Quando
descemos do trem somos engolfados pelo ar gélido de muito vento, porém
abraçados por raios de sol luminosos e cálidos em pura essência. Percebemos, a atmosfera
que nos abraça é outra, é poética em toda sua existência, tremulante em nos alcançar
ao longo de nossa descoberta nessa cidade de pedras. Você desce na
minha frente, estendendo sua mão quente pra me ajudar e juntos, nós
nos direcionamos ao fabuloso dia que nos espera.
E
o que descobrimos, afinal? Ora, no presente momento em que descemos do trem a
cidade estava recém desperta. Agora, conforme distendemos nossos pés curiosos
pelas calçadas de rachaduras e passamos por prédios gastos, a cidade se acorda
ainda mais, com rufares e espreguiços, espasmos e agitos, emperdigando-se toda
em sua imensa sede de ser. Tal como é por
inteira; grande, louca, selvagem e barulhenta, ela é mesmo que eu não a
registrasse através desse meu caleidoscópio mágico que aqui tenho em mãos,
sentada nesse café. Sou a mulher com olhos de gato e lentes estroboscópicas,
registro tudo, mergulho dentre a superfície superficial e supérflua, alcançando
assim, a cidade tal como ela é.
E
ela existe e inexiste, ela é mesmo que ninguém a perceba. Ela é o verbo nesse
exato momento. Existindo em tremedeiras cintilantes de nuances esvoaçantes e azuis,
cheia de som e cor, no segundo perfeito em que descemos do trem.
Descobrimos
a cidade despertando, vasculhamos sua existência com nossos passos curiosos, os
meus e os seus ou os nossos, já que não há duvidas de que ao longo da
descoberta nossos passos estiveram no mesmo compasso titubeante e diletante.
Descobrimos não somente o despertar da cidade, mas como tantas outras coisas,
coisas que não poderiam ser vistas com olhos descuidados.
Pelas
avenidas encontramos as pessoas, nos deparamos com o fluxo, o mar de gente, a
sonoridade grande e enloquente dos passantes apressados, os carros e suas
buzinas, a poluição de cartazes, lojas com suas promoções, vendedores nervosos,
restaurantes abertos, o cheiro de comida, ah... a gastronomia urbana! Tudo isso
entrelaçado num conjunto amórfico. Os cães de rua, os moradores de rua. Tudo está
na rua! As carrocinhas de lanches rápidos, baratos e que todos compram. Os
vendedores ambulantes com suas mercadorias empilhadas em caixas ou presas em
murais que eles levam para todos os lugares, todas as esquinas. Tudo está
acontecendo, tudo acontece.
De
mãos dadas nós costuramos as ruas. E depois sentados e boêmios piquiniqueamos
no parque próximo ao mercado. Voz e violão, sanduíches e um suco de uva doce,
para dilatar os nossos sentidos. Não temos pressa, e por isso cantamos músicas,
você dedilha o violão enquanto eu te dedilho com os olhos curiosos. Não me
canso de anotar mentalmente seus detalhes, seu cabelo cacheado que esvoaça no vento, suas mãos tão grandes que seguram com delicadeza o instrumento que
dedilhas, a pinta escura por baixo do teu queixo, teus olhos castanhos e
penetrantes, teus ombros largos, eu fotografo tudo, por inteiro.
Quando a tarde começa, satisfeitos e atônitos,
nós decidimos por café e nossa busca recomeça. Sabemos para onde ir, sabemos o
lugar cafeico e perfeito, nosso recanto particular em todo o universo. Mas
mesmo assim, deixamos ele por último e visitamos outras cafeterias. Dessa vez,
é usual e cultural, tomamos um expresso espiralantemente quente e forte,
tiramos fotos, rimos e fazemos trocadilhos, poetizamos, concretizamos histórias
e confabulamos sobre o universo.
