quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Ensopados

Have You Ever Seen The Rain - Creedence 


 


    - Vai Ju, me deixa entrar! Por favor!
    - Vai embora, vai embora!
    - Jujuba, para com isso amor.
    - Não me chama de jujuba!
    - Amor...
    - Nem de amor, Mauricio.
    - Não me chama de Mauricio, Ju.
    - Juliana! Meu nome é Juliana!
    - Para com isso...
    - Para você! Vai embora!
    - Ta chovendo pra caramba Ju... Juliana, deixa eu entrar, to todo molhado.
    - Pega um taxi.
    Continuou a bater na porta, a porta de madeira grossa com uma janela longa e retangular no meio, conseguia vê-la do outro lado, as costas grudadas na porta, de certo escorando o corpo e empurrando a porta para que abafasse as batidas insistentes dele. Via sua camisa cor de rosa de botões encharcada.
    A chuva ficou mais forte, cada vez mais densa, os pingos gelados ensopando-o, a valeta ao lado da calçada corria com pressa, para o final da rua. Transeuntes apressaram o passo, seguindo suas direções de final de dia.
    - Ju...
    Dessa vez ela não respondeu. Ouviu-a suspirar pesadamente, seu tamanho pareceu diminuir refletido pelo vidro, imaginou-a dobrando as pernas e escorregando cansada pelo chão.
    - Vai Ju, vamos acabar com isso amor, abra a porta, me deixa entrar. Vamos lá pra cima, te faço um café quente, a gente toma um banho, conversa melhor.
    Ela continuou a não responder. Estaria chorando? Bateu três vezes mais na porta dura e sentiu uma fincada na mão, olhou-a e estava vermelha, de tanto bater.
    Um homem calvo e baixinho estava parado ao seu lado, usava um casaco pesado e preto e o olhava de esguelha. Quando o olhou, o homem disfarçou e pareceu balançar a cabeça para os lados, jogou um papel de bala na valeta e continuou olhando os carros como se esperasse algo, ou alguém.
    - Que que foi?
    - Que que foi o que? – indagou o homem calvo relativamente surpreso.
    - Sei lá, vi você balançar a cabeça e tal, ta com problema? Estou incomodando?
    - Não balancei a cabeça.
    - Balançou sim, eu vi.
    - E se tivesse balançado, e daí?
    - E dai nada, tem a ver comigo.
    - A cabeça é minha, balanço a hora que eu quiser.
    Irritado, chutou a porta da qual não havia parado de bater desde que iniciara a discussão com o tal homem. Olhando através do vidro viu Juliana se surpreender dando um passo a frente, afastando-se da porta.
    - Eu vi vocês dois vindo desde lá a esquina, vou te dizer, a moça tem razão em não te abrir a porta.
    - Você não sabe de nada.
    - Você fez ela chorar cara, nenhum homem que faça uma mulher chorar daquele jeito merece desculpas. E ela tem razão, você parece um viado.
    - Eu não sou viado... Eu não fiz ela chorar... Olha quem é você afinal? Defensor das mulheres ou o que?
    - Mauricio para de discutir!
    - Então abre essa porta Ju!
    - Eu ouvi ela diser que é pra você não chamar ela de Ju...
    - Meu Deus! Cuida do seu problema ai, poluindo as ruas.
    - O que você tem com isso, é algum defesor ambiental?
    - E se fosse?
    - Mas não é. Então eu jogo o lixo onde eu quiser.
    - Então cuida da sua vida e vai embora!
    - To indo, estou só esperando o taxi.
    - Ju! Abre a porta!
    - Se eu fosse ela não abria porta nenhuma pra você, e coisa mais, aliás.
    Fingiu não ouvir e continuou as batidelas na porta, insistentemente.
    O Homem deu de ombros e puxando a gola do casacão pra cima correu para o meio fio e entrou num taxi que passava abrindo a porta e sumindo lá dentro.
    - Até que enfim. – suspirou Mauricio aliviado.
    - Eu vou subir.
    - Não Ju! Por nós! Eu fui um babaca, eu sei, mas abre a porta.
    - Acabou, já chega.
    - A gente ta tendo essa discussão através de uma porta, sacramento! Eu to encharcado! As pessoas tão me olhando, acham que eu sou louco Ju!
