sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Eta Carinae


    Já era noite lá fora e jazia em meio às nuvens densas e cinzas de uma noite agonizante de julho um frio cortante, de arranhar a pele. Aprumou-se na cama virando-se de barriga para cima, olhando o teto branco. Lá em cima, no próprio teto, havia quatro estrelas fluorescentes bem posicionadas. Não sabia o significado da posição das quatro estrelinhas brilhando no breu do quarto, mas desconfiava que não haviam sido postas ali por um motivo em vão.
    Na janela, as cortinas estavam abertas e pode ver o bafo do calor de dentro do quarto e a umidade unindo-se com o frio de fora, em gotas de orvalho, de neblina, gotejando no vidro gélido.
    Passou a mão embaixo do travesseiro e catou o cigarro, colocou-o na boca e quando ia acender lembrou-se dela, do quanto odiava quando fumava. Desistiu da ideia. Guardou o cigarro. Olhou para o lado e vislumbrou o rosto próximo ao seu, sereno enquanto dormia.
    Queria conter-se, mas era impossível. Ela dormia de bruços, os braços em baixo do travesseiro turquesa com flores de cerejeiras. Parecia que abraçava o travesseiro como sua única salvação em meio a um pesadelo, ou apenas um sonho ruim. As sardas do rosto iluminadas pelas luzes da cidade ainda acordada do lado de fora. O nariz, uma bolinha branca em meio a um rosto longo, de maças salientes e um queixo gordinho. Era adorável, pensou. Os braços meio roliços, com sardas alaranjadas em meio a uma pele branquíssima. Aproximou-se lentamente, repousou o rosto próximo a sua omoplata e beijou-a, subindo lentamente pela linha do pescoço, não se contendo.
    Ouviu-a resmungar e virar o rosto para o outro lado, mas continuou, e procurou sua orelha em meio ao emaranhado de cabelos crespos e fartos. Afastou as mechas e deu-lhe um beijo no rosto. Ela abriu os olhos castanho amadeirados, confusa, o cenho franzido. Seu nariz de bolinha arrebitando-se enquanto não entendia o porquê despertara. Até que no fundo da mente a confusão passou e percebendo o que e quem lhe acordara, irritou-se.
    - Perdeu o sono, é?
    - Perdi.
    - E resolveu me acordar. – sentenciou irritada, virando-se de barriga para cima, as cobertas destapando-a um pouco, mostrando a curvatura dos seios.
    - Na verdade eu só não resisti de te ver dormindo.
    - Sim, e resolveu me acordar.
    - É... – deitou-se de barriga para cima novamente, usando as mãos para sustentar a cabeça, voltou a posição de antes, observando as estrelas coladas no teto.
    - Preocupado com algo?
    - Não sei bem.
    - Hum. Ta frio né?
    - Quase nem sinto.
    - Quer água?
    - O que?
    - Água.
    - Não, obrigado.
    Ela levantou-se sem cubrir-se, no escuro do quarto pouquíssimo iluminado, saiu da cama e alcançou na escrivaninha um copo de água. Ele olhou-a, nua, no meio do quarto, a pele tão genuinamente branca como um pedaço de maçã suculenta. Parecia saída de alguma pintura muito antiga. Piccasso, talvez. Os cabelos longos batendo na cintura, de um castanho que por um tris não tornara-se ruivo. Bebeu da água com sede e secou a boca com as costas da mão, soltando um suspiro de alivio, então espiou pela janela e virou-se voltando para a cama.
    Não sabia o quanto ele a observava, mas ele ficou ali, olhando-a até que voltasse a se deitar. E de súbito, talvez por um pequeno feixe de luz lá fora refletido e batido no seu rosto, ela o flagrara.
    - Que foi?
    - Nada.
    - Nada não, você tava me olhando.
    - Você é linda sabia?
    Se não estivesse escuro a veria enrubescer nitidamente, e praguejou pela luz apagada, adorava vê-la corar.
    - Você também não é nada mal. – disse ela jogando-se de volta para baixo das cobertas.
    - Sabe, até alguns dias atrás eu não pensava que isso podia acontecer.
    - Bem, aconteceu não é?
    - É, mas e o seu namorado?
