quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Uma breve história sobre você

Mergulho na imensidão dos teus olhos, mergulho sem pressa, como se me encobrindo lento e vagarosamente do brilho incessante que emana deles, que me aquece. Tuas mãos tem cheiro de manteiga, e eu digo isso, “tuas mãos tem cheiro de manteiga”, você ri e pede desculpas, mas eu digo pra você não se desculpar, porque eu gosto disso. Beijo os dedos compridos da tua mão ossuda e tão branca, a mordisco e pra te trazer ainda mais perto, eu a repouso no meu pescoço, como se fosses meu. E é, você é meu.
Você me delineia com os dedos, faz o contorno do meu rosto com a ponta rija e quente do teu indicador, mergulhando teu polegar nos meus lábios, perpassando tua mão pelos meus cílios azuis. Estou nadando na profusão de nuances dos teus olhos, estou te adentrando lentamente. Você diz que eu já te invadi há muito tempo, que já faço parte. Isso me faz sorrir jocoso, gostoso, sorrir com o corpo todo entregue a você, que me esperastes por tanto tempo e mesmo assim, me recebestes tão tua, tão bem.
Por isso eu me aproximo com imenso cuidado, abro a porta com delicadeza. Com mais sutileza ainda, mais do que eu posso ser capaz, solto as minhas bagagens ao pé da porta, e entro no teu espaço, no seu eu, tão límpido e cheio de luz, tão bonito. Tenho com a tua alma o cuidado que se tem com o peso de uma luz.
Não canso de te olhar, tudo o que vejo repousa nas pálpebras da minha alma e é nessa dança em que permanecemos. Chove lá fora, alguns barulhos da cidade adentram a sala através das finas camadas de concreto e reboco de parede. Não importa, estamos perdidos em nos olhar, em misturar nossas risadas num mesmo compasso, em confundir nossos cheiros e mesclar nossas cores. Te gosto tanto e tão profundamente, intensamente. Te fotografo em detalhes; teu nariz perfeito, tua boca tão grande, as sardas do teu rosto, a pinta embaixo do queixo, teus caracóis em formato de cabelo, farejo teu cheiro, aroma fresco de banho misturado com o cheiro gostoso que a tua pele tem. Eu registro tudo e amo cada detalhe.
O gosto de café que incide na tua boca é o mesmo que se profana na minha com o teu beijo. Te olho mais uma vez e te invado com o meu olhar. Você, meu amigo, minha casa, eu quero você. Se fosse possível emitir telepaticamente todos os sinais de tudo o que eu preciso te dizer, então você já teria compreendido mais além. Mas não o é, e por isso eu continuo a te olhar, e te olhar e a me perder na vastidão pura e rarefeita do teu olhar. A desejar morar em você por tanto tempo, por muito tempo, por mais do que o tempo possa contar. 
Suspiro alegre, perdida em meio aos teus braços tão compridos. Até que enfim eu encontrei o meu lar.


