quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Adaga


    Então, – como sempre começa uma história horrível e trágica – ela empurrou a adaga. Simples. Apertou firme contra o próprio peito, sem sentir dor. Tamanha dor já fora no inicio, agora, espalhada pelo seu corpo, tomando-a por inteiro, a dor era quase uma sensação de uma coberta cálida e venenosa, a tapando inteiramente.
    Lágrimas não sobrepujavam para fora de seus pequeninos olhos brilhantes, nem mesmo uma gotícula úmida. Nada. Eram vazios e não capturados, vagos, meio caídos, como em repouso, duas orbitas brilhantes, sem sombra de vida, brilhavam por pura fatalidade de um brilho seu.
    Ela continuou ali, parada, no frio, apontando a adaga gélida e fina, afiada e dura, contra seu próprio pequeno corpo macio.
    Ela pensava em milhares de coisas.
    Por que estava fazendo isso afinal?
    Partir era, na sua opinião, uma coisa muito tola de se fazer.
    Na verdade, nessa hora da história, deve-se dizer que não existe adaga alguma, só para esclarecer. Ela não era louca, não iria afinar o próprio corpo na esperança mutua de trazê-lo de volta. Não iria adiantar.
   A adaga fria, fina, afiada e dura, é só algo vago que preciso dar nome, um conjunto de sentimentos, uma situação venerosa, o arrebatamento da alma da própria moça.
   Mas é verdade que estava frio. E que ela sofria, embora dor alguma sentisse e nenhuma lágrima escapulisse brilhante para fora de seus olhos.
    Seus lábios crisparam-se, secos em vida. Ela, que tanto esperava da vida, agora não esperava mais nada. Sentou-se na areia sentindo os grãos quentes e tostados do sol arranharem em sua pele, sentiu uma brisa vinda de longe cortejar seu rosto e depois não sentia quase nada. Somente o sol, o dia, a movimentação das cores, as conotações das luzes e o movimento do ar, das nuvens acima e os pássaros voando ao longe.
    Havia tanta gente, para todo lado que se olhasse. Gente aqui, gente ali. Ela se perguntou se havia ele no meio de tanta gente. Seu coração frágil ribombou no peito e depois saracoteou na esperança cálida querendo fervilhar no mesmo instante.
    Não, repreendeu-se.
    Tirou uma foto da bolsa, a foto dele. Queria chorar, mas lágrimas não lhe vinham, assim como muitas coisas já não lhe vinham mais.
    Como palavras, ou como doces e alegria. Nada vinha. Sentia-se a espera de coisas que jamais iriam chegar. Coisas como os planos que fizera com ele.
    Ah sim, ela havia feito muitos planos. E alguns ela nunca comentou com ninguém. São aqueles planos que se faz quando se está só. Deitada na cama, mexendo nos cabelos bagunçados e escutando o som da chuva, ela pensava e imaginava os dois juntos, os dias perfeitos, as tardes languidas, as coisas certas, as brigas que depois iriam se acertar, o fim do incerto e da insegurança sem fim, os dias em que passariam rápido deixando rastros do quero mais.
    Milhares de coisas assomaram em sua mente enquanto segurava aquela foto. Droga, ele nem sabia daquela foto.
    Mas ela a tinha.
    A tinha como milhares de coisas que possuía e ele não sabia. Milhares delas, fragmentos de sentimentos dolorosos que nunca chegou a lhe contar, sonhos e seus planos, e alguns segredos de cá e de lá.
    De repente uma coisa bruta se chocou contra seu peito e uma avalanche de emoções lhe cobriu como uma nevoa embaçada e mórbida.
    Pronto.
    O medo, a solidão e o desespero lhe preencheram até as solas dos pequenos pés.
    Estava perdendo-o, para a vida, para os caminhos do destino, para a fatalidade do tempo e do momento, para tudo e para seja lá mais o que que tivesse uma força tão maior do que ela pudesse citar.
    Dor e magoa.
    Chorou.
    Sentiu as lágrimas sendo arrancadas a força e de repente a ardência em seus olhos lhe fez chorar mais e mais e tão mais não chorava com força, chorava entregue. Entregava-se em cada soluço, em cada pedaço que sentia das lembranças sendo mortas a facadas lentas na sua mente fresca.
    Tudo que ela pensava era nos dois juntos. Nos momentos bons, nos sentidos, na ausência, na saudade do seu corpo, do seu calor, dos seus pelos, seu rosto, seu gosto, tudo lhe arfava fortemente, a destruindo.
Então a adaga estava lá, girava contra seu pequeno corpo e a dor era insuportável.
Mais lagrimas tremidas. Mais café quente e amargo. Mais dor, mais saudade. Mais um fim.

Annabel Laurino.

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