De forma alguma que eu não tenha me agradado muitíssimo do tal sonho. É só que, bem, quantas vezes na minha vida o próprio Woody Allen em pessoa poderia estar presente na minha sala de estar tomando uma xícara de café comigo enquanto me aconselhava calmamente a respeito de Freud? Desde a ultima vez que eu chequei, nenhuma, é claro.
Mas é isso mesmo, Woody Allen, o próprio resolveu surgir nos meus sonhos recriado de uma forma completamente característica e real de como sempre imaginei. Descabelado, com pequenos tufos de cabelos mal espalhados sobre uma futura careca em vista, óculos de grau altíssimo com armações escuras, baixinho, nariz grande, suéter bege e calças cáqui claras, desengonçado, frenético, um humor irônico transbordante.
O sonho começa assim, alguém bate na porta, mas eu não escuto porque estou ocupada em tentar desentortar livros amassados que estão espalhados por toda a casa, não sei por qual motivo os livros estão tortos e tão amassados, mas volta e meia eu tento arrumá-los, página por página, então apertam a campainha, que é uma imitação bem fiel de Jingle Bells Rock numa versão anos 30. Dessa vez eu me separo dos livros e vou até a porta, mas a chaleira começa a ferver e eu volto e a tiro do fogo servindo uma xícara cheia de café até que resolvo preparar mais uma xícara, então, ao som da campainha novamente tocando, eu me encaminho até a porta e a abro.
Sim, ele mesmo, o tal, o senhor Woody em pessoa me sorri do batente da porta com seu sorriso irônico e pergunta "Fez o café?", eu não digo nada, meneio a cabeça em afirmação e o deixo entrar, da minha altura, magricela, uma maneira de andar como se a sua forma frenética estivesse em conflito com suas pernas bamboleando.
Woody se senta e toma em mãos sua xícara de café que eu nem tive tempo de oferecer, pega o jornal e começa a lê-lo, por um longo tempo, até que salta do sofá deixando o jornal cair e diz "Sabe aquela galeria de arte nova de que te falei? Então, é hoje, inaugurou!". Sem perder tempo ele pega da minha mão e me arrasta porta a fora. Juntos, nós andamos por ruas de calçadas sujas, passamos por cães de raças em coleiras coloridas, guimbas de cigarros e árvores de folhas alaranjadas e desbotadas, outono, eu penso.
Woody Allen acende um cigarro e como se recriando a cena de Manhattan, porém desta vez numa rua de um sol fraco ao fundo e dentro do meu próprio sonho, ele diz:
- Sei que não deveria estar fumando isso, dá câncer. Mas eu fico tão sexy com ele nas mãos, não acha?
- Sim, sim. De toda forma. - respondo. E ele sorri, contente pela minha resposta.
- "Sabe Nova York era sua cidade, e será para sempre." - ele recita olhando-me por trás de suas lentes de fundo de garrafa.
- Amo esta parte, amo este filme. É a minha frase, esta que acabou de dizer.
- Não, é a nossa frase, menina.
Caminhamos e caminhamos enquanto dividimos cigarros e vemos esquilos no Central Park. Tudo que se passa depois são flashes esquisitos. De repente estamos numa galeria toda branca e enevoada, com sofás/pufts dispostos no meio onde as pessoas se deitam e conversam e riem de qualquer coisa, mas obras de arte em exposição não há alguma. Logo, estou deitada nas pernas do senhor Woody Allen, no tal puf gigante, ouvindo-o me dizer que tudo nessa vida é natural "Natural, natural' ele repete, como se estivesse me apresentando a tal palavra pela primeira vez. E por fim, ele diz "Sabe, bem, eu nunca faria parte de um clube do qual aceitassem pessoas como eu. E sabe por que? Porque prefiro fazer parte de um lugar do qual não posso ser aceito. Quem não, não é mesmo?"
E o sonho termina com a imagem de eu e o senhor Woody rindo enlouquecidamente sobre os pufs gigantes de uma galeria cheia de pessoas e ao que parece, numa rua qualquer da Times Square.
Acordei com a sensação esquisita de que mesmo ludibriada pelo sonho eu queria que fosse verdade. Ah sim, claro que queria. Quem não?
E embora sabendo que nada se passou de um sonho, desejei secretamente que uma réstia dele fosse uma lembrança de algo verdadeiro. E assim, Manhattan me veio à mente, e num impulso sedento por algo palpável, eu revivo o filme por mais um milhão de vezes, incontavelmente.
Annabel Laurino
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