e se auto desligar, sumir dali. 
    O tempo é ladrão. Ele rouba a nossa juventude, nossas lembranças, ele assalta os momentos mais genuínos e se você tiver sorte, talvez ele esqueça de vasculhar embaixo da sua cama ou por dentro da sua gaveta alguma coisa que você deixou escondida, na esperança de pelo menos aquilo não pudesse ser tirado de si, talvez você tenha sorte se ele não quiser levar tudo consigo, seus bibelôs e quadros na parede, seus livros e seus beijos roubados.
    Sentia-se profundamente amargurada e a maresia trouxe um gosto amargo à sua boca cor de rosa, agora já meio desbotada. Quis ter algum poder sobrenatural, como nos filmes ou nos livros, quis salvar alguma coisa que não podia ser salva, como aquela cena agora já fundida na sua memória. Teria a escrito novamente e mudado o seu rumo para todo o sempre. Teria dramatizado eloquentemente em alguns pontos e posto ali um final digno, uma coisa bonita e rara, e por que não feliz? 
    Mas agora o tempo já havia entrado e roubado seus últimos restos de coisas guardadas, escondidas. E ele já havia partido, como sempre, rápido. Marina era assim, maresia a solta, saudade branda, cheia de amores não desfrutados e memórias guardadas. 
    Como se batesse os vãos de uma claquete, ela fechou a cena da memória dentro de sua cabeça e se resignou a só sentir saudade. Apenas isso. Até que o tempo retornasse mais uma vez e lhe roubasse isso.
    Se tivesse sorte.





Annabel Laurino

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

A perda da conta dourada

    Quinta feira é um dia tão normal da semana. Quinta feira, hoje, começou estranha para mim. Primeiro porque tinha acabado o café. E o dia não pode começar sem café. É tão boring, tão saco, tão triste. Descabelada, de pijama amarrotado, cara amassada, 'merda' pensei, acordar sem café é como ir em aniversário de criança e descobrir que não tem negrinho. 
    Olhar aquele pote de vidro reaproveitado de picles vazio do meu café de sempre, só com uns últimos flocos negros no fundo, foi broxante no mínimo. Cabral, eu precisava comprar café, sem ele o dia não começa bem, embora já tivesse começado a algumas horas. 
    Ranzinza, eu me sentia assim. Nostálgica. Até uma folha caindo no meio da construção dos fundos da minha casa pareceu poético, triste, tão desconexo e ao mesmo tempo tão no seu lugar. Algo ficou fervilhando num canto escondido da minha mente, escondido até das minhas percepções mais perspicazes. Dos meus sensores mais rápidos. Algo que deveria mesmo estar escondido, era esse seu lugar, o canto escuro da minha mente, para que nem eu mesma visse, e que talvez, eu mesma o tenha forçado a estar lá.
    Calcei os sapatos depois que vesti as calças. Como deve-se fazer. E nos meus sapatos pretos de contas douradas, eu vi. Faltava uma conta. 
    Pequenina, dourada, minuscula. Ela caiu, ou eu a perdi, sabe-se lá onde, quando, como. Faltava a minha conta dourada no meu sapato preto e o sentimento foi o mesmo de ver o meu vidro de picles sem o café. Respirar fundo e mentalizar coisas boas não iria funcionar, eu já estava avançando de uma etapa ranzinza para um mau humor total.
    Para completar, juntamente com me sentir mau humorada eu me senti nostálgica. Filosofa. Ah, lá se foi a minha conta dourada. E da conta dourada, do meu café preto, tudo isso que me faltava eu nem quis mais sair de casa. Perdi a vontade. Ela sucumbiu, saiu correndo para debaixo da cama e se escondeu. Nisso tudo, o que estava lá no fundo obscuro da minha mente resolveu dar as caras e veio dando olá, fazendo barulho, arrastando coisas e tirando outras de lugar enquanto desestabilizava tudo. 
    A sensação foi mais forte, porque ainda olhando para o meu sapato com aquela estranha falta de uma conta que ligava todas as outras, parecendo até um sorriso sem um dente da frente, foi como me senti quando pensei nele, nele. É. Ele. Ele mais do que a minha conta dourada dando falta ou o café preto sem réstias no fundo do vidro. 
    O que já era pior se tornou uma catástrofe e o dia seguiu assim, musicas de Frank Sinatra, sem nenhum café para acompanhar e um sol e depois uma chuva dando alivio e um sol dando socos na minha cara novamente, e vento frio e gente me empurrando nas ruas como se não houvesse amanhã. Claro, e o meu sapato com uma conta faltando. 
    Várias vezes tive vontade de voltar para a cama e dormir e dormir. Porque como já dizia Caio Fernando Abreu, dormir é o melhor remédio, ele remedia alguns problemas. Sendo assim eu queria fazer exatamente isso. Mas também não pude. 
    O dia acabou.
    Comprei mais café para o vidro de picles.
    Não encontrei a minha conta dourada do sapato preto, mas substitui por outra, ficou estranha, meio desloucada no meio das outras iguais. Assim é a vida.
    Continuei nostálgica.
    E ele? Ele é a minha conta dourada perdida numa calçada suja por ai. 
    Assim é a vida. Conclui.






