segunda-feira, 28 de julho de 2014

Cigarra desaventurada nas entranhas da solidão

    Não me recordo a primeira vez que a avistei. Não, não. Agora tudo são nuances cinzas dentro da minha massa cefálica, tudo é uma nuvem esfumaçada do que existiu e eu não me recordo com avidez de todos os mínimos detalhes. Por exemplo esse, de quando foi a primeira vez que a vi. Porque, bem o sabe, poderia ser em qualquer época de minha vida, em qualquer esquina ou cruzamento, na padaria ou no metrô e eu, bem, eu não lembro.
    Mas eu me recordo muito bem quando eu a avistei de fato pela primeira vez. Quando a reconheci de uns desses cruzamentos da vida em que não me lembrava em meio as nuvens cinzentas e esfumaçadas de minha memória. Tão tentadoramente ela mesma que repercutia como o som de uma mordida em uma fruta, suculenta, deliciosa.
    Fumava seu cigarro tão distraidamente, tão perdidamente sozinha em meio a fumaça que subia sobre o alto de seus cabelos brilhando ao sol, que podia-se até pensar que tragava a vida, ou quem arriscaria também, que o tédio a tragava copiosamente através daquele único cigarro.
    Antes que você, leitor, queira a invejar ou sinta-se atraído, eu aviso: não o faça. Não se atraia por aquelas pernas, por aquele tom branco condensado no rubi de seus lábios bem desenhados, pois ela tem escondido no céu de sua boca ferina um desejo inabalável. O desejo de te devorar.
    Ah mon Cher, ela é uma devoradora, destruidora de corações. Vai mastigar você. Vai repartir você. Vai distroçar em mil pedaços todas suas esperanças construídas em anos, seus sonhos filosóficos que ditou a si mesmo em frente ao espelho do banheiro todas as manhãs, com as olheiras protuberantes de noites mal dormidas. Vai acabar com seu coração másculo e empedrado, isso não irá existir. Sentirás vontade de cantar um mantra, de chorar, de se entregar e depois partir. Não conseguirás. Ela plantará em ti o mais terrível dos sentimentos, a melancolia.
    Possui um riso cômico, meio infantil é verdade, meio histérico também, mas isso se deve ao fato de quão surpresa se sente com o ato de sorrir. Raramente sorri. É como a Senhora Darling de Peter Pan, que escondia o beijo secretamente, assim era essa dama, que escondia o sorriso, enviesado em meios aos lábios contornados de vermelho, raramente os curvava, e quando o fazia parecia sempre uma mesura, por simples educação.
    Dentinhos brancos e afiados se escondem atrás de seus lábios, fininhos e cortantes como pequeninas navalhas genuínas que vão devorar você, mastigar suas carnes. E adorarás. Implorarás em júbilo por mais uma mordida, por mais um corte sereno na tua pele acalorada. Pois ela te morde, mas no fim acaba por te beijar, acaricia tua cara desmantelada de cansaço, massageia teus ombros de pesos fartos. Ouvirá seus dramas como uma mãe, te amará como uma santa, se entregará a ti como uma puta. Te restará apenas a tentação. E não resistirás.