Annabel Laurino 

sábado, 24 de outubro de 2015

Traçando a Cidade Poética


Quando descemos do trem somos engolfados pelo ar gélido de muito vento, porém abraçados por raios de sol luminosos e cálidos em pura essência. Percebemos, a atmosfera que nos abraça é outra, é poética em toda sua existência, tremulante em nos alcançar ao longo de nossa descoberta nessa cidade de pedras. Você desce na minha frente, estendendo sua mão quente pra me ajudar e juntos, nós nos direcionamos ao fabuloso dia que nos espera.
E o que descobrimos, afinal? Ora, no presente momento em que descemos do trem a cidade estava recém desperta. Agora, conforme distendemos nossos pés curiosos pelas calçadas de rachaduras e passamos por prédios gastos, a cidade se acorda ainda mais, com rufares e espreguiços, espasmos e agitos, emperdigando-se toda em sua imensa sede de ser.  Tal como é por inteira; grande, louca, selvagem e barulhenta, ela é mesmo que eu não a registrasse através desse meu caleidoscópio mágico que aqui tenho em mãos, sentada nesse café. Sou a mulher com olhos de gato e lentes estroboscópicas, registro tudo, mergulho dentre a superfície superficial e supérflua, alcançando assim, a cidade tal como ela é.
E ela existe e inexiste, ela é mesmo que ninguém a perceba. Ela é o verbo nesse exato momento. Existindo em tremedeiras cintilantes de nuances esvoaçantes e azuis, cheia de som e cor, no segundo perfeito em que descemos do trem.
Descobrimos a cidade despertando, vasculhamos sua existência com nossos passos curiosos, os meus e os seus ou os nossos, já que não há duvidas de que ao longo da descoberta nossos passos estiveram no mesmo compasso titubeante e diletante. Descobrimos não somente o despertar da cidade, mas como tantas outras coisas, coisas que não poderiam ser vistas com olhos descuidados.
Pelas avenidas encontramos as pessoas, nos deparamos com o fluxo, o mar de gente, a sonoridade grande e enloquente dos passantes apressados, os carros e suas buzinas, a poluição de cartazes, lojas com suas promoções, vendedores nervosos, restaurantes abertos, o cheiro de comida, ah... a gastronomia urbana! Tudo isso entrelaçado num conjunto amórfico. Os cães de rua, os moradores de rua. Tudo está na rua! As carrocinhas de lanches rápidos, baratos e que todos compram. Os vendedores ambulantes com suas mercadorias empilhadas em caixas ou presas em murais que eles levam para todos os lugares, todas as esquinas. Tudo está acontecendo, tudo acontece.
De mãos dadas nós costuramos as ruas. E depois sentados e boêmios piquiniqueamos no parque próximo ao mercado. Voz e violão, sanduíches e um suco de uva doce, para dilatar os nossos sentidos. Não temos pressa, e por isso cantamos músicas, você dedilha o violão enquanto eu te dedilho com os olhos curiosos. Não me canso de anotar mentalmente seus detalhes, seu cabelo cacheado que esvoaça no vento, suas mãos tão grandes que seguram com delicadeza o instrumento que dedilhas, a pinta escura por baixo do teu queixo, teus olhos castanhos e penetrantes, teus ombros largos, eu fotografo tudo, por inteiro.
 Quando a tarde começa, satisfeitos e atônitos, nós decidimos por café e nossa busca recomeça. Sabemos para onde ir, sabemos o lugar cafeico e perfeito, nosso recanto particular em todo o universo. Mas mesmo assim, deixamos ele por último e visitamos outras cafeterias. Dessa vez, é usual e cultural, tomamos um expresso espiralantemente quente e forte, tiramos fotos, rimos e fazemos trocadilhos, poetizamos, concretizamos histórias e confabulamos sobre o universo.
Com as xícaras vazias e a conta paga nós prosseguimos. É tarde de sol que se esconde e depois reaparece dentre as nuvens, o mercado de pulgas está aberto com todas as bancas expostas, roupas, discos, souveniers, louças antigas e belas, quadros, tapeçarias, máquinas de escrever, livros, artesanato, tudo em exposição ao longo do perímetro do Mercado, uma alegoria de coisas antigas e bonitas, que mesmo que não se compre nada vale a pena admirar cada uma dessas coisas, conversar com os vendedores e se for o caso, garimpar um achado muito valioso, como um vinil raro daquela banda favorita.
Não solto sua mão e você também não faz questão de soltar a minha, caminhamos assim pelo calçadão da cidade, compramos sorvetes deliciosos, o meu de Pavê Italiano, meu favorito, o seu de Pistache. Marco a colher do seu sorvete com o meu batom cor de rosa e isso, ao longo da nossa caminhada, se transforma em uma piada interna que gera gargalhadas, e rimos e rimos sem parar até que nossas barrigas doem e os cantos dos nossos lábios adormecem doloridos. As pessoas passam, apressadas, outras descansadas, consumindo. Nós olhamos tudo, as vitrines e as pessoas, muitas vezes são elas que nos olham, muitas vezes somos capturados pelo vidro de uma vitrine qualquer onde nossa imagem é registrada por nano segundos enquanto passamos.
Ao prosseguirmos com nossos sorvetes coloridos, eu te falo de Hemingway, te conto bobagens até que adentramos uma rua que é definitivamente a minha favorita, muito parisiense, com calçamento cuidadosamente ladrilhado, lojinhas lado a lado, todas pequenas, e três livrarias de uma só vez. Adoro isso, adoro essa atmosfera que se move num conjunto tão boêmio e nos acolhe em uma única vez.