    - E você é!
    - Você também, sua louca!
    - Você não me chamou de louca...
    - Chamei sim, pirada, não me deixa entrar, eu não tenho culpa que eu não sei a diferença de azul para lilás e que eu não percebi que você cortou o cabelo! Droga.
    - Tem culpa sim, ainda disse que gostou do vestido daquela loira.
    - Era um vestido bonito.
    - Não, não era!
    - Era sim, pensei que ia ficar lindo em você.
    - Conta outra Mauricio.
    - Não me chama de Mauricio.
    - Vai embora. Mauricio.
    As gotas da chuva começaram a escorrer por dentro da boca enquanto a abria, como se estivesse embaixo de um chuveiro em alta potência. Fechou os olhos de cílios encharcados e tentou decidir se ia embora agora ou pedia para que abrisse a porta mais uma vez. Mas não soube, não saberia. Era difícil depois de tanto tempo e tantas brigas e seria por mais um longo tempo, não conseguia largar mão dela, assim, tão fácil. Mesmo que a situação não fosse fácil, que a chuva gotejasse na sua cabeça encharcada, que raios começassem a trovejar lá longe, o céu estivesse negro e que a mão doesse e o pé gotejasse pelo chute na porta. Era difícil simplesmente ir embora e esquecer de tudo, se trancar em casa e sobreviver com o “se ela ligar..”.
    Não. Não posso ir embora assim.
    ‘Você foi um idiota’
    Sim sim sim sim! Eu fui, eu sei, eu sou. Mas quem não é?
    Quando levantou a cabeça não a viu parada através do vidro, como estava há dois minutos atrás. Teve vontade foi de gritar, de derrubar a porta como nos filmes e subir as escadas do prédio em três e três degraus e agarrá-la pelos braços como se fosse uma criança birrenta, que na verdade era.
    Vou embora. Decidiu no engasgo de um choro que vinha lento e que não se lembrava como era chorar, não lembrava como era chorar desde que a conhecera, era difícil saber novamente agora.
    Recomeçou a caminhada friamente, a passos tropengos, a sola dos calçados fazendo uma melodia estúpida enquanto grudavam nas lajotas da rua, chegou ao meio fio e estendeu a mão, esperando um taxi que dificilmente iria passar.
    - Mauricio !
    Olhou pra trás e lá estava ela. Os cabelos loiros platinados despenteados em um coque bagunçado feito de ultima hora, alguns fios caindo pelo rosto anguloso de boneca, o nariz vermelho e os olhos inchados. O pescoço comprido e branco, de pele macia que ele tanto amava. As bochechas coradas.
    Não pensou. Para que pensaria? Caminhou feito um bêbado apressado em sua direção, a água nos calçados fazendo força para baixo, a cada passo.
    - Juliana... – falou enquanto chegava perto, o coração desparatado no peito.
    - É ju, jujuba, amor.
    Agarrou-a pelos braços, subindo o degrau dos prédios, ela tinha cheiro de baunilha, café, doce de morango. Era ótimo estar do outro lado da porta agora.
    Meu Deus pensou enquanto olhava aqueles olhos claros cor de sol e mel, o quanto me custaria ter ido embora, quantas noites, quantos dias eu iria passar sem dormir.
    - Me desculpa ju, me perdoa vai.
    - Shh, ta tudo bem. Vem, entra.
    Entrou desajeitado, saindo da chuva que agora, ali dentro, parecia ainda mais pavorosa.
    Ela pegou suas mãos e quando fez isso aproveitou, puxando-a para mais perto, abraçando-a até que a erguesse do chão, não queria mais largar. Tascou-lhe um beijo na boca pequena, um beijo longo, demorado, queria que todos os beijos fossem assim, daquele gosto e jeito. E era sempre assim depois das brigas, dos estranhamentos, sempre tão doidos, feridos, vadios de amor. Era preciso uma bagunça dessas para sentir falta do que tinham a cinco segundos atrás.
    - Você ta todo encharcado.
    - Então vamos subir.
    - Para aquele café quente...
    - E aquele banho...



Annabel Laurino

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