segunda-feira, 15 de julho de 2013

Clementine

     Lembra daquele filme, aquele em que a personagem principal pinta o cabelo várias vezes de azul, vermelho, laranja e por ai vai? É, aquela mesma que fez aquele filme Titanic e que ambos os principais se amam muito, mas brigam por qualquer coisa estupida e decidem se apagar da memória um do outro. Sim, eu sei, você lembra. 
     Foi exatamente nesse filme que Marina pensou quando acordou naquela manhã de sábado meio enlurada. Ela lembrou da moça do filme e suas cores diversas de cabelo, ela lembrou de tudo e de mais um pouco e mais ainda enquanto repunha as pequeninas doses engolidas de cafeína para dentro do corpo, olhando a manhã que se sobrepunha pela janela afora. 
     Clementine era o nome da moça do filme, a personagem, lembrou-se Marina. E tinha uma musica até, cantada pelo o outro personagem principal enquanto os dois estão num trem e 'acabaram de se conhecer/reconhecer', soava um pouco assim: 'Oh darling, oh darling, oh my darling, Clementine'.
     Porque Clementine soa como clemência, um pedido de paz, perdão, salvação.
     Marina sorriu pela primeira vez naquela manhã de sábado. Meio tristinha ela, a manhã, toda meio cinza, os raios de sol indecisos se queriam ou não perpassar as nuvens. Marina se sentiu nostálgica, com o cabelo preso num rabo de cavalo bagunçado e sua manta de três cores. Sentada na janela, ela ouviu seu vizinho ligar a televisão bem alto e por naquele canal de musica, era a hora da manhã que só dava musica estilo anos 20, e isso duraria uma hora ainda. Respirou fundo, abraçou seu próprio corpo, inverno. Inverno há muitos dias já, incontáveis. O tempo passa relativamente devagar quando se está frio, e tem muito mais coisas para serem vistas e apreciadas. Mas nesse sábado não, nesse sábado ela só queria que o tempo passasse voando e fosse logo segunda-feira, ou não sei, um mês depois. Ou que o roteirista da sua vida, se consolidasse de uma vez por todas, e apertasse logo o botão avançar e fosse finalmente, e tão merecidamente, aos créditos finais. Vamos lá, só apertar o botãozinho, pensou ela, tão esperançosa.
    Sim, esperança, porque assim como clemência a esperança vem sempre viva e acessa mesmo depois de muitos pontapés. E isso Marina sabia muito bem, dos pontapés que a vida dá. Já levara tantos e alguns aprendeu a distribuir por ai, mas só de levinho, porque caiu sobre seu entendimento que algumas vezes lutar por paz é abrir mão de muita coisa, doa a quem doer, e isso a gente não tem como se culpar.
    E das desistências, dessas entendia muito bem. Havia desistido poucas vezes na vida, pequenas coisas como desmarcar a manicure num final de semana porque acabou saindo tarde do trabalho, de comer doces para entrar naquele vestido lindo, de ver seriados e dormir tarde, para não perder a academia no outro dia, isso é meio como abrir mão, não uma desistência em si. Desistir mesmo, de verdade, do tipo de desistência que é daquelas mais difíceis de se fazer, das mais complicadas, que dói fraquinho e depois cai como uma avalanche, bem, dessas assim, só uma vez. E o que ela aprendeu foi que clemencia e desistência tem tudo a ver uma com a outra, quase irmãs, aliás. 
    Ah se doeu, é isso que você quer saber? Ô, doeu muito. Ainda doía, as vezes, de vez em quando, ou dias como esses, como esse sábado. Foi por isso que acordou lembrando desse filme, tudo a ver, tudo a ver. Vontade de abrir o peito e concertar os parafusos frouxos, repor o óleo e depois concertar algumas falhas de praxe. Se tudo fosse tão simples assim, como cuidar de um robô!
    Marina não sentia mais tristeza, era só um sentimento de ' e se tudo tivesse sido diferente, e se eu, você, todos nós, tivéssemos sido diferentes?', foi por isso que não chorou naquela manhã, como costuma fazer quando pensa em coisas dessas que escurecem sua mente, ela só sorriu. Havia algum tempo esquecido como era se sentir terrivelmente triste, é verdade que as vezes caia em choros profundos e soluços de dar dó e que tinha dores fortíssimas no peito que nem um médico especialista com seu mais renomado diploma daria jeito. Só o tempo, meu irmão, só o tempo deixa tudo em ordem outra vez. E foi assim que esquecera-se de alguns desejos inervosos, de que o príncipe encantado surgiria a qualquer momento, que as pessoas não a machucariam mais ou que a lei de Murphy não a atrapalharia nunca mais. 
     Mas de verdade mesmo, Marina só queria um pouco de clemência, foi o momento em que suas rosadas pálpebras começaram a se fechar, cobrindo os pequenos olhos de gato, meio brilhantes naquela manhã cinza, os lábios úmidos de café e os cabelos desgrenhados, assim como seus pensamentos há alguns dias atrás. Marina sentiu paz, sentiu o mundo lá fora, como as árvores enfeitando a rua, Marina era uma daquelas árvores, ou um bem-te-vi, uma andorinha, uma folha seca, qualquer coisa, o que importa era o que estava dentro dela naquele momento, e tinha um nome doce, tinha vindo com tanta luta, com tanto suor, algo tão batalhado, vitória até que enfim. E sentiu paz, e tudo ficou limpo e Clementine poderia ser seu novo nome em um novo mundo onde só existiriam coisas boas e o brilho de uma mente sem lembranças alguma.



 Annabel Laurino
      
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