terça-feira, 25 de março de 2014

Sensível

    É noite quando eu saio do trabalho. E as vezes parece que ha quinze minutos atrás ainda era manhã, ainda era eu mesma acordando com a cara desmantelada e o sol fustigando através da janela do quarto. Eu correndo pelas ruas da cidade, atravessando a praça, apressando os passos para que eu não me atrasasse.
    Não escrevo mais. Faz muito tempo que não sento, paro, penso e depois reflito novamente no que foi pensado. Que deixo fluir, que amadureço a ideia lá no fundo da cabeça, na minha cuca fundida, e deixo a coisa crescer. 
    Eu não me reconheço mais. Porque cresço a cada instante num fluxo perfeito como uma supernova em explosão. Eu não reconheço as minhas faíscas, as minhas facetas, brilhantes, cortejantes, cegando-me com toda a luz, com toda a proporção de diferença, tamanho, luz e cor. 
    Sento e tento deixar a coisa fluir. Eu quero dizer algo, eu quero falar. Eu quero dizer onde eu estive sem ter ido realmente, mas que não seja uma mentira, que seja uma ideia. Para que quem está lá, do outro lado, quem está sendo invadido com as minhas palavras, tortas e mal resolvidas, possa entender o sentimento. E é isso que eu te passo agora. Todo o meu sentimento. Toda e qualquer estranheza que tenho. 
    Eu lhe apresento o eu mesma de mim, sem ser. 
    Estranho? Não. Não é estranho. Estranho seria se o café não esfriasse, se os pelos do cachorro não grudassem na minha calça preta, se eu chegasse pontualmente, se o ônibus passasse sem me ver, se eu não perdesse a hora dormindo mais um pouco. Estranho seria se eu não me faltasse só para poder me preencher. 
    Como desculpa, porque depois que o café termina, eu faço outro. E outro e outro. E deixo sempre um pouco no fundo, para dizer que esfriou e usar isso como um bom argumento, 'não tomei tudo, vou fazer outro'. E lá se vão mais algumas canecas. 
    Depois de um tempo parece que nada te supri as faltas. E a exigência vem. Você se torna uma pessoa careta, velha. O tipo de pessoa que seus pais amam e seus amigos odeiam. A pessoa que morre de overdose de chocolate num sábado a noite sentada na sala vendo um filme com Chuck Norris no elenco com um pijama velho e pantufas surradas. 
    Com as minhas exigências agora admitidas ou não, de qualquer jeito, eu não posso ficar. Tenho pressa. E minha urgência de uma vida ampla é sem limites aceitáveis. Por isso eu não me despeço. Hora ou outra eu retorno, bagunço as almofadas do seu sofá da sala, tiro alguns discos de lugar, deito na sua cama, desarrumo seus lençóis, deixo meu perfume no seu apartamento, nas suas roupas, na sua vida. Deixo a minha marca mal resolvida e depois eu vou embora, mas nunca me despeço. Eu posso voltar. 
    Eu só não me desculpo. Seria injusto. Comigo e contigo. Pedir desculpas por algo que não se pode evitar. Pedir desculpas por ser quem a gente é. 
    Só que eu não sei quem eu sou. Eu falo, 'zé, eu não sei quem eu sou.' e não vem resposta nenhuma, ninguém sabe. Eu só sei do que eu não gosto. 
    E eu não gosto do que eu sinto quando já é noite e parece que o dia passou tão rápido. Quando parece que já é noite e a vida passou voando, como um trem de janelas acessas no meio do breu. 
    Não gosto de sentir que não estou sentindo mais. 





Annabel Laurino



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