sexta-feira, 28 de março de 2014

Sobre a introspectividade

Eu não estava dentro
Eu não estava fora
Do cá de onde eu estou eu vejo tudo
E submerso
Até que
Eu emerja novamente
Que mãos vão me erguer 
para que eu resgate os golfos de ar
que tão desesperadamente
se perderam de mim
Que mãos me empurrarão para dentro dessa imensidão de água 
que afundo 
e me perco
Serão as mesmas mãos?
Não sei se dentro ou fora
Desobedeço as regras da exatidão
E contidamente continuo
Dentro e fora
Afundando lentamente
Lutando até os últimos segundos de busca
Eu vivo
Depois eu submerso





Annabel Laurino 

quarta-feira, 26 de março de 2014

terça-feira, 25 de março de 2014

Sensível

    É noite quando eu saio do trabalho. E as vezes parece que ha quinze minutos atrás ainda era manhã, ainda era eu mesma acordando com a cara desmantelada e o sol fustigando através da janela do quarto. Eu correndo pelas ruas da cidade, atravessando a praça, apressando os passos para que eu não me atrasasse.
    Não escrevo mais. Faz muito tempo que não sento, paro, penso e depois reflito novamente no que foi pensado. Que deixo fluir, que amadureço a ideia lá no fundo da cabeça, na minha cuca fundida, e deixo a coisa crescer. 
    Eu não me reconheço mais. Porque cresço a cada instante num fluxo perfeito como uma supernova em explosão. Eu não reconheço as minhas faíscas, as minhas facetas, brilhantes, cortejantes, cegando-me com toda a luz, com toda a proporção de diferença, tamanho, luz e cor. 
    Sento e tento deixar a coisa fluir. Eu quero dizer algo, eu quero falar. Eu quero dizer onde eu estive sem ter ido realmente, mas que não seja uma mentira, que seja uma ideia. Para que quem está lá, do outro lado, quem está sendo invadido com as minhas palavras, tortas e mal resolvidas, possa entender o sentimento. E é isso que eu te passo agora. Todo o meu sentimento. Toda e qualquer estranheza que tenho. 
    Eu lhe apresento o eu mesma de mim, sem ser. 
    Estranho? Não. Não é estranho. Estranho seria se o café não esfriasse, se os pelos do cachorro não grudassem na minha calça preta, se eu chegasse pontualmente, se o ônibus passasse sem me ver, se eu não perdesse a hora dormindo mais um pouco. Estranho seria se eu não me faltasse só para poder me preencher. 
    Como desculpa, porque depois que o café termina, eu faço outro. E outro e outro. E deixo sempre um pouco no fundo, para dizer que esfriou e usar isso como um bom argumento, 'não tomei tudo, vou fazer outro'. E lá se vão mais algumas canecas. 
    Depois de um tempo parece que nada te supri as faltas. E a exigência vem. Você se torna uma pessoa careta, velha. O tipo de pessoa que seus pais amam e seus amigos odeiam. A pessoa que morre de overdose de chocolate num sábado a noite sentada na sala vendo um filme com Chuck Norris no elenco com um pijama velho e pantufas surradas. 
    Com as minhas exigências agora admitidas ou não, de qualquer jeito, eu não posso ficar. Tenho pressa. E minha urgência de uma vida ampla é sem limites aceitáveis. Por isso eu não me despeço. Hora ou outra eu retorno, bagunço as almofadas do seu sofá da sala, tiro alguns discos de lugar, deito na sua cama, desarrumo seus lençóis, deixo meu perfume no seu apartamento, nas suas roupas, na sua vida. Deixo a minha marca mal resolvida e depois eu vou embora, mas nunca me despeço. Eu posso voltar. 
    Eu só não me desculpo. Seria injusto. Comigo e contigo. Pedir desculpas por algo que não se pode evitar. Pedir desculpas por ser quem a gente é. 
    Só que eu não sei quem eu sou. Eu falo, 'zé, eu não sei quem eu sou.' e não vem resposta nenhuma, ninguém sabe. Eu só sei do que eu não gosto. 
    E eu não gosto do que eu sinto quando já é noite e parece que o dia passou tão rápido. Quando parece que já é noite e a vida passou voando, como um trem de janelas acessas no meio do breu. 
    Não gosto de sentir que não estou sentindo mais. 