Annabel Laurino
   

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

The Lady is a Tramp


"She likes the free, fresh wind in her hair
Life without care
She's broke, and it's 'ok'"




Frank Sinatra

Rocket Queen

Eu vejo você parada
Parada sozinha
É um lugar solitário para você
Para você estar
Se você precisar de um ombro
Ou se você precisar de um amigo
Eu estarei aqui esperando
Até a amargura passar
Ninguém precisa da tristeza
Ninguém precisa da dor
Eu odeio ver você
Andando aí fora
Aí fora na chuva
Então não me castigue
Ou pense que eu, eu te ofendi
Como aqueles que te levam
E te fazem sofrer
Muito longe



Guns N Roses

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

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So I kiss goodbye to every little ounce of pain
Light a cigarette and wish the world away
I got out, I got out, I'm alive and I'm here to stay
So I hold two fingers up to yesterday
Light a cigarette and smoke it all away
I got out, I got out, I'm alive and I'm here to stay




Jake Bugg

sábado, 9 de novembro de 2013

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Exausted

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“No início você briga, chora, faz drama mexicano. Então percebe que é cansativo demais manter esse jeito de levar as coisas. Acostuma-se… Não que pare de doer, mas que cai no seu entendimento que às vezes perdemos algo e não há solução. No fim você coloca um sorriso no rosto e finge que é sincero, até que a vida o faça realmente ser. Talvez os amores eternos sejam amenos e os intensos, passageiros. É isso.”



 Caio Fernando Abreu

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Tennessee

Fagulhas presas se desprendem facilmente pelo ar
Tudo se desprende
O que vejo é fosco 
Como um filme em preto e branco
Não há romance
O romance acabou nos ultimos cento e vinte minutos
Cento e vinte minutos mal focados em cenas confusas, difusas
Me deixaram ver através da janela
E depois eles a fecharam
Como algo ilimitado
Eles me venderam o produto falso 
Por trás de uma propaganda recheada de sonhos bonitos, vestidos bem cortados
Trejeitos elegantes 
Mas eu nem sei se quer o que a elegância convém 
Comprei mesmo assim: onde assino?
Disseram que eu poderia ir para Tennessee no verão que vem
Eu nem sei onde fica, reservei as passagens mesmo assim
Me deram um aperto de mãos e fugiram com meu sobrenome rabiscado em preto no papel branco
Genial
Tennessee ficou para o próximo e próximo verão
Depois deste, que nem começou
Romances de revista
Romance por toda parte
Nas novelas e nos outdoors
O romance é bonito, eles te fazem pensar
E só gente bonita é que pode amar
Romance é a droga mais vendida
E eu nem se quer vi os campos verdes, o céu azul pastoso
Eu nem coloquei os pés 
Em Tennessee



Annabel Laurino

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Ventania

    Novembro está ai. Chegou batendo forte nas janelas com esse vento todo assoprando a seco e levando tudo. Trazendo tudo também. Veio socando as paredes de concreto das casas, arrebentando árvores, desfazendo varais de roupa, balançando fios elétricos e levantando poeira por todo lado. Forte, destemido. Os ventos vem e vão. E são esses mesmos ventos de novembro que assomam agora lá fora, que trazem coisas que eu tentei esquecer o ano todo. Que eu fingi esquecer, pelo menos.
    Novembro é sempre assim. Teimoso. Indeciso. Com um pé no inverno e o outro no verão. Como dizia Martha Medeiros, apego ao passado e desesperado pelo novo. E de novo posso ver o ano que vem a frente assim que dezembro chegar e logo logo acabar. E dessa vez o que Novembro me traz é as lembranças antigas de coisas que aconteceram e marcaram. Sim, o gosto bom do que ficou, daquilo que já foi e não volta. Não tem como voltar. 
    Como lei a gente sabe lá no fundo que tudo sempre vai, sempre se vai. E dessa vez a esperança é que algo também se vá. Que Novembro leve consigo nessas ventanias a solta todas as mesmices e más lembranças, que já não me servem mais. 
    É noite fria lá fora e o vento arromba as portas sem pedir licença, sem medir espaço. É frio, vento frio daqueles que exige um casaco, um agasalho, que levanta os cabelinhos dos braços e faz a gente se encolher. Um café, eu digo, noites daquelas que se precisa de uma companhia quente de um café forte. 
    Envolta em lembranças, difundo minha mente numa busca desesperada para me ver livre do passado, ao mesmo tempo em que mergulho novamente nas minhas memórias secretas e escondias e chafurdo mais uma vez numa espécie de nostalgia, tal qual só eu mesma reconheço. Fico como se degustando uma bala na boca lentamente, retirando o gosto bom que a bala tem. Mas ela nunca acaba. 
    Além do que já se foi me pergunto o que virá. O que Novembro me reserva agora? O que vem por ai junto com os seus ventos tempestuosos de céu escuro e muita chuva? 
    Ainda não sei. Desperto a mim mesma nessa vontade, nessa curiosidade do que o futuro pode fazer por aqui, das suas travessuras e brincadeiras, das trapaças de vida que sempre pulam pra fora nos surpreendendo. 
    Ah Novembro... Seja bem vindo, pelo menos.





