quinta-feira, 31 de outubro de 2013
sexta-feira, 25 de outubro de 2013
Rodoviária
A vida é uma rodoviária.
Percebi isso enquanto abria mais uma carteira de cigarros e olhava atenta para a mala de uma senhora sendo colocada dentro do ônibus. Pessoas, todas elas diferentes uma das outras e ao mesmo tão iguais. O que as distingue? O que nos torna iguais? O que nos faz tão parecidos e ao mesmo tempo tão... Característicos?
O lacre é firme e por isso demoro para abrir mas logo quando consigo coloco um maço na boca e acendo. O primeiro do dia é sempre forte e por isso sinto a garganta arder levemente e depois relaxar. Torpor, é por isso que procuro. O torpor da vida, algo que silencie o barulho, que estampe o caos, que relaxe os músculos tencionados de uma noite mal dormida.
Um casal abraçando-se chama minha atenção enquanto livro-me das cinzas. A moça segura o rosto do rapaz enquanto tenta explicar algo, baixinho, e parece calma enquanto chora, choro de entendimento, do tipo sem soluços, daqueles de despedida tranquila com direito a regresso. Mais um ônibus chega e o rapaz apruma sua mochila nas costas e se despede dela com um beijo demorado, contido. Por fim, ele acena e entra no ônibus. Ela acena de volta e chora um pouco até ir embora, sem olhar para trás.
Despedidas. A vida é cheia delas. Eu ainda não entendo porque elas existem. A primeira vez que tive que me despedir de algo foi de um gato que tive na infância, eu tinha 5 anos de idade e não consegui entender porque eu tinha que dar tchau para ele e ele não podia ser mais meu. Eu queria que ele fosse meu para sempre. Então com aquela idade eu fui apresentada à minha primeira despedida. Minha mãe disse que eu podia ter outros gatos, e eu tive, e depois tive que me despedir deles também. Entendi que qualquer coisa iria embora depois de algum tempo e logo eu não quis mais nenhum gato.
Um senhor de idade termina seu cigarro e olha fixo para mim, ele pisa no maço e estala os lábios e depois apruma os óculos de aros de tartaruga. Olhar firme, olhar cheio de rugas, olhos que já viram muito, vivenciaram muita coisa, olhos de quem tem calma na alma. Ele me olha como se soubesse exatamente o que eu estou pensando, como se pudesse ler os meus pensamentos e entendesse cada minuscula forma de vida dentro de mim, eu tão simples, ali sentada com um cigarro nos lábios e metade da vida dele percorrida. Ele me entende, ele me capta, por apenas nano segundos e eu me sinto lida, como um livro deve se sentir, depois disso ele não diz mais nada e vai embora, passos lentos, sem pressa.
Olho no relógio e são 8:15 da manhã. Não entendo nada e a mente ainda parece uma gaiola fechada tentando conter alguma coisa viva querendo se libertar. O coração parece morto, meio vivo, meio dormente. Eu cato meia duzia de olhares distraídos, gente para todo lado, gente chegando, gente indo, para algum ou de algum lugar.
O que todas elas levam além de suas bolsas e malas?
Recordações, saudade, memórias, dor, ansiedade, tristeza, felicidade... Isso as torna iguais, isso me torna iguais a todos eles, a todos, por todos os lados. É o que as despedidas nos geram, é o que a vida nos torna. Esse fluxo imenso de idas e vindas todos os dias, de surpresas inacabáveis e de despedidas inesperadas nos tornam seres sucumbidos de saudade, de memórias, de lembranças.
Do que é que eu sinto saudade? Do que é que eu me lembro? Do que eu me despeço?
Mais um ônibus chega, com os faróis ligados, praticamente inuteis numa manhã com o céu tão branco, cheio de luz branda. É uma tempestade que chega, vinda de longe, sabe-se lá de onde. Me vejo refletida no vidro sujo da rodoviária, os olhos turvos, feições minhas que desconheço, carrego um mundo desconhecido no peito e que ninguém vê e talvez nunca verá. Alguém passa em frente ao reflexo e por segundos eu sou só um borrão de luz refletido no vidro. Um borrão na vida, da vida. Um borrão rápido passando para algum lugar, despedindo-me talvez, ou saudando quem sabe.
A vida é dinâminca. Cheia de saudades.
Percebi isso enquanto abria mais uma carteira de cigarros e olhava atenta para a mala de uma senhora sendo colocada dentro do ônibus. Pessoas, todas elas diferentes uma das outras e ao mesmo tão iguais. O que as distingue? O que nos torna iguais? O que nos faz tão parecidos e ao mesmo tempo tão... Característicos?