    Você a acha cruel? Eu não a acho. Falando assim, eu sei, bem que parece. Lembrando-me agora de quando a vi pela primeira vez, parada no meio do comício de um dia cheio, tantas pessoas passando em sua volta e ela era a única que parecia se destacar no meio daquele trânsito, daquela loucura. De vestido branco e os cabelos assim, caindo-lhe a tez. Eu quis perguntar seu nome, me aproximar, tocar seu rosto, saber se era real. Mas eu a conhecia bem, pois desenvolvia em seus atos um trejeito que eu bem já sabia e a reconhecia. Não precisava de informações que eu sei, ela me mentiria. Só iria ludibriar-me para depois me mastigar como sempre e como todas. Me atrevi aos detalhes, aos fundamentos. 
    Você não sabe como eu sei, mas assim como a dama escondia nos seus lábios o seu sorriso, escondia também embaixo da sua pele embebida de branco marcas profundas de solidão. Perdida demais em ser ela mesma. Perdida demais que repetia sempre os mesmos rituais, indo a livrarias e cafés, conversando distraidamente com os jovens nas boutiques e cinemas, embora não se recordasse depois dessas conversas, as esquecia de imediato. Preferia a solidão de seu próprio ser. Ninguém entendia o porque, tinha uma inclinação ao drama, ao romance, ao perdido e ao acaso.
    Acostumou-se em ser uma marca no asfalto, uma coisa corriqueira, um alguém, simples ninguém sem voz. Por isso a dama não possui nome, deste eu não sei nem se quer a primeira letra. Seu rosto eu vislumbrei apenas uma vez, que me recordo. Não me lembro se em uma avenida movimentada, em um final de março talvez. Não era ruiva nem loira, morena muito menos. Não defino sua idade pois poderia ser jovem, muito jovem, com aquele corpinho pequeno e de ombros estreitinhos. Mas seu ar teatral a denunciava e parecia mais velha, sua malícia a entregava, eu não saberia dizer.
    O que me chamou a atenção naquela pobre dama? Seus olhos, ah sim, seus olhos. Não a cor e nem a forma, mas a maneira voraz como ao mesmo tempo distraída, devorava o mundo ao seu redor, como se buscasse entre a apatia diária algum tipo de salvação.
    E por que te conto sobre essa dama? Para que tenhas cuidado, meu caro. Caso a encontres em meio as vielas dessas ruas noturnas, caso a aviste nos recônditos escondidos dessa cidade de pedras. Eu mesmo não esperava, agora convivo com a solidão da sua imagem presa na minha memória meio gasta, estarei sempre a espera de a reencontrar, eu sei.
    De toda forma, se a encontrar, cuidado. Sei que não resistirás ao vícios, ao olhar, as pernas e nem aos cabelos perfumados de sândalo quem sabe, ou patchouli talvez. Escutarás uma música e se sentirás vivo. Te aviso. Comprarás um terno novo, será como ir a missa de domingo. Te sentirás salvo, embriagado, embebido, bêbado de ilusão. 
    Nunca mais a vi depois daquele dia de sábado, vestida de solidão.