Annabel Laurino
      

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Rodoviária

    A vida é uma rodoviária.
    Percebi isso enquanto abria mais uma carteira de cigarros e olhava atenta para a mala de uma senhora sendo colocada dentro do ônibus. Pessoas, todas elas diferentes uma das outras e ao mesmo tão iguais. O que as distingue? O que nos torna iguais? O que nos faz tão parecidos e ao mesmo tempo tão... Característicos?
    O lacre é firme e por isso demoro para abrir mas logo quando consigo coloco um maço na boca e acendo. O primeiro do dia é sempre forte e por isso sinto a garganta arder levemente e depois relaxar. Torpor, é por isso que procuro. O torpor da vida, algo que silencie o barulho, que estampe o caos, que relaxe os músculos tencionados de uma noite mal dormida. 
    Um casal abraçando-se chama minha atenção enquanto livro-me das cinzas. A moça segura o rosto do rapaz enquanto tenta explicar algo, baixinho, e parece calma enquanto chora, choro de entendimento, do tipo sem soluços, daqueles de despedida tranquila com direito a regresso. Mais um ônibus chega e o rapaz apruma sua mochila nas costas e se despede dela com um beijo demorado, contido. Por fim, ele acena e entra no ônibus. Ela acena de volta e chora um pouco até ir embora, sem olhar para trás.
    Despedidas. A vida é cheia delas. Eu ainda não entendo porque elas existem. A primeira vez que tive que me despedir de algo foi de um gato que tive na infância, eu tinha 5 anos de idade e não consegui entender porque eu tinha que dar tchau para ele e ele não podia ser mais meu. Eu queria que ele fosse meu para sempre. Então com aquela idade eu fui apresentada à minha primeira despedida. Minha mãe disse que eu podia ter outros gatos, e eu tive, e depois tive que me despedir deles também. Entendi que qualquer coisa iria embora depois de algum tempo e logo eu não quis mais nenhum gato.
    Um senhor de idade termina seu cigarro e olha fixo para mim, ele pisa no maço e estala os lábios e depois apruma os óculos de aros de tartaruga. Olhar firme, olhar cheio de rugas, olhos que já viram muito, vivenciaram muita coisa, olhos de quem tem calma na alma. Ele me olha como se soubesse exatamente o que eu estou pensando, como se pudesse ler os meus pensamentos e entendesse cada minuscula forma de vida dentro de mim, eu tão simples, ali sentada com um cigarro nos lábios e metade da vida dele percorrida. Ele me entende, ele me capta, por apenas nano segundos e eu me sinto lida, como um livro deve se sentir, depois disso ele não diz mais nada e vai embora, passos lentos, sem pressa.
    Olho no relógio e são 8:15 da manhã. Não entendo nada e a mente ainda parece uma gaiola fechada tentando conter alguma coisa viva querendo se libertar. O coração parece morto, meio vivo, meio dormente. Eu cato meia duzia de olhares distraídos, gente para todo lado, gente chegando, gente indo, para algum ou de algum lugar.
    O que todas elas levam além de suas bolsas e malas? 
    Recordações, saudade, memórias, dor, ansiedade, tristeza, felicidade... Isso as torna iguais, isso me torna iguais a todos eles, a todos, por todos os lados. É o que as despedidas nos geram, é o que a vida nos torna. Esse fluxo imenso de idas e vindas todos os dias, de surpresas inacabáveis e de despedidas inesperadas nos tornam seres sucumbidos de saudade, de memórias, de lembranças. 
    Do que é que eu sinto saudade? Do que é que eu me lembro? Do que eu me despeço?
    Mais um ônibus chega, com os faróis ligados, praticamente inuteis numa manhã com o céu tão branco, cheio de luz branda. É uma tempestade que chega, vinda de longe, sabe-se lá de onde. Me vejo refletida no vidro sujo da rodoviária, os olhos turvos, feições minhas que desconheço, carrego um mundo desconhecido no peito e que ninguém vê e talvez nunca verá. Alguém passa em frente ao reflexo e por segundos eu sou só um borrão de luz refletido no vidro. Um borrão na vida, da vida. Um borrão rápido passando para algum lugar, despedindo-me talvez, ou saudando quem sabe.
    A vida é dinâminca. Cheia de saudades. 





Annabel Laurino 



quarta-feira, 23 de outubro de 2013

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"Só um rascunho, a folha está cheia deles. Riscos e palavras procurando um caminho. Só um caminho, a vida está cheia deles. Meu destino eu faço, traço passo a passo. Sou um rascunho. Pelo jeito a mão tremia, pelo jeito pretendia passar a limpo outro dia. Hoje estou só. Hoje estou tão cheio deles. Sou um rascunho procurando um caminho. Fica pra outro dia ser uma obra-prima que não fede, nem cheira. Não fode e nem sai de cima. Fica pra outra hora ser alguém importante. Se o que importa não importa, não dá nada ser irrelevante. Só um rascunho, um risco na mesa do bar. Carnaval sem samba. Outra praia, mesmo mar. Só um rascunho. Um torpedo de celular sem sinal na área, sem chance de chegar. Não fica pronto nunca. Não há final feliz. Não há razão pra desespero, ouça o que o silêncio diz. Não tem roteiro certo, não espere um ‘gran finale’. Tão pouco espere, amiga, que a minha voz se cale."


Esteban in Tchau Radar

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

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“E no fundo, bem fundo, no fundo do fundo, lá ali onde você costuma ficar” — ela disse ao meu ouvido: “É onde eu me escondo, me sinto segura. É ali o meu melhor lugar.”

Andre Wade

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

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Mel e Girassóis; Caio Fernando Abreu

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"Vou te ligar. Fico matutando apegado ao assunto o dia todo, como aquele último chiclete de esperança, que já está gasto e sem gosto, mas você continua insistindo em mascar, muito porque não sabe mais o que fazer com a própria língua e dentes. Você pode estar doente. Pode estar carente, com saudade, precisando me dizer uma coisa que nunca teve coragem de dizer. Pego o telefone e uma maçã. Talvez morder alguma fruta no meio do diálogo dê a impressão de que te ligar é um acontecimento casual, que estou nem aí na verdade, só estou fazendo hora porque a água do meu banho ainda não esquentou, e eu estava sem nada pra fazer de toda forma. “E aí, como vão as coisas?”, ensaio. Abocanho a maçã, mas não digito seus números. Quando crio coragem, o buraco na fruta exibe a carne ressecando e escurecendo de oxidação. Ligo, chama-chama e não atende. Me sinto enjoado. A secretária eletrônica me encaminha até a caixa postal. Deixo recado: – Juro, dessa vez estive muito perto de te esquecer."



 Gabito Nunes

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"Qualquer que fosse o motivo, isso estava nos levando à loucura. Eu me sentia dividida em duas.[...]"