O lacre é firme e por isso demoro para abrir mas logo quando consigo coloco um maço na boca e acendo. O primeiro do dia é sempre forte e por isso sinto a garganta arder levemente e depois relaxar. Torpor, é por isso que procuro. O torpor da vida, algo que silencie o barulho, que estampe o caos, que relaxe os músculos tencionados de uma noite mal dormida.
Um casal abraçando-se chama minha atenção enquanto livro-me das cinzas. A moça segura o rosto do rapaz enquanto tenta explicar algo, baixinho, e parece calma enquanto chora, choro de entendimento, do tipo sem soluços, daqueles de despedida tranquila com direito a regresso. Mais um ônibus chega e o rapaz apruma sua mochila nas costas e se despede dela com um beijo demorado, contido. Por fim, ele acena e entra no ônibus. Ela acena de volta e chora um pouco até ir embora, sem olhar para trás.
Despedidas. A vida é cheia delas. Eu ainda não entendo porque elas existem. A primeira vez que tive que me despedir de algo foi de um gato que tive na infância, eu tinha 5 anos de idade e não consegui entender porque eu tinha que dar tchau para ele e ele não podia ser mais meu. Eu queria que ele fosse meu para sempre. Então com aquela idade eu fui apresentada à minha primeira despedida. Minha mãe disse que eu podia ter outros gatos, e eu tive, e depois tive que me despedir deles também. Entendi que qualquer coisa iria embora depois de algum tempo e logo eu não quis mais nenhum gato.
Um senhor de idade termina seu cigarro e olha fixo para mim, ele pisa no maço e estala os lábios e depois apruma os óculos de aros de tartaruga. Olhar firme, olhar cheio de rugas, olhos que já viram muito, vivenciaram muita coisa, olhos de quem tem calma na alma. Ele me olha como se soubesse exatamente o que eu estou pensando, como se pudesse ler os meus pensamentos e entendesse cada minuscula forma de vida dentro de mim, eu tão simples, ali sentada com um cigarro nos lábios e metade da vida dele percorrida. Ele me entende, ele me capta, por apenas nano segundos e eu me sinto lida, como um livro deve se sentir, depois disso ele não diz mais nada e vai embora, passos lentos, sem pressa.
Olho no relógio e são 8:15 da manhã. Não entendo nada e a mente ainda parece uma gaiola fechada tentando conter alguma coisa viva querendo se libertar. O coração parece morto, meio vivo, meio dormente. Eu cato meia duzia de olhares distraídos, gente para todo lado, gente chegando, gente indo, para algum ou de algum lugar.
O que todas elas levam além de suas bolsas e malas?
Recordações, saudade, memórias, dor, ansiedade, tristeza, felicidade... Isso as torna iguais, isso me torna iguais a todos eles, a todos, por todos os lados. É o que as despedidas nos geram, é o que a vida nos torna. Esse fluxo imenso de idas e vindas todos os dias, de surpresas inacabáveis e de despedidas inesperadas nos tornam seres sucumbidos de saudade, de memórias, de lembranças.
Do que é que eu sinto saudade? Do que é que eu me lembro? Do que eu me despeço?
Mais um ônibus chega, com os faróis ligados, praticamente inuteis numa manhã com o céu tão branco, cheio de luz branda. É uma tempestade que chega, vinda de longe, sabe-se lá de onde. Me vejo refletida no vidro sujo da rodoviária, os olhos turvos, feições minhas que desconheço, carrego um mundo desconhecido no peito e que ninguém vê e talvez nunca verá. Alguém passa em frente ao reflexo e por segundos eu sou só um borrão de luz refletido no vidro. Um borrão na vida, da vida. Um borrão rápido passando para algum lugar, despedindo-me talvez, ou saudando quem sabe.
A vida é dinâminca. Cheia de saudades.
Annabel Laurino
quarta-feira, 23 de outubro de 2013
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"Só um rascunho, a folha está cheia deles. Riscos e palavras procurando um caminho. Só um caminho, a vida está cheia deles. Meu destino eu faço, traço passo a passo. Sou um rascunho. Pelo jeito a mão tremia, pelo jeito pretendia passar a limpo outro dia. Hoje estou só. Hoje estou tão cheio deles. Sou um rascunho procurando um caminho. Fica pra outro dia ser uma obra-prima que não fede, nem cheira. Não fode e nem sai de cima. Fica pra outra hora ser alguém importante. Se o que importa não importa, não dá nada ser irrelevante. Só um rascunho, um risco na mesa do bar. Carnaval sem samba. Outra praia, mesmo mar. Só um rascunho. Um torpedo de celular sem sinal na área, sem chance de chegar. Não fica pronto nunca. Não há final feliz. Não há razão pra desespero, ouça o que o silêncio diz. Não tem roteiro certo, não espere um ‘gran finale’. Tão pouco espere, amiga, que a minha voz se cale."