Com
as xícaras vazias e a conta paga nós prosseguimos. É tarde de sol que se
esconde e depois reaparece dentre as nuvens, o mercado de pulgas está aberto
com todas as bancas expostas, roupas, discos, souveniers, louças antigas e
belas, quadros, tapeçarias, máquinas de escrever, livros, artesanato, tudo em
exposição ao longo do perímetro do Mercado, uma alegoria de coisas antigas e
bonitas, que mesmo que não se compre nada vale a pena admirar cada uma dessas
coisas, conversar com os vendedores e se for o caso, garimpar um achado muito
valioso, como um vinil raro daquela banda favorita.
Não
solto sua mão e você também não faz questão de soltar a minha, caminhamos assim
pelo calçadão da cidade, compramos sorvetes deliciosos, o meu de Pavê Italiano,
meu favorito, o seu de Pistache. Marco a colher do seu sorvete com o meu batom
cor de rosa e isso, ao longo da nossa caminhada, se transforma em uma piada
interna que gera gargalhadas, e rimos e rimos sem parar até que nossas barrigas
doem e os cantos dos nossos lábios adormecem doloridos. As pessoas passam,
apressadas, outras descansadas, consumindo. Nós olhamos tudo, as vitrines e as
pessoas, muitas vezes são elas que nos olham, muitas vezes somos capturados
pelo vidro de uma vitrine qualquer onde nossa imagem é registrada por nano
segundos enquanto passamos.
Ao prosseguirmos com nossos sorvetes coloridos, eu te falo de Hemingway, te conto
bobagens até que adentramos uma rua que é definitivamente a minha favorita, muito parisiense, com calçamento cuidadosamente ladrilhado, lojinhas
lado a lado, todas pequenas, e três livrarias de uma só vez. Adoro isso, adoro
essa atmosfera que se move num conjunto tão boêmio e nos acolhe em uma única
vez.
Ao
longo dessa rua, hippies vendem sua arte, anéis com pedras tão bonitas,
colares, porta incenso, enfeites e brincos. Paramos para conversar com um
vendedor que nos chama para olhar o que está vendendo, logo, lhe desejamos boa
sorte e continuamos. É o momento de nos perdermos dentre os livros, e fazemos
isso em uma das livrarias pequenas. Compramos bandeirinhas de países,
alimentamos mais uma tradição, para novamente, prosseguir, flaneuriar.
Sabemos
onde devemos chegar, não há duvidas, é o nosso lugar especial e ele nos espera.
Caminhamos com pressa dessa vez, queremos chegar o quanto antes, ansiosos por
aquele café quente, ansiosos por aquele lugar que é tão nosso. A avistamos de
longe, imperiosa e tão, tão perfeita, a nossa cafeteria dos sonhos. O nosso
Café Flore.
Entramos
e somos recebidos pelo tilintar de xícaras, o ruminar de conversas, o burburinho
por conta do jogo que está passando na televisão. Há um grupo de senhores de
idade que se aglomera ao longo do balcão onde é servido o café, outro grupo de
senhores se deleita com o jogo discutindo quem irá ganhar, qual a melhor jogada
e vibram intensamente com a certeza de uma vitória iminente. Fora os grupos, há
os senhores misantropos, os que se acolhem do lado de fora do café, sentados na
vidraça, fumando seus cigarros ou simplesmente lendo seus jornais.
É
um lugar deliciosamente barulhento situado numa esquina, num canto perfeito da
cidade. É formidável, magnífico o sentimento de estar ali dentro. Procuramos
uma mesa ao lado da enorme vidraça que nos permite uma visão completa da rua,
como se estando sentados ali estivéssemos também no meio dos passantes, do mar
de gente que passa sem parar pelas calçadas. Nenhum adjetivo que eu pudesse usar
agora lhe permitiria melhor alcance dessa cena além do que eu posso dar, com
minhas palavras truculentas e pedantes.