Ao longo dessa rua, hippies vendem sua arte, anéis com pedras tão bonitas, colares, porta incenso, enfeites e brincos. Paramos para conversar com um vendedor que nos chama para olhar o que está vendendo, logo, lhe desejamos boa sorte e continuamos. É o momento de nos perdermos dentre os livros, e fazemos isso em uma das livrarias pequenas. Compramos bandeirinhas de países, alimentamos mais uma tradição, para novamente, prosseguir, flaneuriar.
Sabemos onde devemos chegar, não há duvidas, é o nosso lugar especial e ele nos espera. Caminhamos com pressa dessa vez, queremos chegar o quanto antes, ansiosos por aquele café quente, ansiosos por aquele lugar que é tão nosso. A avistamos de longe, imperiosa e tão, tão perfeita, a nossa cafeteria dos sonhos. O nosso Café Flore.
Entramos e somos recebidos pelo tilintar de xícaras, o ruminar de conversas, o burburinho por conta do jogo que está passando na televisão. Há um grupo de senhores de idade que se aglomera ao longo do balcão onde é servido o café, outro grupo de senhores se deleita com o jogo discutindo quem irá ganhar, qual a melhor jogada e vibram intensamente com a certeza de uma vitória iminente. Fora os grupos, há os senhores misantropos, os que se acolhem do lado de fora do café, sentados na vidraça, fumando seus cigarros ou simplesmente lendo seus jornais.
É um lugar deliciosamente barulhento situado numa esquina, num canto perfeito da cidade. É formidável, magnífico o sentimento de estar ali dentro. Procuramos uma mesa ao lado da enorme vidraça que nos permite uma visão completa da rua, como se estando sentados ali estivéssemos também no meio dos passantes, do mar de gente que passa sem parar pelas calçadas. Nenhum adjetivo que eu pudesse usar agora lhe permitiria melhor alcance dessa cena além do que eu posso dar, com minhas palavras truculentas e pedantes.
Mas faço o que posso com a ponta inclinada do meu lápis nesses papéis cheirosos de inverno. Faço até onde a minha lupa, que não se limita somente ao que posso ver, mas ao que não posso ver, me deixa adentrar. Faço o que consigo, capto além do captável para que quem me lê possa entender a poesia escondida por trás da linha enrijecida daquilo que é belo naturalmente, poético em existência, com essência leve e viva, tal como essa cidade.
O garçom vem com o bule fumegando de um café que, logo, percebo meus lábios sedentos pelo gosto familiar e tão gostoso. Ele serve o elixir em nossas xícaras e acrescenta uma quantia de água. No meu caso, dois dedos de água, no seu, café puro e sem açúcar. Gostamos disso, dessas características que permaneceram nessa cafeteria mesmo depois de tantos anos. Não vivemos aqui quando ela abriu suas portas pela primeira vez e nem tomamos seus primeiros cafés, servidos a esses senhores que na época deveriam ser jovens, ter nossa idade, talvez. Mas podemos visualizar tudo isso, porque pequenas características antigas permaneceram aqui, o café sendo servido no bule, na mesa do cliente, os uniformes dos garçons, as vidraças, o balcão onde também é servido os cafés e vendido todo o tipo de charuto para aqueles que fumam se refestelarem lá fora, nas calçadas. A essência desse lugar permaneceu, através dos anos, sofisticada e rústica, mantendo-se intacta mesmo diante da modernidade.
Assim, nós nos perdemos sorvendo do gosto ferrenho e agridoce que vai se aglutinando gradativamente no nosso paladar. Admiramos a cidade através do vidro marcado de mãos e de poeira, um casal passa andando de bicicleta, senhoras de idade atravessam a rua e desviam dos pombos gordos e cinzas, crianças correm em direção ao calçadão vestindo camisetas de super heróis, um casal apaixonado beija-se loucamente do outro lado da rua e depois seguem andando. Tudo está em movimento. A ponta do meu lápis registra detalhes, risco e rabisco coisas, anoto tudo, estou fotografando o fluxo.
Seus olhos me registram também, me flagram, interrompo a escrita, você me fala breguices que me fazem sorrir e eu te jogo um beijo por cima de nossos cafés, um beijo azul, eu digo. Sua mão alcança meu rosto, te falo algumas breguices também e elas te fazem sorrir, sorriso bonito, aberto e iluminado, o tipo de sorriso que me faz não resistir. Sendo necessário o seu registro aqui nessas páginas.
Sabemos que temos que ir embora a qualquer momento. Mas estamos tão bem, tão leves aqui nesse lugar tão nosso. Eu te recito um pedaço do poema que está colado na porta de entrada da cafeteria “Me apaixonei no Aquários” e você ri e concorda, me dando um beijo no alto da minha cabeça bagunçada. Pagamos a conta e saímos. O vento frio nos acolhe e nos leva em direção ao âmago do calçadão. Passamos pela parada de ônibus, te falo de outros cafés, você me conta uma história, e abraçados nós nos despedimos dessa cidade tão nossa, a cada passo, a cada rua que passamos, nós nos despedimos.
Você pega da minha mão, fala que tudo mudou no momento em que chegamos e que agora podemos perceber que nós estamos diferentes, nos modificamos um pouco nessa cidade, e que cada vinda nossa é única. Eu concordo, é verdade, é verdade... Estamos diferentes dessa vez. Tudo tem um gosto ameno e doce que me lembra alcaçuz e jujubas coloridas. Gosto disso. Te dou um beijo demorado e você me chama de sua bonequinha, me deixando na ponta dos pés. As pessoas passam, os carros buzinam ao longe, nós esperamos o trem com nossas passagens já compradas.
Estamos indo, sabemos, mas com a promessa de que iremos retornar em breve à essa cidade caleidoscópica e poética, que é nossa. E que nos espera com suas pedras e calçamentos delineantemente acolhedores, cidadélicos.