Esteban in Tchau Radar
segunda-feira, 21 de outubro de 2013
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“E no fundo, bem fundo, no fundo do fundo, lá ali onde você costuma ficar” — ela disse ao meu ouvido: “É onde eu me escondo, me sinto segura. É ali o meu melhor lugar.”
Andre Wade
quinta-feira, 17 de outubro de 2013
quarta-feira, 16 de outubro de 2013
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"Vou te ligar. Fico matutando apegado ao assunto o dia todo, como aquele último chiclete de esperança, que já está gasto e sem gosto, mas você continua insistindo em mascar, muito porque não sabe mais o que fazer com a própria língua e dentes. Você pode estar doente. Pode estar carente, com saudade, precisando me dizer uma coisa que nunca teve coragem de dizer. Pego o telefone e uma maçã. Talvez morder alguma fruta no meio do diálogo dê a impressão de que te ligar é um acontecimento casual, que estou nem aí na verdade, só estou fazendo hora porque a água do meu banho ainda não esquentou, e eu estava sem nada pra fazer de toda forma. “E aí, como vão as coisas?”, ensaio. Abocanho a maçã, mas não digito seus números. Quando crio coragem, o buraco na fruta exibe a carne ressecando e escurecendo de oxidação. Ligo, chama-chama e não atende. Me sinto enjoado. A secretária eletrônica me encaminha até a caixa postal. Deixo recado: – Juro, dessa vez estive muito perto de te esquecer."
Gabito Nunes
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"Qualquer que fosse o motivo, isso estava nos levando à loucura. Eu me sentia dividida em duas.[...]"
"- Nenhum de vocês assume o que sente, esse é o problema. Vocês têm tanto medo do que pode acontecer que estão lutando contra isso com unhas e dentes."
Belo Desastre pag. 127 e 128
***
Belo Desastre pag. 127 e 128
quinta-feira, 10 de outubro de 2013
Erase
Me pergunto se é possível fazer com que você volte a atuar na minha vida. Quero dizer, de verdade, a pegar o seu papel de volta com o diretor e os produtores do script e roteiro. Eu mesma dou a maior força. Vai entrando e exigindo seu papel principal de volta, sem nem querer saber, deixa isso de ser coadjuvante, isso não é pra você meu bem. Qualquer pessoa sã que desfrute de um mínimo de inteligência e te veja ao meu lado sabe que o seu papel na minha vida não é assim de poucas falas e poucas cenas.
Foi por isso que acordei vendo aquele filme que assistimos juntos uma certa vez e com uma vontade louca de te ligar, de me jogar sobre o telefone e discar logo o seu número. "Estou urgente de você.". Eu diria. Mas pensando bem, não seria assim uma frase de efeito tão boa, algo que aquela mulher vulgar no filme falaria. Não quero parecer vulgar, quero parecer com saudades. Então repenso, solto o telefone, me remoo de vontade e volto a fitar o filme séria, calada.
De toda forma, é a mais pura verdade que me vale agora, que estou urgente até mesmo dos seus fios de cabelo até aquele seu jeito irritante de me tirar do sério.
Por que motivo mesmo é que você não volta?
Ah sim, a vida deu alguns retrocessos nos últimos tempos, nos dividiu ao meio de nós mesmos. Quem se importa? Eu me importo! É por isso que sinto falta todo domingo e tenho vontade de abrir um buraco no meio do parque só para que eu possa me jogar dentro e sair de lá só quando janeiro voltar limpinho com um novo ano.
Mas Ano Novo me lembra você. Janeiro também, verão, nós dois mortos de calor comendo sorvete no meu quarto e com o ventilador no máximo enquanto você tirava proveito dos meus vestidos coloridos.
Um outro planeta talvez? Levem-me para Marte, Saturno, Vênus, Lua, sei lá. Talvez lá não exista você e nem mais qualquer vestígio que me faça lembrar você. Mas o que eu faço com as lembranças encravadas no peito? As engulo.
É o que tenho feito desde que tudo isso me desestabilizou. Engolir e engolir, no more. E o tempo vem passando como se me arrastasse para qualquer caminho, que eu tenho trilhado sem nem perceber. É uma surpresa todos os acontecimentos e de repente eu só vou fazendo o que me mandam fazer e em outros momentos eu tomo as rédeas, eu violo os vícios, eu quebro as barreiras, eu jogo foras suas fotografias, digo que te esqueci, eu minto, eu me convenço, eu me desperto, me desespero. Mas depois eu me flagro te saudando de saudades, eu me interrogo, eu me distraio, eu me lembro.