Annabel Laurino

domingo, 27 de julho de 2014

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    [...]Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. Que tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como - eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a concha ao lado da conha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te estendo a minha mão.
    No meio da fome, do comício, da crise, no meio do vírus, da noite e do deserto - preciso de alguém para dividir comigo esta sede. Para olhar seus olhos que não adivinho castanhos nem verdes nem azuis e dizer assim: que longa e áspera sede, meu amor. Que vontade, que vontade enorme de dizer outra vez meu amor, depois de tanto tempo e tanto medo. Que vontade escapista e burra de encontrar noutro olhar que não o meu próprio - tão cansado, tão causado - qualquer coisa vasta e abstrata quanto, digamos assim, um Caminho. Esse, simples mas proibido agora: o de tocar no outro. Querer um futuro só porque você estará lá, meu amor. O caminho de encontrar num outro humano o mais humilde de nós. Então direi da boca luminosa de ilusão: te amo tanto. E te beijarei fundo molhado, em puro engano de instantes enganosos transitórios - que importa?
    (Mas finjo de adulto, digo coisas falsamente sábias, faço caras sérias, responsáveis. Engano, mistifico. Disfarço esta sede de ti, meu amor que nunca veio - viria? virá? - e minto não, já não preciso.)
    Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos demorados quanto minhas insônias insuportáveis. Tanto meu ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu ciclo etílico bukovskiano. Que me desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. Tanto faz, e sem dizer nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como eu sou o outro ser conjunto ao teu, mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo de mel na minha boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da minha mão crispada de solidão. Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e as pessoas não tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do outro e misturar coxas e espíritos no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-igual-sedento-de-não-solidão, bicho-carente, tigre e lótus. Preciso de você que eu tanto amo e nunca encontrei. Para continuar vivendo, preciso da parte de mim que não está em mim, mas guardada em você que eu não conheço.
     Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar. [...] Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes destas palavras todas cairem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do embuste: preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse possível, como se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã.






