- Não, eu tenho certeza. Está tudo correto aqui.
- Não é possível, não é possível! Você nem se quer me examinou direito. Olhe mais uma vez!
- Receio que não será necessário, uma vez que já estou com seu diagnóstico em mãos. Sendo assim, eu tenho certeza, não há nada de errado.
- Olha, veja bem, preste a atenção. Eu acordei hoje cedo, bem cedo, sete da manhã por aí, e lavei o rosto, coloquei a cafeteira para passar um café, abri as janelas, essas coisas matinais. Depois acendi um cigarro e fumei, devagar, com sono ainda, colocando as cinzas no cinzeiro, aquele cinzeiro me incomodou por um tempo enquanto eu o olhava, sabe, de ferro batido com pedras coladas nele, não lembrava de ter comprado aquela porcaria em nenhuma feira hippie em que lembro de ter estado. Mas mesmo assim bebi meu café, comi um pão e fui para a janela do meu apartamento. E foi então que eu senti uma dor bem forte no peito, pensei que tinha levado um tiro. Uma bala perdida, pensei. Corri para o espelho do quarto e não vi nada. Nada. E depois me deitei, com dor ainda, procurei o telefone, fechei os olhos. Pensei 'bem, deve ser isso, a morte chega para todos'. Mas foi quando fechei os olhos que eu me senti esquisita sabe, vazia. E a dor passou e eu não senti mais nada. Nada.
- Hum, sim, eu entendo. Claro, claro. Bem, pode ter sido uma dor muscular, um mal jeito sabe. Essas coisas.
- Doutor, ou o senhor entende que eu nunca senti isso na minha vida antes e analise novamente o meu diagnóstico ou eu lhe enfio esse estetoscópio no...
- Olha minha senhora, acalme-se. Não é necessário tudo isso. Bem, como queira.
O homem com o jaleco branco se inclinou sob sua paciente, alta, magra, cabelos castanhos ondulados e bagunçados. Para uma paciente que insitia em um problema não existente, ela parecia ótima. Ergueu as mãos enluvadas e tratou de examiná-la durante algum tempo.
- E então doutor, encontrou algo?
- Hum, não exatamente.
- Não exatamente?
- Minha senhora...
- Senhora não, senhorita.
- Senhorita, como seja... Você tem sofrido de problemas emocionais?
- Emocionais?
-Sim, você sabe, problemas com o coração. Término de namoros, morte de mãe, pai, cachorro e o papagaio.
- Ninguém da minha família morreu..
-...
- Ah bem, há um mês atrás talvez, eu tenha tido alguns desentendimentos.
- Sei.
- Mas eu apaguei tudo da minha cabeça sabe, e estou bem.
- Apagou tudo?
- É, esqueci, fiz um tratamento.
- Hum, sei.
- É.
- E está bem agora? Você disse que o cinzeiro lhe incomodou...
- Ah bem, as vezes parece que me lembro, as vezes parece que esqueço, mas quando eu lembro que eu esqueci eu lembro de me lembrar e isso é confuso e então eu finjo que esqueço. As vezes eu encontro algo perdido por ai e me lembro de algo que nem sei se me lembro direito. Acho que o cinzeiro foi algo assim. Algo dele. - disse a paciente pronunciando a ultima palavra como se pronunciasse algo secreto de mais para ser ouvido pelas paredes.
- Acho que entendi.
- E dói.
- Dói?
- Sim, algumas memórias voltam e dói um pouco, sabe, as vezes.
- Ah, sim.
- E o meu diagnóstico?
- Bem, eu acho que você mesma chegou a conclusão correta, dores emocionais.
- Dores emocionais?
- Sim, você deve ter tido um reflexo de uma memória, algo doloroso.
[silêncio]
- E... E é só isso? O senhor não achou mais nada no meu cérebro ou coração?
- Não, mais nada. Parece tudo limpo. Talvez, eventualmente você sinta alguma dor, devido aos flashes de lembranças, mas isso vai passar, quando isso acontecer apenas se sente e beba uma água.
- Certo. Só isso?
- Só isso.
- E... E mais nada?
- Mais nada.
- Bem, esse é o meu problema.
- Nada?
- Nada. Tudo limpo.
- Limpo demais?
- Limpo demais.
Annabel Laurino