Ultimamente ando desejando uma clínica médica como no filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. Apertar um botão e tudo seria esquecido prontamente.
Mas é então quando eu me lembro do final do filme, de como tudo não funcionou. E eu tenho novamente a vontade imensa de ter a oportunidade de apertar um maldito botão para te excluir imediatamente só para saber se com você, se dessa vez, iria funcionar.
Só que eu já sei a resposta. Eu já sei como tudo termina.
Foi por isso que acordei vendo aquele filme que assistimos juntos uma certa vez e com uma vontade louca de te ligar, de me jogar sobre o telefone e discar logo o seu número. "Estou urgente de você.". Eu diria. Mas pensando bem, não seria assim uma frase de efeito tão boa, algo que aquela mulher vulgar no filme falaria. Não quero parecer vulgar, quero parecer com saudades. Então repenso, solto o telefone, me remoo de vontade e volto a fitar o filme séria, calada.
De toda forma, é a mais pura verdade que me vale agora, que estou urgente até mesmo dos seus fios de cabelo até aquele seu jeito irritante de me tirar do sério.
Por que motivo mesmo é que você não volta?
Ah sim, a vida deu alguns retrocessos nos últimos tempos, nos dividiu ao meio de nós mesmos. Quem se importa? Eu me importo! É por isso que sinto falta todo domingo e tenho vontade de abrir um buraco no meio do parque só para que eu possa me jogar dentro e sair de lá só quando janeiro voltar limpinho com um novo ano.
Mas Ano Novo me lembra você. Janeiro também, verão, nós dois mortos de calor comendo sorvete no meu quarto e com o ventilador no máximo enquanto você tirava proveito dos meus vestidos coloridos.
Um outro planeta talvez? Levem-me para Marte, Saturno, Vênus, Lua, sei lá. Talvez lá não exista você e nem mais qualquer vestígio que me faça lembrar você. Mas o que eu faço com as lembranças encravadas no peito? As engulo.
É o que tenho feito desde que tudo isso me desestabilizou. Engolir e engolir, no more. E o tempo vem passando como se me arrastasse para qualquer caminho, que eu tenho trilhado sem nem perceber. É uma surpresa todos os acontecimentos e de repente eu só vou fazendo o que me mandam fazer e em outros momentos eu tomo as rédeas, eu violo os vícios, eu quebro as barreiras, eu jogo foras suas fotografias, digo que te esqueci, eu minto, eu me convenço, eu me desperto, me desespero. Mas depois eu me flagro te saudando de saudades, eu me interrogo, eu me distraio, eu me lembro.
Ultimamente ando desejando uma clínica médica como no filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. Apertar um botão e tudo seria esquecido prontamente.
Mas é então quando eu me lembro do final do filme, de como tudo não funcionou. E eu tenho novamente a vontade imensa de ter a oportunidade de apertar um maldito botão para te excluir imediatamente só para saber se com você, se dessa vez, iria funcionar.
Só que eu já sei a resposta. Eu já sei como tudo termina.
Annabel Laurino
sexta-feira, 4 de outubro de 2013
Caleidoscópica - Parte 2 de A Arte da Contemplação
Acordo num solavanco. Abro os olhos. É instintivo.
Foi um sonho ou foi uma lembrança, não sei ao certo distinguir mas o rosto familiar estava lá e acordo agora com os olhos abertos de surpresa, pavor, medo, doloridas lembranças que nunca existiram mas me assolam forte. A cama quente e o corpo suado, procuro o copo d'água que está sempre ao lado da cama e bebo a água, quase engasgo e depois deito novamente e na procura para não me sentir mais só eu procuro a mim mesma dentro do emaranhado de cobertas e abraço qualquer coisa minha, como meu estomago, minhas pernas, acalmo meus braços e digo "está tudo bem, foi só um sonho.".
Acordar é sempre tão difícil. Acordar depois que ele foi embora é sempre tão... Difícil.
Não foi só um sonho, eu sei que não foi. Duas noites seguidas com o mesmo rosto familiar, os mesmos lugares estranhos, a cidade acessa numa confusão. A beautiful Mess. É a minha mente me tratando como refém e eu nunca descanso, nem mesmo quando acordo, como agora. As lembranças do que sonhei ficam em mim durante todo o dia, se pelo menos elas acabassem quando o sonho termina e eu só sentisse a injeção delas durante e não sendo forçada a senti-las até mesmo depois.