Annabel Laurino



terça-feira, 18 de março de 2014

De repente

    O sol crispa nas calçadas quase cheias de pessoas. O sol que logo vai embora, é só uma réstia. Lá em cima há as nuvens, cheias, carregadas de chuva. E me sinto por dentro de um grande áquario, analisando tudo por essas imensas janelas de vidro.
    E começa a chover.
    Começa como termina, de repente. E termina como começa, de repente.
    É uma rapidez a alternância do humor dos dias. Uma alternância no humor dentro de mim mesma. E de repente eu me descubro. De repente. Como quando começa e termina. Eu me vejo com o coração apertado no peito e prestes a explodir, é adrenalina pura.
    Quero me apaixonar, quero viver as novas sensações da vida. A chuva e o sol. O que vier primeiro, tanto faz, mas que seja de repente. Que eu não possa prever. 
    O que costuma ser estranho tende a ser divertido. E eu quero isso, o divertimento que o estranho tem. Quero suar a mão na mão de outra pessoa, nervosa. E beijar e beijar e beijar. E me sentir beijada. Quero ter surpresa e fazer surpresas depois. E receber colo, caminho, carinho. Quero dar amor e sentir paz depois, e turbulência e nervosismo e frio na barriga e depois paz novamente. 
    Turbulência. A vida precisa disso as vezes.
    O sol vem novamente, depois da chuva repentina. 
    Não fico triste. Eu gosto da alternância. É dinâmico, é divertido. E os guardas-chuva se fecham na velocidade em que se abriram. As pessoas continuam caminhando sem rumo, lá fora, na rua. E os seus passos é como se medissem a velocidade correta de batidas do meu coração. 
    Mais tarde, no mesmo dia, choveu novamente. 
    E assim, nós vamos indo. 
    





Annabel Laurino

sábado, 15 de março de 2014

Bad






I'm wide awake
I'm wide awake, wide awake
I'm not sleeping



U2

Is it Really So Strange?



The Smiths

;

Não era um dia melancólico nem o horário pronunciava 
a cena que viria
era um dia inicio de tarde qualquer, dos que não se advinha
a temperatura
não havia temporal, não era feriado nem véspera de
nada
e não há fosfato que me faça lembrar que roupa estava
usando 

pois neste hiato de tempo em que não chovia nem
molhava 
em que as frases arrastavam-se lentamente uma a uma 
é que aconteceu o inesperado de uma vida, um divisor 
de águas 
entre a mulher saudável que eu era e a mulher que eu 
sangraria

não durou nem dois minutos, não houve violência,
parece até que havia música
algo dito em voz baixa calou fundo num ponto ainda
agreste do meu lado esquerdo
não recordo se era quinta ou sexta, se foi há sete ou oito
anos, e os porquês
só sei que fui despida bruscamente e desconfio que já
não usava roupa alguma 



(Martha Medeiros in Cartas Extraviadas; poema 42)

quinta-feira, 6 de março de 2014

Anônimo

    Só para lembrar que você sempre tem a opção de ser anônimo
     De me deixar ver mas não completamente
     Mesmo que eu saiba de qualquer forma que se trata de você
     Mas só eu vou saber.
     Que você sempre tem a opção de ficar escondido
     Claro, de preferência comigo
     Sem ninguém saber
     Só eu, tocando suas formas no escuro
     Penteando seus cabelos com a mão, desfrutando da sua barba por fazer
     Alfinetando o meu corpo com o teu eu 
     Você sempre tem essa opção
     De anonimato
     Que só eu vou reconhecer 