Caio Fernando Abreu 

(Crônica publicada no “Estadão” Caderno 2 de 29/07/87)


terça-feira, 22 de julho de 2014

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"Olho tudo isso que vejo e não tem outra magia além dessa, a de ser real, e vou dizendo lento, como quem tem medo de quebrar a rija perfeição das coisas, e vou dizendo leve, então, no seu ouvido duro, na tua alma fria, e vou dizendo louco, e vou dizendo longo sem pausa - gosto muito de você gosto muito de você gosto muito de você."


Caio Fernando Abreu

segunda-feira, 14 de julho de 2014

1/2 ?

    Afaga essa minha cabeça de cabelos bagunçados e pensamentos tão tempestuosos. Me ajuda? Sim, me ajuda nessa crise diária de enfrentar o espelho com a cara lavada e não saber o porque que eu sou. Vicia em mim, cola em mim e me consola. Consola com um café, com um beijo, uma surpresa qualquer. Me faz procurar nos seus braços qualquer coisa como paz, tranquilidade, refugio e sossego. Seja o meu porto seguro, seja minha toca do coelho, alguma coisa palpável.
    Eu sei que ando muito desesperada, muito tudo. Eu sei, culpa do tempo. É esse clima todo daqui, não combina comigo, não me encaixo. E esses cabelos em pé, essa cara de sono, esses olhos vidrados, é tudo desespero. Não sei dizer. É a estática.
    Eu estou farta de ‘um meios’, ou de ‘três quartos’, não aguento mais rabiscar metades nos meus papéis, não aguento mais rabiscar metades na vida inteira. Porque tudo é feito de metades? A vida é um recheio feito só pela metade, o resto é fim. Literatura.
    Acho que os velhos e encardidos com suas roupas de final de domingo dentro daquele boteco lá fora onde eu consigo ver daqui de dentro pela janela do ônibus, concordam comigo. Seus cafés são servidos pela metade, assim como as pingas. E eles pagam um atrás do outro, todos eles. Porque o costume mantém o hábito e a coisa é assim, é um ciclo. A diferença é que eles sabem, em seus íntimos, e tem a cachaça como consolação.
    Mas não quero cachaça e nem pinga. E nem boteco nenhum, e nem reclamar em mesa de bar, colocando uma musica brega para tocar num jukebox dos anos 70 com luzes de néon. Nada disso. Mesmo que minha inclinação ao drama peça algo assim, mesmo que o caos de agora peça algo assim.
    Quero você e seus braços fortes, suas mãos, seus pés, suas pernas e seu corpo inteiro, inteirinho. Depois eu quero o que fica do lado de dentro, o que não pode ser tocado a não ser com os olhos, com o peito. Por falar nisso, me toca, vai. Me puxa, repuxa, abusa. Toca. Toca no fundo e me faz acreditar. Me para no meio do rabisco de uma metade no canto de uma folha qualquer e me faz ter um café completo, quente, encorpado, sem ser pela metade. Ou melhor, me faz ter você todinho, sem ser pela metade. 
    Ah, esses momentos de misantropia, se eu pudesse me desfaria de todos eles. Aglutinam minhas horas solitárias multiplicando cada segundo em duas horas, bebo o chá de cor vermelha, caminho, sinto o vento gelado batendo no rosto. Tudo gira sem sair do lugar.
    Eu não quero ser metade e nem um vazio inteiro. Eu quero transbordar. Eu quero o mais de todos os mais e muitos de um todo. Eu quero tudo. Com você.