Saio da cama e calço os sapatos, visto uma camisa grande, aquela camisa grande de flanela vermelha que era dele e que foi esquecida por aqui, esquecida como tudo nesse apartamento, inclusive eu.
Quinta-feira. Quinta-feira são dias ruins, vai ver é isso. Anoto mentalmente. Quinta-feira são dias do mal.
E é aqui que me encontro agora, te escrevendo palavras a solta desde que me tornei lucida após meus sonhos congestionados, esvaziando a cabeça, acalmando o peito. Sei que você não se importa que eu te diga tudo isso, você é meu amigo e não como todos os outros. Eu sei que você me ouve e me consola, você vai entender. Não dirá nada, mas ponderadamente vai me dizer que foi um sonho e que a vida é aqui e agora, tudo bem, está tudo bem.
Sou desconfiada e me pergunto, está mesmo? Está mesmo tudo bem? É normal isso depois de tanto tempo? Se eu ligasse para minha mãe agora mesmo ela diria que eu preciso de um chá quente e talvez um paracetamol, uma dose de sol, estou muito branca, que estou sofrendo de uma crise depressiva só preciso aceitar que a vida é dinâmica, tudo se encaixará. Ah esses psicoterapeutas e suas soluções de fast-food. Já estou transbordando de soluções. Preciso de efetivas.
Então escolho o mais sensato a se fazer e a abro a janela, a unica janela do meu minusculo lar, a de frente para a cama e deixo o ar entrar. Pego um pão e faço uma torrada e depois faço um café e sinto que a vida vai começar ou que pelo menos o dia vai começar. Mas o dia já começou faz algumas horas, já é à tarde e eu sinto mais uma vez que estou atrasada para tudo. Que eles são mais rápidos do que a minha lerdeza para digerir a vida.
Tudo bem, amanhã é sexta-feira, amanhã eu acordo cedo, vou a feira, compro comida para o gato, limpo a casa, levo as roupas para lavar e quem sabe gasto algum dinheiro naquelas rapadinhas que me prometem a sorte grande de ganhar uma bolada de trezentos mil reais. Vai ver pode ser uma sexta-feira interessante.
Caminho pelo espaço, desvio das caixas, as caixas com o nome dele e que ainda não entreguei. Não entreguei e nem ao menos sei quando irei entregar. Não importa. Nada mais tem tanta importância assim, é por isso que não entrego. Deixo estar.
Faço cafuné no Camafeu, o gato. Ele não liga muito e continua a ficar deitado preguiçosamente na soleira da janela, sua atividade mais importante do dia enquanto fica observando o aquário de peixes do vizinho em exposição na janela. Pelo menos ele é atento aos seus sonhos. Gato esperto.
Então eu entro no meu paradigma. Bem, sair então. Pego a bolsa, cato as chaves dentro de uma tigela de cereal esquecida por cima da mesa e encontro cinco reais dentro de um jeans abandonado no sofá, um jeans que não é meu. E saio, desço as escadas, abro a porta e lá está a rua e todas as pessoas. Alguém me cumprimenta, retribuo com um aceno com a cabeça, não presto a atenção. Acendo um cigarro. Caminho e caminho, a bolsa dependurada no ombro, é como nadar num oceano sem fim e não ter uma direção que eu possa seguir, eu só vou indo e vou deixando ser levada. Passo por lojas, pessoas, farmácias, placas de construções, pedreiros, é um barulho sem descanso, britadeiras à todo escândalo e senhores de idade reclamando na fila do banco.
Eu não me prendo aos pontos de exclamações a minha volta, as coisas gritantes como o que as pessoas estão vestindo hoje, qual é a ultima tendência, veja só aquele casal gay atravessando a rua ou 'o que é aquilo no rosto daquele cara, uma tatuagem?'. Me perco é nos detalhes, nas chaminés das casas, nos prédios e arranha-céus, nas buzinas, nas conversas ao telefone, nas fumaças de cigarro, as xícaras de café abandonadas nos botecos do centro, os feirantes com suas solas de sapato gastos. Eu sou uma intrusa, eu me interrompo no meio. Eu os observo e ele nem notam, estão aflitos em sobreviver à mais um dia de vida, de rotina pura, de gritante e desesperada fome de mais um dia.
Chego até ao cais da cidade e me sento perto do mar. Tem cheiro de peixe porque alguns pescadores cortam e vendem seus pescados de manhã, o cheiro é fresco e se mescla com a tarde de sol baixo e a maresia. É confortante e olhando para o lado vejo que não sou só eu que penso isso, há outras pessoas por aqui, grupos de adolescentes e garotos com um violão desafinado. Fumo enquanto penso e não esqueço de nada, a cabeça é como filtro onde mantenho viva todas as memórias de um tempo que deixou de existir. Hoje é dia de melancolia, percebo.