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"- Nenhum de vocês assume o que sente, esse é o problema. Vocês têm tanto medo do que pode acontecer que estão lutando contra isso com unhas e dentes."





                                                            Belo Desastre pag. 127 e 128

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Erase

    Me pergunto se é possível fazer com que você volte a atuar na minha vida. Quero dizer, de verdade, a pegar o seu papel de volta com o diretor e os produtores do script e roteiro. Eu mesma dou a maior força. Vai entrando e exigindo seu papel principal de volta, sem nem querer saber, deixa isso de ser coadjuvante, isso não é pra você meu bem. Qualquer pessoa sã que desfrute de um mínimo de inteligência e te veja ao meu lado sabe que o seu papel na minha vida não é assim de poucas falas e poucas cenas. 
    Foi por isso que acordei vendo aquele filme que assistimos juntos uma certa vez e com uma vontade louca de te ligar, de me jogar sobre o telefone e discar logo o seu número. "Estou urgente de você.". Eu diria. Mas pensando bem, não seria assim uma frase de efeito tão boa, algo que aquela mulher vulgar no filme falaria. Não quero parecer vulgar, quero parecer com saudades. Então repenso, solto o telefone, me remoo de vontade e volto a fitar o filme séria, calada. 
    De toda forma, é a mais pura verdade que me vale agora, que estou urgente até mesmo dos seus fios de cabelo até aquele seu jeito irritante de me tirar do sério.
    Por que motivo mesmo é que você não volta?
    Ah sim, a vida deu alguns retrocessos nos últimos tempos, nos dividiu ao meio de nós mesmos. Quem se importa? Eu me importo! É por isso que sinto falta todo domingo e tenho vontade de abrir um buraco no meio do parque só para que eu possa me jogar dentro e sair de lá só quando janeiro voltar limpinho com um novo ano.
    Mas Ano Novo me lembra você. Janeiro também, verão, nós dois mortos de calor comendo sorvete no meu quarto e com o ventilador no máximo enquanto você tirava proveito dos meus vestidos coloridos.
    Um outro planeta talvez? Levem-me para Marte, Saturno, Vênus, Lua, sei lá. Talvez lá não exista você e nem mais qualquer vestígio que me faça lembrar você. Mas o que eu faço com as lembranças encravadas no peito? As engulo.
    É o que tenho feito desde que tudo isso me desestabilizou. Engolir e engolir, no more. E o tempo vem passando como se me arrastasse para qualquer caminho, que eu tenho trilhado sem nem perceber. É uma surpresa todos os acontecimentos e de repente eu só vou fazendo o que me mandam fazer e em outros momentos eu tomo as rédeas, eu violo os vícios, eu quebro as barreiras, eu jogo foras suas fotografias, digo que te esqueci, eu minto, eu me convenço, eu me desperto, me desespero. Mas depois eu me flagro te saudando de saudades, eu me interrogo, eu me distraio, eu me lembro.
    Ultimamente ando desejando uma clínica médica como no filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. Apertar um botão e tudo seria esquecido prontamente.
    Mas é então quando eu me lembro do final do filme, de como tudo não funcionou. E eu tenho novamente a vontade imensa de ter a oportunidade de apertar um maldito botão para te excluir imediatamente só para saber se com você, se dessa vez, iria funcionar.
    Só que eu já sei a resposta. Eu já sei como tudo termina.
   





Annabel Laurino
 
   

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Caleidoscópica - Parte 2 de A Arte da Contemplação

