Isso não é Paris, eu bem que o sei. Abro as janelas do meu
quarto e vejo o céu quase escurecido lá fora, vislumbro a cor amarronzada,
com pinceladas de um vermelho quente e o negrume que toma conta agora de todas
as árvores do quintal. Não é Paris, mas é algo bom e fico contente, gosto do
que vejo, gosto desse lugar, dessa cidade de pedras e água. Gosto do ar que
finalmente entra pelo quarto, esse ar gelado e perfumado que agosto trás, esse
agosto que recém chegou. Dentro das formas e nuances perdidas lá fora, no mundo
que tange através da janela do meu quarto, dessa caixinha azul por onde me
perco e me encontro, eu gosto de imaginar que mesmo não sendo Paris, Hemingway
tinha razão quando disse que onde estava, no seu quarto, produziria suas
palavras sinceras, verdadeiras. Faço isso agora, dou vida as frases perdidas no
fundo da minha cabeça congestionada de divagações e sou sincera. Tenho que ser.
Ontem mesmo, por
acaso ou coincidência, tive uma conversa que há muito tempo reservei apenas para
as minhas próprias introspecções. E se não habitamos casas e nem lugares e nem
cidades e nem países e sim pessoas? E se não importa nada disso, esses tijolos
fabricados, essas argamassas endurecidas e essas paredes levantadas para nos
abrigarmos se não existíssemos tão fielmente e tão verdadeiramente, de alguma
forma, dentro de alguém? O que habita em mim? Eu habito assim em alguém? Pergunto-me
isso enquanto vejo a luz refletida de uma janela vizinha acesa e a televisão
acendendo e apagando enquanto alguém troca de canal. Eu sei quem habita em mim,
eu sei o que habita em mim, ‘tenho em mim todos os sonhos do mundo’. E onde me
faço morada?
É sexta feira e eu nem acredito. Se eu contasse que alguns
dias atrás tudo parecia um caos completo. Não que agora tudo esteja
completamente bem, mas as coisas caóticas tende por entrarem no eixo de alguma
maneira, e acho que é isso, as coisas estão entrando no eixo. Não quero ser
esperançosa, não, eu só quero pensar que tudo está bem, que tudo pode ficar
bem. Não é como se eu acreditasse nisso, é só que eu quero pensar nisso.
Você pode me perguntar, e qual é a diferença? Por que você
não quer acreditar, por que você não quer ter esperanças? Eu já tive tantas.
Tantas esperanças, fragmentadas e profundas, por muito tempo foram minhas
balinhas coloridas de açúcar. Hoje eu prefiro só pensar, pensar que tudo pode
ficar bem e o que tiver que ser vai ser, não importa. Eu prefiro dessa forma e
é assim que tem sido, é assim que tem funcionado.
Meu som favorito, sempre tem sido desde então, é o da cafeteira gorgolejando, aquele ronco produzindo o melhor
aroma do mundo, o de café recém-passado. Agora não que esse não seja mais o meu som favorito, mas possuo outros para a minha coleção, outros sons e aromas favoritos.
Tenho descoberto pequenos prazeres da
vida, pequeninos e pequenos grandes. Caminho pela cidade, compro discos de
queijo na livraria do centro, vejo rostos e pessoas, pessoas e seus rostos
cansados, ouço as buzinas desesperadas e vejo o desespero em olhos demasiado
tristes. Há uma beleza nisso, mesmo que quase melancólica, mesmo que seja
loucura admirar a tristeza assim, nos olhos de outrem. Mas não estou mais só,
divido qualquer coisa como um sorriso, uma música, uma conversa, as minhas
próprias mãos e eu inteira. Se isso me assusta? Muitíssimo. Muitíssimo e
latentemente. Ignoro, continuo. A vida é um frenesi sem fim de abocanhar e
morder as coisas mais doces, mais gostosas. Como receber beijos e flores azuis.
Nos dias de chuva eu pulo poças d’água dispostas nas
calçadas, me escondo embaixo de um guarda-chuva, vezes compartilhado, vezes sozinha,
agora mais do que nunca, sempre compartilhado. Vejo as folhas secas chafurdando na
lama, os jovens perdidos de botas compridas tentando desviar dos ônibus
ensandecidos e em movimento, sinto frio nas faces geladas e escondo o pescoço
no meu cachecol. Como diria o Caio, “na
ultima sexta feira eu tive certeza, devo mesmo estar enlouquecendo”. Nas sextas
feiras eu deixo para sentir saudade, chafurdo nas águas desconhecidas da qual
vou adentrando, com medo, e por isso penso que enlouqueço, mas por gosto porque eu quero e porque eu sei, eu me
sinto viva. Nessas saudades eu coloco uma musica para tocar, sento na janela do
quarto, vejo o céu de inverno, penso, repenso e trespenso, e repito quase
baixinho “Não é Paris, mas podia ser.”.
Escrevi um bilhete recentemente, o começo tem por inicio algo assim “Nas reentrâncias das minhas entrelinhas misteriosas, tu me
descobristes só, fizestes do meu tédio cotidiano o teu tédio também, me
vestistes das tuas cores e experimentasses do meu mundo. Se mesclados numa
singela mistura ambos os dois, veremos que nos enamoramos bem...”. Não irei
contar como prossegue, mas a pouco eu o terminei e sorri ao final.
Sexta feira. Não é Paris. Sexta feira agasalhada de saudade
junto desse céu que agora, no fim dessas palavras já se veste de negro. Ah,
sexta feira. Agosto. Quanta coisa mudou de um ano para cá, quanta coisa, quanta
coisa já não existe mais e hoje são apenas borrões e lapsos de memória
empoeirados num lugar distante dentro de mim. Hoje tudo faz sentido, hoje,
nessa sexta feira de saudade, eu penso em rosas azuis, em coisas novas.
Me vejo não mais refletida nos reflexos de um espelho onde
deixei minha face, não. Me vejo pululando, repercutindo e respirando através de cada
palavra que escrevo, cada ponto, cada vírgula, cada linha enviesada e cruzada
em si mesma numa reentrância mista de sentimentos que não escondo, que não
demonstro, que conto baixinho, assim, só para dizer no ouvido quente de quem procuro “Gosto tanto de você.”.
Annabel laurino