Me deixo ser levada para o passado como naturalmente sou levada a cair no sono ou a piscar os olhos, ações naturais de mim mesma, mas que não doem, não machucam como essa faz. E lá está ele com a garrafa de cerveja na mão me dizendo que iria embora, que o sonho tinha acabado. Foi naquele momento que passei a odiá-lo? Não, não, eu lembro que já o odiava antes, mas antes sempre era amor mais do que ódio e por isso durava, claro que durava. Dessa vez foi só ódio, foi só eu mesma gritando para que ele fosse embora e levasse consigo tudo que era dele. Ele não levou e uma semana depois eu ainda usava sua camisa de flanelas e colocava para tocar a mesma musica.
Não sinto ódio até hoje. E isso já faz seis meses.
É entendiante ser tão só as vezes, porque nesses momentos de raiva ou de pura melancolia eu queria confessar para alguém que tudo é uma merda do caramba e que sim, todos nós somos solitários, que precisamos de algo a mais e por não encontrarmos nós nos apaixonamos, bebemos, fumamos, temos filhos e sei lá, morremos sem lembrarmos porque estivemos ou o que nos faz ou fez feliz. É nessas horas que eu queria admitir que vezenquando eu tenho vontade de chorar.
Desisto do drama. Levanto e saio caminhando e vejo uma pichação na base de um lampião do cais. "Estão todos surdos.". É a coisa mais inteligente que li hoje e por isso fico lendo a frase repetidas vezes. Concluo que estou surda também. Estamos todos surdos. É profundo e eu quero abraçar quem deixou essa marca por aqui. Pego a máquina de dentro da bolsa e registro o que vejo.
Se você ainda está lendo isso você pode adivinhar para onde eu vou agora. Está certo, eu vou para aquele lugar. Eu vou me sentir mais caleidoscópica do que nunca lá, no topo. Registrar mentalmente as transmutações inervosas de um mundo decadente. Surdo.
Chego perto do prédio, é velho, é feio. Abro o portão e cumprimento um grupo de moradores que já me conhecem, o cheiro de meia velha é forte. Subo as escadas, passo por roupas secando em portas abertas, cenas que me corrompem, flashs de vidas esquecidas. Todos aqui são tão intrusos quanto eu.
Piso no ultimo degrau, no 75° degrau, quase sem folêgo, retomo a compostura e como se com sede caminho até a porta em pedaços, já aberta. Entro como um gato entraria por uma fresta de uma casa a noite e vou para a janela, horário perfeito, um sol brilhando ao fundo me cumprimenta.
Não faço ideia de por onde ele deve estar a essa hora da tarde, no trabalho, na faculdade, em outro país, em outra cama, com a nova namorada, beijando a ela como beijava a mim e depois dizendo pra ela que nunca foi tão bom como dizia que nunca tinha sido tão bom comigo. Imagino tudo isso num frenesi, minha cabeça parece que vai rachar. Gasto oito horas do meu dia pensando nisso e quando percebo já se passaram mais 8 e assim vou indo.
No prédio à frente do meu as janelas estão todas abertas. Uma em especial possui um individuo que me observa e sua fumaça de cigarro espirala pelo ar como uma chaminé, e sei em silêncio que ele esperava por mim. Não sei se ele sorri ou se parece sério, mas ele não sorriria, ele não é do tipo de pessoa com sorriso fácil, por isso eu sei que ele só está me olhando. No pescoço eu consigo ver sua tatuagem negra e então ele levanta a mão e me acena.
Encerro meus registros e acendo outro cigarro. A vida numa mutação assídua lá fora enquanto me visto neutra, aqui dentro. Por quando tempo posso me esconder? Por quanto tempo posso fingir que o barco não irá virar? Por quanto tempo até você me descobrir?
Foi um sonho ou foi uma lembrança, não sei ao certo distinguir mas o rosto familiar estava lá e acordo agora com os olhos abertos de surpresa, pavor, medo, doloridas lembranças que nunca existiram mas me assolam forte. A cama quente e o corpo suado, procuro o copo d'água que está sempre ao lado da cama e bebo a água, quase engasgo e depois deito novamente e na procura para não me sentir mais só eu procuro a mim mesma dentro do emaranhado de cobertas e abraço qualquer coisa minha, como meu estomago, minhas pernas, acalmo meus braços e digo "está tudo bem, foi só um sonho.".