Mas
faço o que posso com a ponta inclinada do meu lápis nesses papéis cheirosos de
inverno. Faço até onde a minha lupa, que não se limita somente ao que posso ver,
mas ao que não posso ver, me deixa adentrar. Faço o que consigo, capto além do captável
para que quem me lê possa entender a poesia escondida por trás da linha enrijecida
daquilo que é belo naturalmente, poético em existência, com essência leve e viva,
tal como essa cidade.
O
garçom vem com o bule fumegando de um café que, logo, percebo meus lábios sedentos
pelo gosto familiar e tão gostoso. Ele serve o elixir em nossas xícaras e
acrescenta uma quantia de água. No meu caso, dois dedos de água, no seu, café
puro e sem açúcar. Gostamos disso, dessas características que permaneceram
nessa cafeteria mesmo depois de tantos anos. Não vivemos aqui quando ela abriu
suas portas pela primeira vez e nem tomamos seus primeiros cafés, servidos a
esses senhores que na época deveriam ser jovens, ter nossa idade, talvez. Mas
podemos visualizar tudo isso, porque pequenas características antigas
permaneceram aqui, o café sendo servido no bule, na mesa do cliente, os
uniformes dos garçons, as vidraças, o balcão onde também é servido os cafés e
vendido todo o tipo de charuto para aqueles que fumam se refestelarem lá fora,
nas calçadas. A essência desse lugar permaneceu, através dos anos, sofisticada
e rústica, mantendo-se intacta mesmo diante da modernidade.
Assim,
nós nos perdemos sorvendo do gosto ferrenho e agridoce que vai se aglutinando
gradativamente no nosso paladar. Admiramos a cidade através do vidro marcado de
mãos e de poeira, um casal passa andando de bicicleta, senhoras de idade
atravessam a rua e desviam dos pombos gordos e cinzas, crianças correm em direção
ao calçadão vestindo camisetas de super heróis, um casal apaixonado beija-se
loucamente do outro lado da rua e depois seguem andando. Tudo está em
movimento. A ponta do meu lápis registra detalhes, risco e rabisco coisas, anoto
tudo, estou fotografando o fluxo.
Seus
olhos me registram também, me flagram, interrompo a escrita, você me fala breguices que me fazem sorrir e eu te jogo um beijo por cima de nossos cafés, um beijo
azul, eu digo. Sua mão alcança meu rosto, te falo algumas breguices também e
elas te fazem sorrir, sorriso bonito, aberto e iluminado, o tipo de sorriso que
me faz não resistir. Sendo necessário o seu registro aqui nessas páginas.
Sabemos
que temos que ir embora a qualquer momento. Mas estamos tão bem, tão leves aqui
nesse lugar tão nosso. Eu te recito um pedaço do poema que está colado na porta
de entrada da cafeteria “Me apaixonei no Aquários” e você ri e concorda, me
dando um beijo no alto da minha cabeça bagunçada. Pagamos a conta e saímos. O
vento frio nos acolhe e nos leva em direção ao âmago do calçadão. Passamos pela parada de ônibus, te falo de outros cafés, você me conta uma história, e
abraçados nós nos despedimos dessa cidade tão nossa, a cada passo, a cada rua
que passamos, nós nos despedimos.
Você
pega da minha mão, fala que tudo mudou no momento em que chegamos e que agora
podemos perceber que nós estamos diferentes, nos modificamos um pouco nessa cidade, e que
cada vinda nossa é única. Eu concordo, é
verdade, é verdade... Estamos diferentes dessa vez. Tudo tem um gosto ameno e
doce que me lembra alcaçuz e jujubas coloridas. Gosto disso. Te dou um beijo
demorado e você me chama de sua bonequinha, me deixando na ponta dos pés. As
pessoas passam, os carros buzinam ao longe, nós esperamos o trem com nossas
passagens já compradas.
Estamos
indo, sabemos, mas com a promessa de que iremos retornar em breve à essa cidade
caleidoscópica e poética, que é nossa. E que nos espera com suas pedras e
calçamentos delineantemente acolhedores, cidadélicos.
Annabel Laurino;
para o meu melhor amigo, não só amigo, desde sempre.