    - O que tem ele?
    - Bem, o cara meio que...
    - Nós meio que terminamos, tecnicamente ele...
    - Meio?
    [silêncio]
    - Olha você não gostaria de viajar?
    - Viajar? Nanda, ta louca?
    - O que que tem, podíamos fazer uma viajem para Fernando de Noronha. Seria incrível.
    - Fernando de Noronha?
    - Não gosta?
    - Até curto.
    - Então, seria incrível, podíamos pegar umas mochilas, pegávamos o carro do seu pai, seria divertido.
    - É, divertido... Mas e o seu namorado Nanda?
    - Pô Pedro, o que tem ele?
    - Sei lá...
    Ela bufou impaciente e aproximou-se dele beijando-lhe o peito e, rápido e bruscamente, beijando-lhe a boca. Então beijou-o ainda mais. Sentia o gosto do brilho labial de cereja dela, já impregnado na boca. Abraçou-a com força, apertando-a para próximo de si e retribuiu o beijo. Era forte, daqueles beijos que parece que ficam retidos dentro da gente todo tipo de magoa, todo tipo de coisas que a gente quer mas sabe que não pode ter, então para não reprimir é no beijo que ofuscasse toda a vontade. Foi mordendo-o o lábio que puxou-a ainda mais sobre si, afastando seus cabelos com cheiro de chocolate para longe e beijando-a. A ideia era essa. E não fora desde o começo?
    Foi na cafeteria de esquina, a viu lá no fundo, mas ultimas mesas com um livro aberto a sua frente, bizarro e genial ao mesmo tempo, sobre a máquina do tempo, vestia uma regata preta de uma banda louca, a pele de leite, os cabelos cacheados e bagunçados, o lápis de olho azul turquesa e o anel de joana no dedo mindinho. Teve vontade de morde-la ali mesmo. É claro que ela nem sabia quem ele era, assim como até cinco segundos atrás ele não sabia quem ela era. Mas quem se importa? Aproximou-se da mesa onde ela estava e perguntou sobre o livro, o coração quase saindo da boca quando a viu morder o lábio carnudo, prender a mecha dos cabelos atrás da orelha e toda confiante explicar toda a teoria da relatividade de Einsten e o fator passado e futuro, coisas que até então ele não estava nem um pouco afim de saber. Perguntou seu nome. “Fernanda, mas todo mundo me chama de Nanda”. Ah sim, Nanda. Teve vontade de beijar Nanda ali mesmo. Então ela disse, “puxa uma cadeira vai, não mordo”, e ele teve vontade de morde-la ainda mais.
    Nanda afastou-se, as sardas parecendo dançar no rosto pelos feixes de luz que entravam no quarto.
    - Gosto de você, Pedro.
    - Também gosto de você.
    - Ótimo.
    “Ótimo”. Ela sempre dizia ótimo, como se fosse um arremate em uma conversa solta. “Eu curto Pink Floyd” “E eu prefiro Legião, mil vezes.” “Ótimo”. Era meio que costume seu, mania. Assim como a sua mania de alongar o corpo todo depois de sair do banho, ou quando usava saia e ficava o tempo todo olhando as pernas no espelho observando se, na esperança, não haviam diminuído.
    - Ótimo Nanda?
    - Sei lá.
    - Sei lá?
    - Pedro, shh.
    - O que houve?
    Mas Nanda colocou o dedo indicador na sua boca antes que terminasse a frase. E voltou a lhe beijar, agora mais lento, mais tímido, tinha gosto de beijo de despedida. O tipo de beijo que se da quando não se tem motivo mais para se procurar. Não parou o beijo, sabia o que vinha depois. E não se surpreendeu ao sentir as mãos de Nanda pelo seu corpo. Precisas, calmas e macias.
    Não fazia sentido pensar nela como uma forma de salvação.
    Mas era.
    Ali, perdido no quarto dela, no centro da cidade, Nanda era sua única salvação. Era o momento real e perfeito longe de todos os problemas. Odiava o namorado dela, mas se ela não fazia cerimônia, então tudo bem. Tinha seu momento real e perfeito e procurava aproveitá-lo. Até que voltasse para casa, deitasse em sua cama e ouvisse o burburinho da capital lá fora rugindo para ele, perdido solitariamente.