   Acordo num solavanco. Abro os olhos. É instintivo. 
   Foi um sonho ou foi uma lembrança, não sei ao certo distinguir mas o rosto familiar estava lá e acordo agora com os olhos abertos de surpresa, pavor, medo, doloridas lembranças que nunca existiram mas me assolam forte. A cama quente e o corpo suado, procuro o copo d'água que está sempre ao lado da cama e bebo a água, quase engasgo e depois deito novamente e na procura para não me sentir mais só eu procuro a mim mesma dentro do emaranhado de cobertas e abraço qualquer coisa minha, como meu estomago, minhas pernas, acalmo meus braços e digo "está tudo bem, foi só um sonho.".
    Acordar é sempre tão difícil. Acordar depois que ele foi embora é sempre tão... Difícil. 
    Não foi só um sonho, eu sei que não foi. Duas noites seguidas com o mesmo rosto familiar, os mesmos lugares estranhos, a cidade acessa numa confusão. A beautiful Mess. É a minha mente me tratando como refém e eu nunca descanso, nem mesmo quando acordo, como agora. As lembranças do que sonhei ficam em mim durante todo o dia, se pelo menos elas acabassem quando o sonho termina e eu só sentisse a injeção delas durante e não sendo forçada a senti-las até mesmo depois.
    Saio da cama e calço os sapatos, visto uma camisa grande, aquela camisa grande de flanela vermelha que era dele e que foi esquecida por aqui, esquecida como tudo nesse apartamento, inclusive eu. 
    Quinta-feira. Quinta-feira são dias ruins, vai ver é isso. Anoto mentalmente. Quinta-feira são dias do mal.
    E é aqui que me encontro agora, te escrevendo palavras a solta desde que me tornei lucida após meus sonhos congestionados, esvaziando a cabeça, acalmando o peito. Sei que você não se importa que eu te diga tudo isso, você é meu amigo e não como todos os outros. Eu sei que você me ouve e me consola, você vai entender. Não dirá nada, mas ponderadamente vai me dizer que foi um sonho e que a vida é aqui e agora, tudo bem, está tudo bem.
    Sou desconfiada e me pergunto, está mesmo? Está mesmo tudo bem? É normal isso depois de tanto tempo? Se eu ligasse para minha mãe agora mesmo ela diria que eu preciso de um chá quente e talvez um paracetamol, uma dose de sol, estou muito branca, que estou sofrendo de uma crise depressiva só preciso aceitar que a vida é dinâmica, tudo se encaixará. Ah esses psicoterapeutas e suas soluções de fast-food. Já estou transbordando de soluções. Preciso de efetivas.
     Então escolho o mais sensato a se fazer e a abro a janela, a unica janela do meu minusculo lar, a de frente para a cama e deixo o ar entrar. Pego um pão e faço uma torrada e depois faço um café e sinto que a vida vai começar ou que pelo menos o dia vai começar. Mas o dia já começou faz algumas horas, já é à tarde e eu sinto mais uma vez que estou atrasada para tudo. Que eles são mais rápidos do que a minha lerdeza para digerir a vida.
     Tudo bem, amanhã é sexta-feira, amanhã eu acordo cedo, vou a feira, compro comida para o gato, limpo a casa, levo as roupas para lavar e quem sabe gasto algum dinheiro naquelas rapadinhas que me prometem a sorte grande de ganhar uma bolada de trezentos mil reais. Vai ver pode ser uma sexta-feira interessante.
     Caminho pelo espaço, desvio das caixas, as caixas com o nome dele e que ainda não entreguei. Não entreguei e nem ao menos sei quando irei entregar. Não importa. Nada mais tem tanta importância assim, é por isso que não entrego. Deixo estar.
     Faço cafuné no Camafeu, o gato. Ele não liga muito e continua a ficar deitado preguiçosamente na soleira da janela, sua atividade mais importante do dia enquanto fica observando o aquário de peixes do vizinho em exposição na janela. Pelo menos ele é atento aos seus sonhos. Gato esperto.
     Então eu entro no meu paradigma. Bem, sair então. Pego a bolsa, cato as chaves dentro de uma tigela de cereal esquecida por cima da mesa e encontro cinco reais dentro de um jeans abandonado no sofá, um jeans que não é meu. E saio, desço as escadas, abro a porta e lá está a rua e todas as pessoas. Alguém me cumprimenta, retribuo com um aceno com a cabeça, não presto a atenção. Acendo um cigarro. Caminho e caminho, a bolsa dependurada no ombro, é como nadar num oceano sem fim e não ter uma direção que eu possa seguir, eu só vou indo e vou deixando ser levada. Passo por lojas, pessoas, farmácias, placas de construções, pedreiros, é um barulho sem descanso, britadeiras à todo escândalo e senhores de idade reclamando na fila do banco.
     Eu não me prendo aos pontos de exclamações a minha volta, as coisas gritantes como o que as pessoas estão vestindo hoje, qual é a ultima tendência, veja só aquele casal gay atravessando a rua ou 'o que é aquilo no rosto daquele cara, uma tatuagem?'. Me perco é nos detalhes, nas chaminés das casas, nos prédios e arranha-céus, nas buzinas, nas conversas ao telefone, nas fumaças de cigarro, as xícaras de café abandonadas nos botecos do centro, os feirantes com suas solas de sapato gastos. Eu sou uma intrusa, eu me interrompo no meio. Eu os observo e ele nem notam, estão aflitos em sobreviver à mais um dia de vida, de rotina pura, de gritante e desesperada fome de mais um dia. 
     Chego até ao cais da cidade e me sento perto do mar. Tem cheiro de peixe porque alguns pescadores cortam e vendem seus pescados de manhã, o cheiro é fresco e se mescla com a tarde de sol baixo e a maresia. É confortante e olhando para o lado vejo que não sou só eu que penso isso, há outras pessoas por aqui, grupos de adolescentes e garotos com um violão desafinado. Fumo enquanto penso e não esqueço de nada, a cabeça é como filtro onde mantenho viva todas as memórias de um tempo que deixou de existir. Hoje é dia de melancolia, percebo.
     Me deixo ser levada para o passado como naturalmente sou levada a cair no sono ou a piscar os olhos, ações naturais de mim mesma, mas que não doem, não machucam como essa faz. E lá está ele com a garrafa de cerveja na mão me dizendo que iria embora, que o sonho tinha acabado. Foi naquele momento que passei a odiá-lo? Não, não, eu lembro que já o odiava antes, mas antes sempre era amor mais do que ódio e por isso durava, claro que durava. Dessa vez foi só ódio, foi só eu mesma gritando para que ele fosse embora e levasse consigo tudo que era dele. Ele não levou e uma semana depois eu ainda usava sua camisa de flanelas e colocava para tocar a mesma musica. 
     Não sinto ódio até hoje. E isso já faz seis meses.
     É entendiante ser tão só as vezes, porque nesses momentos de raiva ou de pura melancolia eu queria confessar para alguém que tudo é uma merda do caramba e que sim, todos nós somos solitários, que precisamos de algo a mais e por não encontrarmos nós nos apaixonamos, bebemos, fumamos, temos filhos e sei lá, morremos sem lembrarmos porque estivemos ou o que nos faz ou fez feliz. É nessas horas que eu queria admitir que vezenquando eu tenho vontade de chorar.
     Desisto do drama. Levanto e saio caminhando e vejo uma pichação na base de um lampião do cais. "Estão todos surdos.". É a coisa mais inteligente que li hoje e por isso fico lendo a frase repetidas vezes. Concluo que estou surda também. Estamos todos surdos. É profundo e eu quero abraçar quem deixou essa marca por aqui. Pego a máquina de dentro da bolsa e registro o que vejo. 
     Se você ainda está lendo isso você pode adivinhar para onde eu vou agora. Está certo, eu vou para aquele lugar. Eu vou me sentir mais caleidoscópica do que nunca lá, no topo. Registrar mentalmente as transmutações inervosas de um mundo decadente. Surdo.
    Chego perto do prédio, é velho, é feio. Abro o portão e cumprimento um grupo de moradores que já me conhecem, o cheiro de meia velha é forte. Subo as escadas, passo por roupas secando em portas abertas, cenas que me corrompem, flashs de vidas esquecidas. Todos aqui são tão intrusos quanto eu. 
     Piso no ultimo degrau, no 75° degrau, quase sem folêgo, retomo a compostura e como se com sede caminho até a porta em pedaços, já aberta. Entro como um gato entraria por uma fresta de uma casa a noite e vou para a janela, horário perfeito, um sol brilhando ao fundo me cumprimenta. 
      Não faço ideia de por onde ele deve estar a essa hora da tarde, no trabalho, na faculdade, em outro país, em outra cama, com a nova namorada, beijando a ela como beijava a mim e depois dizendo pra ela que nunca foi tão bom como dizia que nunca tinha sido tão bom comigo. Imagino tudo isso num frenesi, minha cabeça parece que vai rachar. Gasto oito horas do meu dia pensando nisso e quando percebo já se passaram mais 8 e assim vou indo. 
      No prédio à frente do meu as janelas estão todas abertas. Uma em especial possui um individuo que me observa e sua fumaça de cigarro espirala pelo ar como uma chaminé, e sei em silêncio que ele esperava por mim. Não sei se ele sorri ou se parece sério, mas ele não sorriria, ele não é do tipo de pessoa com sorriso fácil, por isso eu sei que ele só está me olhando. No pescoço eu consigo ver sua tatuagem negra e então ele levanta a mão e me acena. 
     Encerro meus registros e acendo outro cigarro. A vida numa mutação assídua lá fora enquanto me visto neutra, aqui dentro. Por quando tempo posso me esconder? Por quanto tempo posso fingir que o barco não irá virar? Por quanto tempo até você me descobrir?