Acordar é sempre tão difícil. Acordar depois que ele foi embora é sempre tão... Difícil.
Não foi só um sonho, eu sei que não foi. Duas noites seguidas com o mesmo rosto familiar, os mesmos lugares estranhos, a cidade acessa numa confusão. A beautiful Mess. É a minha mente me tratando como refém e eu nunca descanso, nem mesmo quando acordo, como agora. As lembranças do que sonhei ficam em mim durante todo o dia, se pelo menos elas acabassem quando o sonho termina e eu só sentisse a injeção delas durante e não sendo forçada a senti-las até mesmo depois.
Saio da cama e calço os sapatos, visto uma camisa grande, aquela camisa grande de flanela vermelha que era dele e que foi esquecida por aqui, esquecida como tudo nesse apartamento, inclusive eu.
Quinta-feira. Quinta-feira são dias ruins, vai ver é isso. Anoto mentalmente. Quinta-feira são dias do mal.
E é aqui que me encontro agora, te escrevendo palavras a solta desde que me tornei lucida após meus sonhos congestionados, esvaziando a cabeça, acalmando o peito. Sei que você não se importa que eu te diga tudo isso, você é meu amigo e não como todos os outros. Eu sei que você me ouve e me consola, você vai entender. Não dirá nada, mas ponderadamente vai me dizer que foi um sonho e que a vida é aqui e agora, tudo bem, está tudo bem.
Sou desconfiada e me pergunto, está mesmo? Está mesmo tudo bem? É normal isso depois de tanto tempo? Se eu ligasse para minha mãe agora mesmo ela diria que eu preciso de um chá quente e talvez um paracetamol, uma dose de sol, estou muito branca, que estou sofrendo de uma crise depressiva só preciso aceitar que a vida é dinâmica, tudo se encaixará. Ah esses psicoterapeutas e suas soluções de fast-food. Já estou transbordando de soluções. Preciso de efetivas.
Então escolho o mais sensato a se fazer e a abro a janela, a unica janela do meu minusculo lar, a de frente para a cama e deixo o ar entrar. Pego um pão e faço uma torrada e depois faço um café e sinto que a vida vai começar ou que pelo menos o dia vai começar. Mas o dia já começou faz algumas horas, já é à tarde e eu sinto mais uma vez que estou atrasada para tudo. Que eles são mais rápidos do que a minha lerdeza para digerir a vida.
Tudo bem, amanhã é sexta-feira, amanhã eu acordo cedo, vou a feira, compro comida para o gato, limpo a casa, levo as roupas para lavar e quem sabe gasto algum dinheiro naquelas rapadinhas que me prometem a sorte grande de ganhar uma bolada de trezentos mil reais. Vai ver pode ser uma sexta-feira interessante.
Caminho pelo espaço, desvio das caixas, as caixas com o nome dele e que ainda não entreguei. Não entreguei e nem ao menos sei quando irei entregar. Não importa. Nada mais tem tanta importância assim, é por isso que não entrego. Deixo estar.
Faço cafuné no Camafeu, o gato. Ele não liga muito e continua a ficar deitado preguiçosamente na soleira da janela, sua atividade mais importante do dia enquanto fica observando o aquário de peixes do vizinho em exposição na janela. Pelo menos ele é atento aos seus sonhos. Gato esperto.
Então eu entro no meu paradigma. Bem, sair então. Pego a bolsa, cato as chaves dentro de uma tigela de cereal esquecida por cima da mesa e encontro cinco reais dentro de um jeans abandonado no sofá, um jeans que não é meu. E saio, desço as escadas, abro a porta e lá está a rua e todas as pessoas. Alguém me cumprimenta, retribuo com um aceno com a cabeça, não presto a atenção. Acendo um cigarro. Caminho e caminho, a bolsa dependurada no ombro, é como nadar num oceano sem fim e não ter uma direção que eu possa seguir, eu só vou indo e vou deixando ser levada. Passo por lojas, pessoas, farmácias, placas de construções, pedreiros, é um barulho sem descanso, britadeiras à todo escândalo e senhores de idade reclamando na fila do banco.
Eu não me prendo aos pontos de exclamações a minha volta, as coisas gritantes como o que as pessoas estão vestindo hoje, qual é a ultima tendência, veja só aquele casal gay atravessando a rua ou 'o que é aquilo no rosto daquele cara, uma tatuagem?'. Me perco é nos detalhes, nas chaminés das casas, nos prédios e arranha-céus, nas buzinas, nas conversas ao telefone, nas fumaças de cigarro, as xícaras de café abandonadas nos botecos do centro, os feirantes com suas solas de sapato gastos. Eu sou uma intrusa, eu me interrompo no meio. Eu os observo e ele nem notam, estão aflitos em sobreviver à mais um dia de vida, de rotina pura, de gritante e desesperada fome de mais um dia.