Annabel Laurino 


domingo, 13 de julho de 2014

O disco e a Vitrola

    Quero que você fique, que você fique. Quero que você fique. Começa assim baixinho, uma melodia calma, clarinha, bonitinha. Cantada calmamente soa devagar até que finalmente a agulha encontra o disco e ele começa a rodar na vitrola então torna-se mais precisa, mais urgente, e roda e roda e o som se espalha como um suspiro. Quero que você fique.
    Quero que você se torne feixe de luz brilhante que irá pulular contente no teto do meu quarto, quero que você seja doce como jujubas coloridas, daquelas minhas favoritas, as azuis, que lembram muito jasmim, assim, docinhas. E por falar em lembrar, não quero te lembrar nada que possa ter sombreado no seu passado algo bom ou ruim, quero ser sua coisa nova, brilhante, que irá iluminar algum recanto bom da sua vida. Deixe o passado para depois, onde ele deve ficar, porque não existe mais tempo para ele.
    Por isso mesmo, eu não quero ser para você nada que já tenhas tido. Quero ser presente novo, sua surpresa, seu gosto bom. Assim como eu quero. E que tenhas lugar no meio da sua estante para mais um livro já meio amassado, com páginas rabiscadas e orelhas marcadas, porém em sua defesa, existem coisas nele, frases e segredos, principalmente nas entrelinhas, que ainda ninguém leu. E você pode ler.
    Que eu seja para você o que ainda ninguém foi. Pode ser até um reflexo, uma paisagem outonal, uma pintura, um sorriso. Que você faça por mim o que não fez por ninguém, que faça comigo o que não fez com ninguém. Porque não haverá passados, não haverá coisas velhas. Algo muda perto de você porque tudo se faz novo. E isso faz sentido agora.
    Como um disco e uma vitrola, nós dois combinamos bem. Como uma dupla vintage, meio démodé, meio blasé e que fica cute, eu acho cool. Nós nos enamoramos bem.
     Vamos ouvir discos velhos na vitrola do seu quarto, vamos nos beijar por horas e horas e horas. E depois rir descontroladamente um com o outro ou um da cara do outro. Deixa eu fazer manha, a minha manha, enrolar meus pés nas suas pernas, ronronar baixinho quando o beijo estiver bom, dizer que não quero que você me abrace mesmo já envolvendo meus braços em torno da sua cintura magra e que eu gosto tanto. Deixa eu me deliciar com os seus detalhes, com as suas pernas compridas, seus ossos protuberantes, suas costas brancas, seus olhos fortes.
    Se você não quiser, tudo bem. Estou enviando para você minha caixinha de biscoitos da Alice, mesmo assim. A regra é clara. “Coma cada um deles”, servem para isso. E você pode morder devagarzinho, para se deliciar com calma.
    Se chover não tem problema, a gente corre no meio da chuva, ri, pula as poças, se molha, claro, faz parte. Não tem problema. A gente até desafia o tempo e para no meio do caminho, se beija e tudo bem, volta a correr depois.
    Descobrir você ou você ter me descoberto foi como não saber que ainda estavam vendendo de ultima hora os ingressos da minha banda favorita e que eu ainda poderia me divertir e ir ao show. Não hesitei, eu comprei os ingressos. Foi foda, foi incrível, foi surpreendente. Descobrir você foi assim.
    De repente tudo isso não passa de um sonho, brincadeira, coisa que a gente nem irá saber definir. Talvez depois de amanhã você queira ir embora, talvez eu tenha que ir embora. Talvez tudo fique entoando como uma nota de uma flauta soando suave num disco que ainda roda na vitrola sem ninguém ouvir. Faz parte, nós sabemos e corremos o risco.
    Depende se você quer ficar, se eu vou ficar. Mas o que importa é que ainda temos Paris, ainda temos os Macarrons para serem provados, ainda temos Gramado, ainda temos os discos, os livros, as bandas e Camel. Ainda temos um universo nosso que sem querer e talvez sem nem mesmo perceber moldamos secretamente sem permitir a entrada de ninguém a não ser de nós mesmos. 
    E dançamos, dançamos sobre a luz da lua que banha nosso universo mágico que ninguém pode ver, a não ser os reflexos ofuscantes que emanam dele. É cheio de literatura, música e sons, e beijos e coisas doces e tudo e tudo. É um universo Polisipo, todo Polisipo. A nossa pausa da dor. I’m your recall, you are my locomotive breath.