 



Annabel Laurino 






 

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

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"(…) não tem importância que você não compreenda isso, porque estou acostumado com a incompreensão alheia, com a minha própria incompreensão, mais do que tudo."



 Caio Fernando Abreu

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

A Arte da Contemplação

    Silêncio.
    Silêncio.
    Silêncio.
    Ah, agora sim. 
    Pelo menos os 75 degraus que subi até aqui valeram a pena, sim, eu contei. 75 degraus de subida depois do elevador até o topo do que eu posso considerar, majestosamente de 'o topo do mundo'. Claro, isso se você quer mesmo acreditar em mim, caso contrário eu posso ser mais realista e te falar que o meu 'topo do mundo' é bem mais embaixo, trata-se apenas de uma visão ampla de uma cidadezinha no final do mapa do país. Só isso. Embora só isso seria essa visão claramente deliciosa, que já me deixa contente. Olhe lá embaixo, perto da praça, o mesmo vendedor de churros que passa o dia marcando ponto no calçadão indo embora com a sua carroça meio desgastada de todos os dias ou os velhinhos logo mais a frente jogando xadrez nos seus típicos assentos descascados. Velhos, muito velhos, os bancos, é claro.
    Agito, que agito! A cidade toda com as luzes acesas, final de dia, aquela loucura de corre-corre pra pegar o busão e ir pra casa assistir a novela, colocar a fofoca em dia com o marido ou fazer aquela jantinha gostosa com a receita tirada de uma revista folheada na sala de espera do dentista. Que beleza. A cidade acessa, hora de pico, os ônibus trabalhando seus motores a todo gás. E mesmo daqui de cima consigo ver suas fumaças tóxicas poluindo a cidade por ai. Os carros também, aquela poluição sonora do caramba, nunca para. 
    Só aqui em cima. Aqui, no topo de tudo, de todos eles, ninguém pode me ver e somente eu vejo a todos. Acendo o cigarro, só mais unzinho, prometo. O ar quente espirala pelo ar e sai pelas minhas narinas, entra nas minhas retinas, poros, tudo. Sou só eu e o cigarro amigo. A cidade nem sei, tão louca em euforia. Fico aqui, vendo a todos, aqui é silêncio puro, através dessa vidraça comprida e fria, as luzes refletem e voltam a todo instante e junto das buzinas gritantes lá fora há o frio inquieto, as árvores secas da praça, o verde, as pessoas atravessando as ruas, o mar de gente.
    Te dizer que mesmo a vida lá embaixo sendo eufórica eu prefiro a curiosidade daqueles os mais escondidos, por assim dizer, pois eles não se escondem, eles só vivem nas suas caixinhas secretas com paredes como cascas de ovos e ali produzem uma vida que talvez muita gente nem imagine que eles levem. Você sabe, as pessoas dentro de suas casas. É, isso mesmo. Por exemplo, mais acima, no prédio bem a frente do meu eu vejo aquela senhora de meia idade colocando o café para passar na cafeteira e abrindo a porta da varanda para o seu Poodle de sei lá quantos anos, mais velho do que ela talvez, sair. Eu sei que por ela morar com o marido o café seja exclusivamente para ele, talvez ela goste de chá e se sim, imagino se ela não gosta de café, se ela só o prepara por causa dele. E logo na janela mais abaixo eu consigo ver um homem forte fazendo esteira na frente da TV, os dois filhos, creio eu, lutando no sofá da sala enquanto a esposa chega em casa e começa a gritar com todo mundo. Nas outras janelas, mais vida, vida que nunca acaba. Desde a mulher tingindo os cabelos na frente do espelho do banheiro até aquela que passa a roupa na sala enquanto fala ao telefone com a amiga e em outras mais janelas eu vejo o cara com a sua amante e em outra os adolescentes fumando no quarto escondido. Tudo isso num segundo só e todos eles ali, palpáveis, secretos em seus mundinhos e eu os descubro, os fantasio sem permissão. Sou uma intrusa. 
    18:38. O cigarro acabou faz tempo por isso acendo outro. Certo, eu disse que era só mais um, prometi até. Mas o meu lema é esse, não levo promessas a sério, as que eu faço, pelo menos. E com toda a minha força juvenil eu repito que esse será o ultimo e no more. Abro a janela mais um pouco e o barulho de fora vai entrando como se me jogassem uma tolha úmida na cara, é forte, é estrondoso. 
    No que eles pensam? O que eles querem? Para onde vão? O que está além do que realmente está ali? Hoje cedo a secretária da clínica médica me atendeu com os olhos vermelhos e cheios d'água. O que houve com ela? Ela nem segurava a caneta direito e na outra mão um lenço umedecido. Me pergunto se deu tudo errado com o noivo ou o pai morreu. Não tive coragem de perguntar. Talvez agora mesmo ela seja uma das formiguinhas ambulantes lá embaixo, entrando no ônibus apressada, ainda com  os olhos inchados, ou dentro de um carro, ouvindo musica de cortar os pulsos e se questionando da vida enquanto detesta silenciosamente seu uniforme de trabalho.
    Nunca vejo o tempo passar daqui de cima, mas o tempo passa, não, ele não passa, ele voa. As luzes se acendem gloriosas lá embaixo, cada vez mais. E as luzes dos prédios de moradia, são as pessoas chegando em casa. A vida toda num frenesi sem fim. 
    Mudo a posição e me debruço sobre o parapeito da janela, as cinzas caem lá embaixo, para lugar nenhum, sobre o vento. Eu poderia descrever a você o que me leva a crer quem sou eu agora, nesse exato instante em que falo, mas sou qualquer um, por exemplo, a pessoa que pega ônibus com você todos os dias, chego em casa e escrevo, como agora, essa escrita cheia de conotações cinzentas. Você não quer saber quem eu sou. Eu só estou aqui, fumando meu cigarro de todo dia, olhando pra você indo em direção ao seu caminho, entrando em algum lugar ou vivendo sua vida, vendo TV, quem sabe. Sou alguém que você esbarrou na fila do banco e não disse desculpa, ou quem te vendeu um sorvete ou até mesmo te deu uma informação sobre onde ficava mesmo aquela antiga relojoaria da cidade. Você nunca irá saber porque eu não me revelo, eu me encubro. Me escondo onde não podem me ver e assim, eu me intrometo.
    Respiro fundo. Poluição por todos os lados, aqui, ali, lá e mais ao longe. A lagoa próxima trás uma brisa fresca que me consola. É bom aqui, tudo, desde os mínimos aos máximos detalhes. Tudo me conforta. 
    E por um momento, eu paro.
    Silêncio. 
    Alguém me observa. Em uma janela acessa no prédio a frente, um ser tal eu que o olho me analisa, me fita, me contempla. Fui flagrada.
    Ou vice e versa.  
    Uma buzina ressoa forte ao longe.
    E continuamos.  