Chego até ao cais da cidade e me sento perto do mar. Tem cheiro de peixe porque alguns pescadores cortam e vendem seus pescados de manhã, o cheiro é fresco e se mescla com a tarde de sol baixo e a maresia. É confortante e olhando para o lado vejo que não sou só eu que penso isso, há outras pessoas por aqui, grupos de adolescentes e garotos com um violão desafinado. Fumo enquanto penso e não esqueço de nada, a cabeça é como filtro onde mantenho viva todas as memórias de um tempo que deixou de existir. Hoje é dia de melancolia, percebo.
Me deixo ser levada para o passado como naturalmente sou levada a cair no sono ou a piscar os olhos, ações naturais de mim mesma, mas que não doem, não machucam como essa faz. E lá está ele com a garrafa de cerveja na mão me dizendo que iria embora, que o sonho tinha acabado. Foi naquele momento que passei a odiá-lo? Não, não, eu lembro que já o odiava antes, mas antes sempre era amor mais do que ódio e por isso durava, claro que durava. Dessa vez foi só ódio, foi só eu mesma gritando para que ele fosse embora e levasse consigo tudo que era dele. Ele não levou e uma semana depois eu ainda usava sua camisa de flanelas e colocava para tocar a mesma musica.
Não sinto ódio até hoje. E isso já faz seis meses.
É entendiante ser tão só as vezes, porque nesses momentos de raiva ou de pura melancolia eu queria confessar para alguém que tudo é uma merda do caramba e que sim, todos nós somos solitários, que precisamos de algo a mais e por não encontrarmos nós nos apaixonamos, bebemos, fumamos, temos filhos e sei lá, morremos sem lembrarmos porque estivemos ou o que nos faz ou fez feliz. É nessas horas que eu queria admitir que vezenquando eu tenho vontade de chorar.
Desisto do drama. Levanto e saio caminhando e vejo uma pichação na base de um lampião do cais. "Estão todos surdos.". É a coisa mais inteligente que li hoje e por isso fico lendo a frase repetidas vezes. Concluo que estou surda também. Estamos todos surdos. É profundo e eu quero abraçar quem deixou essa marca por aqui. Pego a máquina de dentro da bolsa e registro o que vejo.
Se você ainda está lendo isso você pode adivinhar para onde eu vou agora. Está certo, eu vou para aquele lugar. Eu vou me sentir mais caleidoscópica do que nunca lá, no topo. Registrar mentalmente as transmutações inervosas de um mundo decadente. Surdo.
Chego perto do prédio, é velho, é feio. Abro o portão e cumprimento um grupo de moradores que já me conhecem, o cheiro de meia velha é forte. Subo as escadas, passo por roupas secando em portas abertas, cenas que me corrompem, flashs de vidas esquecidas. Todos aqui são tão intrusos quanto eu.
Piso no ultimo degrau, no 75° degrau, quase sem folêgo, retomo a compostura e como se com sede caminho até a porta em pedaços, já aberta. Entro como um gato entraria por uma fresta de uma casa a noite e vou para a janela, horário perfeito, um sol brilhando ao fundo me cumprimenta.
Não faço ideia de por onde ele deve estar a essa hora da tarde, no trabalho, na faculdade, em outro país, em outra cama, com a nova namorada, beijando a ela como beijava a mim e depois dizendo pra ela que nunca foi tão bom como dizia que nunca tinha sido tão bom comigo. Imagino tudo isso num frenesi, minha cabeça parece que vai rachar. Gasto oito horas do meu dia pensando nisso e quando percebo já se passaram mais 8 e assim vou indo.
No prédio à frente do meu as janelas estão todas abertas. Uma em especial possui um individuo que me observa e sua fumaça de cigarro espirala pelo ar como uma chaminé, e sei em silêncio que ele esperava por mim. Não sei se ele sorri ou se parece sério, mas ele não sorriria, ele não é do tipo de pessoa com sorriso fácil, por isso eu sei que ele só está me olhando. No pescoço eu consigo ver sua tatuagem negra e então ele levanta a mão e me acena.
Encerro meus registros e acendo outro cigarro. A vida numa mutação assídua lá fora enquanto me visto neutra, aqui dentro. Por quando tempo posso me esconder? Por quanto tempo posso fingir que o barco não irá virar? Por quanto tempo até você me descobrir?
Annabel Laurino
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