sábado, 15 de junho de 2013

Batida de Sexta

    É verdade que depois que ela foi embora lhe arrancou algumas particularidades excelentes de observar e viver a vida. É sim, verdade, que depois que ela foi embora lhe fez esquecer a maneira gentil de mastigar as suculentas provas da vida, instigando o sabor doce de alguns momentos inesquecíveis, porque ela estava em todos eles, e agora, não estava mais.
    Por isso recitou Legião enquanto olhava o teto iluminado acima da sua cabeça que latejava, latejava, cada vez mais incessante. 
    Os bons morrem jovens. Ele disse, a boca seca abrindo-se como a porta de um porão a muito tempo fechado. Abriu os lábios e deixou a voz sair. Os bons sempre morrem jovens. 
    As estrelas do teto estavam distantes, os postes nas rua já se acendiam com aquela luz amarela e que agora lhe provocava uma forte vontade de se levantar e ir até lá apaga-las. As copas das arvores da praça lhe chegavam na visão e tudo que ele via era a luz amarela e as estrelas, enquanto ouvia a musica ao fundo de seus ouvidos aglutinados por uma batida forte.
    Por que os bons morrem jovens?
    Iria morrer. Então era assim? Morreria vendo os postes de rua, morreria depois de não ter feito nada e ter tentado tudo, morreria simplesmente, como uma poeira cósmica é jogada no espaço interestelar acima de sua cabeça. Morreria e seria um fim. 
    Tentou imaginar o que as pessoas diriam no dia seguinte, se sentiriam sua falta, se lhe mandariam flores no dia de finados. Que triste fim, pensou, eu nem fiz a barba hoje, que pelo menos eles se dêem ao trabalho de me fazerem a barba quando me colocarem no caixão. 
    A vida sempre tão trágica, e obtusa com seus emaranhados de desprendimentos sentimentais...
    - Não se mexa, eu vou chamar a ambulância.
    Quem agora ousava lhe interromper nesse momento de fim? Será que já não haviam detido todas as suas chances de felicidade suficiente? Será que não podiam pelo menos lhe deixar morrer em paz?
    - Fale comigo e não durma, certo? Meu nome é Fernanda, mas pode chamar de Nanda, ah ok, isso não importa agora. Enfim, você vai ficar bem. Ta tudo bem.
    Ficar bem? Ficar bem? Oras, era só o que lhe faltava para uma sexta feira como essa. Era só o que lhe restava mesmo. Cabelos castanhos e uma pele clara lhe assaltavam a visão periférica enquanto seus olhos tentavam se acostumar com a luz.
    Na verdade, percebeu, não fechou os olhos nem por um segundo, acreditava que não estava piscando com tanta frequência quanto o normal e por isso sentiu seus olhos lacrimejarem. Piscou. As luzes novamente entraram em foco junto com as copas das arvores e nada mais era só um borrão de puro brilho. Tentou erguer a cabeça mas seus ombros foram impelidos para baixo e pequenas lágrimas escorreram dos olhos enquanto ardiam.
    - Não se levante. Não se mexa. Ai você está chorando. Não chora, vai ficar tudo bem.
    Sentiu uma mão tateando seus bolsos das calças e depois da jaqueta, se desesperou, arregalou os olhos e de repente a mão saiu. 
    - Estou pegando seus documentos... Hã... Rodrigo. Certo, então Rodrigo, um carro bateu em você. Você não está ferido e a batida não foi muito forte, mas acho que você bateu a cabeça quando caiu...
    Fernanda que pediu para ser chamada de Nanda continuou a falar. Explicou do tal acidente e de como motoristas eram irresponsáveis. Sim, eles eram, ela afirmou. E continuou a tagarelar uma porção de coisas e falar que Rodrigo não deveria dormir, deu explicações as pessoas que se aproximavam para saber do que houvera e xingou algumas vezes o motorista, que nervoso, tentava dizer que não havia visto o tal rapaz, que tudo foi muito rápido.
    Era um Bad-Day para Rodrigo, sexta feiras geralmente não eram mais dias muito bons. Poderiam ser, se fossem alguns meses atrás quando tudo era paz e tinha um aroma de amor, mas agora sextas feiras eram cinzas e com a certeza de mais dois dias solitários enfurnado num apartamento em frente a uma praia de mar gelado e vento frio de inverno. Nada mais era como o verão havia sido.
    É por isso que queria descobrir o que iria acontecer caso ficasse um tempo a mais no meio da rua do que o necessário para atravessá-lo. 
    Ligou para ela na manhã do mesmo dia e avisou que chegariam flores no seu trabalho lá pelas dez. Disse que havia reservado uma mesa naquele restaurante chique que passavam em frente depois do cinema nas voltas para a casa. E disse também que não se importava que ela havia experimentado o amor de outro cara, que ele não era assim tão legal, que ele sim, Ele, o cara que a amava de verdade, é que poderia lhe dar o mundo se ela quisesse. 
    A resposta obtida não foi a esperada.
    Nada de emoção. Jantares românticos. Promessa de amores renovados e um futuro em frente.
    "Não é por nada, mas eu não sei o que sinto por você. Que dizer, eu amo você, eu sei disso, mas não fomos feitos para ficarmos juntos. É isso. Me desculpa. Adorei as flores."
    A voz tremia estática na ligação, a voz linda dela e que Rodrigo sentia profunda saudade. 
    É por isso que saiu caminhando sem rumo depois que fechou o apartamento e pôs o lixo na rua, fumou alguns cigarros, bebeu alguns copos a mais e sozinho continuou a caminhar pela cidade. Até que viu o carro, os faróis acessos, a promessa de que tudo iria se acalmar, principalmente aquela tortura na sua cabeça . O que aconteceria?
    Nada aconteceu. Pelo visto ele ainda estava vivo. E não era bom o suficiente para morrer. Ou isso ou Deus o queria muito naquela vida ainda para provar de uma sexta amarga e de um pouco mais de solidão.
    Aproveitou que a tal Fernanda parecia estar ocupada xingando um motorista morbidamente culpado e levantou-se as pressas, sentindo-se meio tonto, a visão turva de luzes e cores e pessoas. Havia uma significativa quantidade delas espalhadas em volta de si e do carro e do próprio motorista. Todas lhe olhando assustadas e observando com irritação o suposto cara que lhe atropelara. Foi por isso que todos emitiram 'ós' assustados quando se levantou e outras até mesmo disseram que tinham mais o que fazer e o cara estava vivo, nada demais havia acontecido. 
    - O que você está fazendo? Você está louco? Sente-se agora. 
    Era a Fernanda. Só podia ser ela. Cabelos castanhos, marrons da cor de chocolate, olhos grandes e clarinhos como o mel e uma mecha prata na franja em frente aos olhos. Era pequenina, baixinha mesmo, e tinha um ar mandão e ao mesmo gentil, preocupada. 
    Linda ela.
    - Não, eu tô bem, mesmo. Eu me desliguei um pouco e na verdade o carro só me empurrou, não foi uma batida de verdade como daquelas dos filmes e veja só, estou bem. - sorriu com desdém e estendeu a mão para o motorista que atônito lhe olhava aturdido.
    - Você é louco. - disse a Nanda baixinha que tinha delineador azul nos olhos grandes e de cílios enormes.
    - Eu sei moça pequenina, eu, você e todos nós. Mas agora que tal um café para essa sexta feira amarga e deixar essa confusão toda que a vida é de lado por alguns instantes?
     Ela sorriu. Essa foi sua surpresa. E ele sorriu de volta.
     Ah, as tragédias diárias.





Annabel Laurino

   

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