Annabel Laurino

hiptonized:

 vintage/nature

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Chafurdando

    Ei Zé, tudo bem? Quanto tempo que não nos falamos, ein amigo? Quanto tempo faz que não compro papel de cartas e te escrevo algumas palavras meio doloridas desses dias cotidianos demais para o meu gosto meio doce. Ultimamente o que me falta é luz, luz que clareie forte nessa minha cabeça com pensamentos tão congestionados, ando até meio fatigada, sempre quando acho que a coisa vai engrenar ela desanda e acabou, já era.
    Não to falando de uma coisa especifica não, eu to falando no geral. Tem tanta coisa que eu achei que ia dar certo e não deu, não teve jeito. E depois claro, eu nem fiz mais questão que desse, mas sabe quando parece que vai dar?
    De qualquer forma eu não te escrevo essas palavras para elas serem lidas, te escrevo essas palavras para elas serem desenhadas na sua memória, Zé. Porque se você apenas ler, sentado no seu banco, em frente ao fogo, tomando seu copo de café e esquentando os pés já envoltos nas suas meias de lã velhas, eu sei que você vai esquecer. Que vai entender que tudo isso é apenas um drama, nada mais. Mas não é drama, juro que não é. Dessa vez não.
    Ontem acordei num solavanco, achei que a casa tava caindo. Deitei na cama sem a intenção de dormir e quando menos esperei eu estava num sonho daqueles mais loucos, mais viajados. E quando acordei achei tudo estranho, sabe quando bate um reflexo de sol na sua cara nas primeiras horas do dia e soca você com aquele ‘acorda, acorda, acorda’ insistente? Então, foi isso. Acordei daquele sonho com um reflexo de luz que me cegou, me deixou tonta, me deixou meio zonza e depois clareou os cantos mais estranhos da minha mente, aqueles que eu não estava conseguindo ver.
    Se foi culpa do sonho ou não, eu não sei Zé. Não sei dizer.
    Fico chafurdando dentro desse café amargo nesse exato instante e me sinto mergulhar nessa água de mistura negra. Eu mergulho e depois volto. Zé, quando é que alguma coisa nessa minha vida vai ser permanente?
    As vezes, quando não tenho nada para fazer eu me pergunto quando será que irá surgir o Ultimo dos Moicanos a habitar nessas terras isoladas por onde me encontro e então, decidir ficar. E sim, eu sei que tudo em mim é muito estranho, é muito caos, é muito tudo. Eu sei. Sei também que a minha casa é muito Weasley demais, meio torta, as vezes se tem a impressão de que realmente irá cair, que nada faz sentido e tudo é caótico e turbulento. Culpa de saturno, meu caro. Não importa. Quando é que alguém simplesmente irá ficar por aqui, se encantar por aqui, se encaixar nas rachaduras das paredes e se interessar pela bagunça do meu roupeiro?
    As coisas de dentro são muito mais importantes daquelas que estão de fora e eu me pergunto onde estão essas coisas de dentro que às vezes nem eu mesmo enxergo. Alguém pode enxergar para mim?
    Ah Zé, se você soubesse, se você imaginasse... Eu ando por essas ruas, eu vejo tanta gente, nada me interessa. É apenas em meio aos livros onde me encontro, em meio aquelas palavras grafadas ali, há tanto tempo, saídas de sabe-se onde e quando e porque. É no mundo de outrém por onde vago, mas o que eu queria mesmo era habitar aqui onde fico sempre, embaixo da soleira dessa janela velha e descascada, procurando poemas nos jornais bolorentos de noticias feias e tentando encontrar a beleza em rostos cansados.
    Te escrevo essa carta Zé, para você saber que ando inclusive dormindo muito. Quase sempre que posso e quando consigo. Durmo e depois acordo, e sonho quase sempre, quando lembro. Mas o que eu queria mesmo é que alguém ficasse, que combinasse com as paredes desse quarto, nesse clima. Não, eu não quero alguém, quero o alguém. E você sabe Zé, as vezes eu sei, eu me convenço, eu devo estar cada vez mais só. E é o que eu quero mesmo, estar cada vez mais só. Essa incapacidade de encontrar alguém que nos entenda cansa tanto, da tanto trabalho que ficar só como agora, te escrevendo essa carta, tomando meu café, olhando para meus livros e contando os dias é muito melhor, é mais saudável, é mais aceitável. Sabe, aceita-se, aceita-se os fatos.
    O fato de não saber lidar, de não corresponder, de não saber dividir ou ser. De não se fazer entender se não por partes ou por cifras e códigos e entrelinhas. É tudo entre pausas e não flui. E cansa. Se corre o risco.
    Queria mesmo era estar em Paris. Ah, Paris! Como sonhei esses dias, exatamente como sonhei esses dias. Como em Paris é Uma Festa de Hemingway. Estar lá, respirar Paris, ir nos lugares e nas ruas mais escondidas, mais feias e mais bonitas, comer as comidas mais gordurosas e gostosas. Paris e seu point zero, ainda estarei lá. Que tal, Zé? Topa no próximo inverno? Eu e você, juntos com nossa Polaroid, podemos comer crepes de Nutella e dançar no Jardim das Tulherias. 
    Enquanto isso, enquanto não se pode ter tudo, nós vamos vivendo. Tapando os buracos, mastigando os vazios que nos faltam. E tudo bem.
    Te escrevo, Zé. E abraços, com cheiro de jasmim.