Annabel Laurino;
para o meu melhor amigo, não só amigo, desde sempre.

 birdemetutopya:

Piergiorgio Branzi

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Les amants de la pluie

Como não podia ser diferente, o céu está despencando água lá fora nesse exato momento. O mesmo céu que anunciava chuva quando você foi embora, pisando no chão de uma rua encharcada e com poças d’água que refletiam as luzes douradas dos postes de luz, luzes solitárias e dançantes. O céu que agora enxuga-se de pingos sinfônicos é o mesmo que testemunhou tua partida, acenando-me ao longe, enviando no ar beijos que me alcançaram numa saudade que está aqui, presente.
Com um céu tisnado de cinza, brilhante e inflamado de sentimento londrino, com ruas úmidas e abraçadas por uma chuva fraca e fina, nós caminhamos. Flaneuriamos, costurando calçadas com os nossos passos titubeantes e frenéticos, alegres e sonhadores, dividindo conversas, mordiscando nuvens imaginárias. Foi assim que caminhamos pelas ruas, braços dados, cúmplices apaixonados escondidos pelo seu guarda chuva que carregavas em uma das mãos, a mesma que, quando não ocupada, afaga meu rosto desanuviando pensamentos ruins.
Te falo de Flâneur. No teu ouvido eu digo palavras em francês e tu sorri colorido, refrescando os dias carregados. Te trago nos braços uma bagagem de literatura, parafraseio histórias, te conto dos meus avós e quando menos espero, te vejo compartilhando comigo minhas memórias, minhas lembranças e em meio a uma das tuas lágrimas frescas eu vejo meu rosto refletido nos teus olhos transbordantes de uma sinceridade luminosa.
Somos abençoados, sei disso quando ao te abraçar, com o rosto colado no teu peito, sinto teu coração disparado a me anunciar aquilo que nem teus braços conseguem me dizer. Não são culpa deles, dos teus braços, pois nem meus olhos te dizem tudo o que eu gostaria que eles dissessem. Nem meus braços, meus sorrisos, meus dedinhos inquietos e minhas palavras pausadas em ósculos estalantes, meus bilhetes ou minhas cartas ou meus textos, nenhum deles conseguem te dizer aquilo que no peito está contido junto ao titubear frenético de um coração diletante.
Os cantos dos meus lábios te agradecem por teres feito tantas cócegas neles nos últimos dias. E sorrio, dou risada, riso bom, riso doce, riso que só tu tens me feito dar. Aliás, tens feito muitas coisas. É você quem trouxe a França novamente pra minha vida, de repente a Zaz não para de tocar aqui na minha caixinha azul e todas as baguetes, madeleines, Notre Dame e Point Zero se fizeram presente novamente, até mesmo a Beauvoir e o próprio Hemingway vieram me visitar. É você quem tem colorido os dias, feito o céu chover todo multicolorido, multifacetado de alegrias esculpidas em pequeninos pingos gelados que explodem no meu telhado, ribombando felicidade açucarada e azul.
Sento diante dessa máquina e a mesma boca que tem tantas coisas pra te dizer, é a boca que dita ordens a esses dedos inquietos que querem te escrever, te contar, te mostrar coisas, te delinear as matizes e conotações tão belas que estão contidas na minha mente que não podes ver, mas sabes que quero que conheças. Sento diante dessa máquina e te escrevo, te escrevo numa pressa sem fim, te escrevo palavras que com a impetuosidade que apenas o Louvre poderia ter, mostram-se sinceras e verdadeiras. Até mesmo nas entrelinhas, nas linhas imaginárias e nas não imaginárias, nas com marcas de batom vermelho e nas sem marca alguma, pois apenas são.
Como não podia ser diferente, eu te escrevo no meio de um temporal que promete ainda mais chuva. Como não podia ser diferente eu te escrevo com os dedos quentes por terem acabado de segurar uma caneca de café. Ah, o café! A analogia perfeita... Quero beber desse café, até a ultima gota, quero esse café forte, quero esses dias cinzas mais vezes. Chuva e arco-íris, literatura e música,  Deus e a eternidade gloriosa em luz, tudo num universo dissonante que anunciará coisas boas, perfeitas e agradáveis. Quero tudo, quero já. Quero a chuva nossa de todos os dias, quero os ósculos sem fim. Quero us.
Arcoirieiraremos.




Annabel Laurino


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