Você dormiu, sem vigilância alguma. Eu espiei você, gravei seus detalhes, entrei na sua mente sorrateiramente e descobri seus sonhos. Tudo isso enquanto você dormia, mas você nem viu, nem percebeu. Você dormia. E eu fiquei ali, no escuro, querendo alguém para abraçar. Fiquei ali no escuro querendo um calor humano para envolver o meu calor humano também. Fiquei ali ruminando formas de te acordar e te trazer daquele sono tão tranquilo, tão sereno, mas que no fundo eu invejava.
Chorei no escuro do quarto, perdida entre as quatro paredes simétricas e perfeitas de cor azul. Chorei sobre aquele colchão que já tinha a forma do meu corpo desenhada no canto, próximo a parede. Chorei lágrimas duras e frias, sem você ver. Porque você dormia. Você nem sabia, nem desconfiou, você não me vigiou mais.
Você não acordou nem mesmo quando eu abracei meu corpo e disse “eu preciso tanto, eu preciso tanto de um abraço agora, eu me sinto só, só nesse imenso quarto, nesse imenso azul, nessa condensação lenta que me desgasta, nessa coisa copiosa e dura em que me perco”. Você não acordou com os meus soluços, meus lamentos. Chorei por muito tempo, pedi paz, falei baixinho pedindo muita paz. Queria algo bem doce e depois sentir cheiro de alecrim, pensei em Paris, chorei mais um pouco e me senti só, mas depois o coração encontrou alento. E você dormia.
Nesse sono só eu fui me perdendo naquele escuro condensado daquele quarto tão simétrico e perfeito. Você nem percebeu. Você estava ali, deitado ao meu lado, ressonando baixo como um anjo perdido em sonhos, perdido em fábulas, perdido de mim, perdido em nós ou de nós mesmos, sem se quer acordar. Qualquer movimento brusco era incapaz de te tirar dali, daquele sono tão rarefeito. E por isso eu chorei, não existia o que eu pudesse fazer, eu só queria teu corpo, eu precisava de você inteiro e acordado, olhando nos meus olhos, os teus olhos tão limpos e claros e cheios de luz e cor, olhando para mim assim, bem aberto. Eu precisava do teu sexo, do teu abraço apertado, da tua mão enroscada nos meus cabelos, dos teus passeios com a boca sobre o meu ventre. Precisava das caminhadas de sol no domingo, do café amargo numa mesa perdida da cidade, de uma aventura cheia de Flâneur. De um ônibus para lugar nenhum, de um destino, de um rumo, um mergulho, uma direção, você e eu, nós dois, no escuro do teu quarto, sobre a claridade do meu, na luz ofuscante de uma manhã de sexta feira ou no final de uma segunda feira cheia de chuva, cheia de apagão. Eu precisava, eu precisava. Eu muito precisei.
E agora? E agora? A pergunta bate como um pingo de chuva que estivesse caindo sobre a minha cabeça. E agora? Esperamos a chuva parar, esperamos o dia amanhecer? Esperamos pelo sol? Here comes the sun...
Ou aceitamos? Aceitamos que o disco arranhou e que a vitrola perdeu a sua agulha. Aceitamos que a vida é assim, independente da musica, ela simplesmente toca, aceitamos o duro, no duro, nessa coisa chamada engolir em seco, sem piedade. Aceitamos o 'sem você e eu'. Corredores vazios, livros mofados, ônibus lotado, café frio, música ruim, gente estranha, tudo isso, sem você e eu. E sem as conversas, claro, longas e intermináveis, até as quatro no telefone. Meus pés roçando tuas pernas, minha boca pedindo pela tua, meu corpo pequeno vestido num pijama bobo, perdido no meio do teu quarto esperando você chegar de algum outro canto da casa. E tudo e tudo e nada e nada. E vamos indo, como quem há muito tempo já se esqueceu de que horas são.
Então você dormiu. Assim, como quem gradativamente vai caindo num lugar onde não se tem mais como sair. Você foi indo e eu fiquei aqui, puxando as cobertas sobre meu corpo, tentando a custo e a fio, a choro e desespero, salvar qualquer coisa como um sou de ser, de como era antes, desse desgastado nós.
Annabel Laurino