Annabel Laurino 





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"Um belo dia resolvi mudar 
 E fazer tudo que eu queria fazer"



Rita Lee

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

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" Eis o que não é bonito em tudo isso: daqui não se vê a poeira ou a tinta rachando ou sei lá o quê, mas dá para ver o que este lugar é de verdade. Dá para ver o quanto é falso. Não é nem consistente o suficiente para ser feito de plástico. É uma cidade de papel. Que dizer, olhe para ela, Q: Olhe para todas aquelas ruas sem saídas, aquelas ruas que dão a volta em si mesmas, todas aquelas casas construídas para virem a baixo. Todas aquelas pessoas de papel vivendo suas vidas em casas de papel, queimando o futuro para se manterem aquecidas. (…) Todos idiotizados com a obsessão por possuir coisas. Todas as coisas finas e frágeis feito papel. E todas as pessoas também. Vivi aqui durante dezoito anos e nunca encontrei ninguém que se importasse com qualquer coisa. "



Livro Cidades de Papel, John Green

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Listen to The Rain

    Ninguém pode espiar dentro do meu mundo. Não há frestas nem vãos de portas abertas, ele é selado pelo mais forte de todos os velcros. E é agora, presa nesse mundo escondido que analiso a chuva lá fora que bate e volta nos vidros frios da janela do meu quarto, gotas que produzem barulhos altos nas telhas da casa e ressoam aqui dentro e que trazem conforto. É como se eu ainda estivesse em um tempo atrás mas totalmente aqui agora, nesse presente right now que é continuamente contínuo e se transforma a todo instante. Só que mesmo assim, mesmo assim meu caro, é no passado que eu penso quando deito a cabeça no travesseiro todas as noites, é nele em que eu me lembro.
    Como dizia a musica do Cazuza, eu vejo um futuro repetir o passado. E eu me vejo constantemente lá, no meu futuro intocável e lembro constantemente do passado, o passado que agora já deixou de existir pois não atua mais sobre mim, a não ser claro como uma lembrança, com saudade.
    Será que estaremos todos destinados a isso, sermos passados, termos passados e nunca mais retornarmos a ele? Eu lembro de um livro que eu li, The Great Gatsby, o caro e pobre Gatsby que acreditava constantemente que ele poderia ter seu passado de volta intacto, que ele poderia ter Daisy de volta e sim, que ele poderia fazer com que tudo, exatamente tudo, voltasse a ser como antes. E assim, Gatsby vivia constantemente correndo em direção ao seu futuro refletido num passado distante.
    Um mundo intocável esse a partir do momento em que já se perdeu, acredito. É por isso que nesse mundo em me escondo cheio de lembranças, de fotos e recordações memoráveis e que ninguém pode ver, ninguém pode sentir e nem espiar dentro dele, porque ninguém jamais sentirá exatamente o que eu senti quando vivi tudo aquilo. A não ser, claro, quem viveu comigo.
    Gotas de chuva ainda caem lá fora, é um dia cinzo e eu ouço musica velha pra espantar qualquer tipo de silêncio indesejável. A gente sempre prefere o barulho, a gente sempre prefere o conforto de fingir que algo não está ali quando na verdade ele está.
    E o que está agora é um futuro que eu não consigo prever.
    Assusta? Me pergunto.
    Assusta.