Annabel Laurino

segunda-feira, 3 de março de 2014

Sem Pertencer

    Sete da noite. Horário de inverno novamente, coisa boa. Eu saio do trabalho e está quase escuro. É uma delicia, eu penso. Não por estar escuro, não pelo horário, é toda a atmosfera que engloba o tudo. É aquele quase breu, as luzes dos postes se acendendo, a livraria da qual eu saio (o meu trabalho, o melhor trabalho do mundo, para mim) com quase tudo apagado, final do dia, vem um vento pela rua, aquela chuva indecisa que não sabe cair e nem ficar, as pessoas abrindo seus guarda-chuva, empunho o meu aberto, firme na mão e me encolho dentro da jaqueta. É tudo tão rarefeito, especial, nostálgico.
    Cada passo que eu dou agora é como um passo marcando algum número em milhão. Para onde vou? Para casa, eu penso. E talvez pudesse existir outro lugar para ir, dentre tantos! Mas não, eu vou para casa. A casa que me espera e que eu conheço, quente, amiga, cama familiar, meus livros, minha caneca favorita, cachorros e violão. Para casa. Cada passo que eu dou eu me perguntou, e se eu não fosse para casa? Não há outro lugar para ir, me convenço, e então eu rumo para casa. 
    Cada passo que eu dou parece tão óbvio, como se estar certo de que é manhã ou tarde. Você não sabe explicar porque exatamente essa ideia é tão fixa na cabeça, você nasceu, cresceu, te ensinaram assim. Ao longo disso, sempre, você sabe quando é manhã ou tarde. Assim como eu sei quando e para onde devo ir e simplesmente vou. Hoje é para casa, como tem sido ha muito tempo. 
    Uma hora ou outra você acorda e é de manhã, sol forte, sol lindo, sol socando sua cara amassada de sono e você deseja que ainda fosse noite, que ainda pudesse dormir mais um pouco. Não, mas é de manhã. Acorda. Acorda. A ideia é insistente, não tem como fugir.
    Um passo a mais e eu desejo fazer a direção contrária, mas não. Não, porque não é para onde eu tenho que ir e eu não tenho outro lugar para estar agora. Para casa.
    A ideia é insistente. 
    De repente eu quero reclamar de tudo, eu quero falar mal do cabelo de alguém, eu quero chutar o poste, derrubar o latão de lixo e falar um palavrão na cara de alguém. Infantil, sem graça, sem motivo, eu quero reclamar. Mas eu não tenho do que reclamar, eu tenho o melhor emprego do mundo, eu tenho casa, família, livros e musica, eu tenho uma vida e ela não é ruim. Mas mesmo assim, eu quero reclamar.
    Porque eu quero me livrar dessa sensação densa, grudenta, essa coisa pesada que não desce e nem sai logo da garganta, fica ali entalada, uma sensação de se sentir só mesmo acompanhada. A sensação de não pertencer a pessoa nenhuma, a coisa nenhuma. E quando eu digo coisa eu não falo a matéria presente, não falo do trabalho, da casa e nem da rua, porque essas coisas assim são muito fáceis de se estar, você senta, abre um livro, opera ações, cumpre tarefas, caminha, é mecanizado. Eu me refiro ao estar, ao pertencer além do material, refiro-me a sensação de estar interligada com as pessoas e seus mundos a parte, de estar ao lado, de se conectar.
    Mas quanto mais eu tento mais a repulsão é forte, é como os átomos. Eu não me atraio. 
    E lá se foram mais passos, passos e passos, logo ali na frente é a minha casa, veja. Eu entrarei, tomarei café e ficarei ali, pertencendo. Até que depois de amanhã eu volte a me sentir assim, sem pertencer. E isso não para, não termina. 
    "Aceitação é o primeiro passo", eu lembro. Mas não consigo aceitar.





Annabel Laurino