Annabel Laurino



sexta-feira, 4 de julho de 2014

Eco e cacos

    Alguma coisa, coisa essa que eu não sei o que, porque não tem nome e ninguém sabe se existe ou não, se é matéria ou imaterial, essa coisa quebrou-se. Partida em cacos, se estilhou no chão. A coisa caiu e quebrou-se. Causando aquele som agudo de algo que se quebra, que estilhaça-se em cacos, aquele som que quebra o silêncio, corrompe o monótono, o som de algo que impõe caos em algo que antes era simplesmente silêncio.
    Quebrou, mudou, não é mais o mesmo. No mesmo instante em que alguém atravessava a rua, que um cigarro era acendido, que a criança começou a chorar, que o senhor de idade entrou no consultório médico, que o café foi servido, o jornal aberto, o dinheiro gasto, o choro derramado, o abraço dado, o beijo proibido, a mentira contada, a fome saciada, tudo e tudo, nada e nada. Foi por um segundo. Um pequeno segundo. Ninguém soube de onde veio, eram tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, o que é um algo sem nome caindo no chão? Nada, não tem importância. Levantaram os ouvidos quando o barulho se fez presente onde antes era apenas aquele silêncio, mas não se deram o trabalho de procurar os vestígios, de analisar as provas, de ver de onde vinha aquele som de eco que repercutia após a queda. Havia outras coisas das quais se preocupar.
    Ela foi embora e ele nem viu quando ela foi embora.  Ela juntou todas as coisas, não as roupas, as fotos ou os livros, nem se quer se preocupou com o casaco favorito, seu marcador de páginas ou algo qualquer, nada desse tipo palpável, ela simplesmente juntou as coisas, os retalhos descosturados daquela relação maltratada, pegou o que era seu por direito, o que era dele ela deixou, não quis mais. Juntou tudo, saiu pela porta da frente. Ele não viu. Ele ouviu sim algum som estranho soando firme naquele estranho silêncio, mas não parecia importante, ele continuou pintando cores nas paredes de seu mundo encantado.
    Tão importante quanto um choque drástico, um apagão, o real caos, a guerra. Aquele som mudou tudo, aquela coisa quebrada deixou rastros de minúsculas evidências que alteraram todo o sentido da história, da história deles. Ele nunca mais viu aqueles pequenos pés se agitando na beirada da sua cama, aqueles pezinhos de unhas pintadas de cor de rosa, ele nunca mais avistou aqueles cabelos bagunçados numa manhã de domingo, nunca mais a viu passando delineador no espelho do seu quarto, não cheirou mais o seu cheiro, nem sentiu suas coxas, não se lembrava mais com exatidão a cor daqueles olhos, se castanhos ou quase verdes, tanto tempo passou e alguma coisa mudou.  Aqueles mesmos olhos que o olharam com incredulidade, com repulsa, com medo, com repreensão, “por que você não ouviu quando eu deixei a coisa cair? Eu pensei que você iria ouvir, eu pensei que você se importasse. Por que você fez isso?”. Não houveram palavras pronunciadas, apenas esse simples olhar que disse tudo.  Pediu tudo.
    Se ele tivesse levantado do sofá para ver através da janela talvez teria visto a coisa repartida em cacos no chão, talvez se tivesse parado por um segundo de viver suas pinturas naquela parede colorida e ilusória ele teria visto as iminências. Eram tão simples. Talvez ela nem tivesse ido, ela poderia ter ficado, ajudado a reconstruir os cacos, a conviver com as rachaduras.
    Através dessa lente caleidoscópica podemos observar o mundo gigante e pequeno, pequeno e gigante. E lá está ele caminhando por aquela praça vazia, oito horas da noite, sentindo os ecos quase mudos de algo que se perdeu. Ele avista um corpo de um homem sentado num banco à frente e parece  perdido, ali sentado. O homem abraça o próprio corpo, mas não parece respirar e nem se quer se move. Ele se pergunta se existe vida ali dentro, e que tipo de vida, que coisas seriam aquelas que se passam por dentro de alguém que se senta na praça as oito da noite e abraça o próprio corpo, como para não sentir o peso do mundo. O peso do mundo.
    Agora ele já sabe que ela foi embora. Agora ele entende, recebeu as mensagens, entendeu os códigos, ainda ouve os ecos, ele ainda sente a partida, a coisa quebrada. Mas tudo bem, acontece, teve que acontecer. Aconteceu não porque ele não ouviu ou porque ele não deu importância. Aconteceria de qualquer jeito, é assim mesmo.
    Caminha entre as pessoas e pensa que a cidade a noite é melhor que de dia. Ele ama a noite, pensa nas luzes da cidade, nas sombras das luzes, pensa na coisa quebrada e perdida, pensa na vida e pensa nas pessoas ainda encerradas em escritórios cobrindo o expediente, fumando seus cigarros, bebendo os seus cafés quentes, trabalhando e vivendo. Vivendo e trabalhando. Ou seria vivendo e perdendo? Vivendo e sentindo o eco. Vivendo e ouvindo o eco de coisas que se quebram e ninguém se importa. Vivendo e voltando desesperadamente ao passado, ao segundo exato, aos cacos repartidos no chão, tentando freneticamente juntar todos eles. É em vão, é em vão. Aceitação é o primeiro passo, vivendo e aceitando.
    Talvez seja isso que aquele homem sentado no banco da praça e abraçando o próprio corpo sentia, a aceitação muda, a aceitação sem palavras, o fechar de olhos em consentimento, o saber exato de que não há o que possa ser feito.
    Bilhares de coisas sem nome quebram-se por dia. Ninguém ouve de fato. Todos continuam ignorando os ecos. 




Annabel Laurino