Annabel Laurino 

terça-feira, 10 de setembro de 2013

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“Meu negócio não era coisa pequena. Eu queria o mundo ou nada.”



 Charles Bukowski

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

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“Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros.”




      Clarice Lispector, (último bilhete escrito no hospital da Lagoa, Rio de Janeiro, 7/12/1977.)

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Acostumar

    Mas se tudo isso fosse ensaiado, só que não é. Até agora depois de todos os momentos nunca foi. Nada combinado, nada programado. Você só chegou bem perto de mim enquanto a musica começava com suas nuances de acordes e me tomou nos braços carinhosamente, como sempre faz e faz tão bem.
    Não há gestos obrigados ou trejeitos que insinuem algo que não está realmente lá. E eu sei disso enquanto olho no seu olho e me deixo ser pega por você até que quando me dou conta já estamos dançando.
    Lá estávamos nós, ao som da letra que nos embalava, e você pôs suas mãos na minha cintura e eu te envolvi com os meus braços no seu pescoço, não resisti e te cantei um verso enquanto te beijava a boca. "Dava tudo por amor, eu vim de longe, dava pra sentir você dançando só pra mim". Nunca nada foi tão bom e nós ficamos nos embalando em meio ao meu quarto até a musica acabar. A musica dizia sobre se acostumar e eu já tão acostumada com o cheiro do seu suéter em mim, com seu cabelo enroladinho e seus olhos sinceros aquecendo os meus dias mais frios. Eu que já me acostumei com os nossos encontros sobre luas e sóis, praias com vento fresco e noites de chuva no carro do seu pai e Roberto Carlos tocando ao fundo. Com a comida da sua mãe, o seu gato Fredie, seu quarto arrumadinho e nós dois juntos trocando conspirações fajutas e tomando qualquer coisa no sofá da sua sala num domingo qualquer. 
    Me acostumei à essa mudança cósmica sobre o plano espetacular do meu mundo escondido. Você veio e trouxe o sol enquanto eu dava tudo por amor. Acostumei com os cantos dos meus lábios se curvando em reverência à essa vida boa que levo agora com você, porque me acostumei da gente se divertir sem me preocupar se lá fora o mundo pode ou não mudar e o que as bocas estranhas irão falar.
    Estarei segura enquanto você segurar a minha mão, ou me embalar assim nos seus braços até a musica acabar, até a gente não cansar de se acostumar.





Annabel Laurino




quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Sobre escrever, você sabe

    Algo dentro de mim rimbombava num frenesi constante de uma história que queria ser contada, mas que ainda nem tinha sido vivida. De uma história com muitos nomes para a classificar mas que não fazia sentido próprio se não tivesse ela uma... vida.
    Porém ela existia. E voltava a dormir e acordar em todas as vezes em que eu abria um livro ou assistia aos créditos finais de um filme rolando na tela da televisão. Ela se recriava constantemente nos recônditos mais secretos de mim mesma, vinda de um imaginário múltiplo, era uma história cheia de dores e amores e as coisas mais fantásticas que se pode pensar. Ela era pura como um fio branco de nuvem cortando o céu e tão, tão escura quanto o mais negro breu.
    Uma vez num certo dia essa história pediu-me com muito carinho para que eu a contasse, para que eu a transcrevesse em algum lugar. Escrever não, transcrever, de tal forma qual já existia e eu não pude negar. Pediu-me para que tivesse calma e muita, muita delicadeza. Disse-me: "O mais fácil é lembrar dos amores que já trazes no peito.".
    Lembrar. Ela me fez lembrar como era ser criança outra vez, como então eu poderia de uma hora para outra provar o gosto bom de um doce que fora mordido lá quando criança. Foi pura mágica, como também foi muita dor, e todas as lembranças tinham seus gostos de favos de mel acompanhados de um tormento ameno de cicatrizes agora já curadas e saudade. Saudade. Ela me fez tomar pequenas doses disso.
    Foi assim que fui trilhando meu caminho passo a passo, seguindo meu próprio trajeto em escrever sorrateiramente nas paredes de prédios abandonados da cidade onde todos passavam em frente mas poucos percebiam suas rusticas rachaduras do tempo ou seus destroços remoídos pela destruição, janelas quebradas, poeira a dentro.
    Amor. Algo tão antigo, algo tão épico, findável, duvidoso. Que palavrinha essa que me vem e me atormenta. Durante séculos passando de boca em boca pela humanidade e essa palavra ainda nos causa tanta contradição. Foi sobre isso que eu tive que escrever, várias e repetidas vezes mas sem me cobrar além do fator máximo que se chama sinceridade. Tive que ir nos lugares mais escuros de mim mesma e me buscar diante a uma incredulidade que muitas vezes me espantava, me dava desgosto. E logo após isso eu aprendi muita coisa, entendi muita coisa.
    Não, as páginas dessa história não estão prontas ainda, palavra por palavra é escrita com a precisão e a lentidão da alma, do sossego. E é por isso que eu ando sem pressa, que todas as manhãs eu descubro o sabor doce que o outro amanhã sempre pode ter. 
    As histórias se criam sem alardes, sem promessas. Elas só precisam de alguém que as conte. 
    Eu contarei algumas.
    Tantas mais quanto eu puder.




Annabel Laurino


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