    Quando sentiu o ápice de todas as emoções fustigadas na pele, pegou Nanda pelos pequeninos braços e beijou-a delicadamente, até que a sentisse por inteiro. Mas sentir por inteiro já era fato, ali, nus, deitados em uma cama, coisa mais intima do que aquilo não seria mais possível. Talvez, se pegasse uma lupa e observasse além, além das áureas e pensamentos do outro, enxergando as coisas mais duras e frias, e feias e todos os poços escuros, então tornaria-se mais intimo.
    - Pedro. Talvez seja hora de você ir embora.
    Ela sempre dizia isso. Ela sempre falava assim, vezes doce, vezes autoritariamente, uma candidez disfarçada.
    - Tudo bem. Mas posso voltar amanhã? Podíamos pegar as bicicletas e ir até o parque, ou até aonde você quiser.
    - Não sei. Amanhã a gente vê. – deitou-se de bruços novamente, escondendo o rosto no travesseiro.
    - Tudo bem.
    Levantou-se sentindo a rajada do frio pelo corpo. Vestiu as roupas e amarrou os sapatos. Ergueu-se pela cama e inclinou-se para lhe deixar um beijo, mas seu rosto ainda estava enterrado entre o travesseiro. O maldito travesseiro de cerejeiras. Será que dormia? Analisou-a pela forma como sua coluna erguia-se, não parecia dormir, o som da sua respiração era lento, mas não vazio de emoção.
    - Vou embora.
    - Cuide-se.
    Cuide-se?
    Caminhou até a porta, parecia que de repente havia amarrado ambos os cadarços dos pés um no outro, dificultando-o de caminhar.
    - Sabe Pedro, talvez seja bom a gente não se ver mais. Mas cuide-se ok? Nos vemos no show na sexta que vem.
    Quando olhou para trás a viu sentada na cama, parecia triste, o lábio inferior tremia involuntariamente, parecia te-lo mordido muito porque uma marca vermelha circulava a boca até o queixo. A juba de cabelos bagunçada envolta do rosto longo. Os seios redondos transparecendo pelo lençol azul.
    - Está brincando?
    - Não. Acho que pode ser melhor assim. Só isso.
    - Não pode simplesmente fazer isso agora.
    Tinha noção do quão patético estava, ali parado, com o cabelo bagunçado, a roupa amassada, os olhos injetados, a voz tremula, implorando para ficar. Para permanecer.
    - Entenda. Eu não quero machucar você só isso.
    - Está fazendo isso agora.
    - Pedro...
    Saiu pela porta fechando-a atrás de si. Quando deu por si, o ar cortante da noite já açoitava-lhe o corpo, na rua, a quilômetros de casa. Não sabia que horas eram, olhou para o céu, como se pudesse encontrar algum relógio dependurado acima da sua cabeça e avistou-o com pouquíssimas estrelas.
    Lembrou-se das estrelas no teto do quarto de Nanda. Começou a caminhar. As pernas duras, o corpo dolorido, parecia que a vida havia mudado de direção e tudo não fazia mais sentido.
    Lembrou-se de que uma vez lera em um dessas revistas velhas do consultório dentário, uma revista sobre astronomia, e na edição continha algumas coisas sobre estrelas. Leu superficialmente, mas se recordava de ler sobre uma em especial, Eta Carinae, gigantesca, magnífica, e letal em sua gama de luzes.
    Eta Carinae.
    Astronomia para ele fazia tanto sentido quando o horário político local. Mas agora já não era mais um assunto a ser descartado.
    Enfiou as mãos nos bolsos, sobre um céu quase limpo de tudo, em uma noite limpa, confusa, deliberadamente estranha, seguiu caminhando pelas alamedas de ruas também estranhas. Talvez em algum lugar do tempo, pudesse ter feito algo diferente, agora já era tarde. Havia se apaixonado e sentia na pele as dolorosas faíscas de luzes da enorme estrela, lambendo seu corpo, usurpando as réstias de sanidade com seus raios ultra potentes e vorazes. Já não havia mais volta.
 

Annabel Laurino.