Já era noite lá
fora e jazia em meio às nuvens densas e cinzas de uma noite agonizante de julho
um frio cortante, de arranhar a pele. Aprumou-se na cama virando-se de barriga
para cima, olhando o teto branco. Lá em cima, no próprio teto, havia quatro estrelas
fluorescentes bem posicionadas. Não sabia o significado da posição das quatro
estrelinhas brilhando no breu do quarto, mas desconfiava que não haviam sido
postas ali por um motivo em vão.
Na janela, as
cortinas estavam abertas e pode ver o bafo do calor de dentro do quarto e a
umidade unindo-se com o frio de fora, em gotas de orvalho, de neblina,
gotejando no vidro gélido.
Passou a mão
embaixo do travesseiro e catou o cigarro, colocou-o na boca e quando ia acender
lembrou-se dela, do quanto odiava quando fumava. Desistiu da ideia. Guardou
o cigarro. Olhou para o lado e vislumbrou o rosto próximo ao seu, sereno
enquanto dormia.
Queria conter-se,
mas era impossível. Ela dormia de bruços, os braços em baixo do travesseiro
turquesa com flores de cerejeiras. Parecia que abraçava o travesseiro como sua
única salvação em meio a um pesadelo, ou apenas um sonho ruim. As sardas do
rosto iluminadas pelas luzes da cidade ainda acordada do lado de fora. O nariz,
uma bolinha branca em meio a um rosto longo, de maças salientes e um queixo
gordinho. Era adorável, pensou. Os braços meio roliços, com sardas alaranjadas
em meio a uma pele branquíssima. Aproximou-se lentamente, repousou o rosto
próximo a sua omoplata e beijou-a, subindo lentamente pela linha do pescoço,
não se contendo.
Ouviu-a resmungar e
virar o rosto para o outro lado, mas continuou, e procurou sua orelha em meio ao
emaranhado de cabelos crespos e fartos. Afastou as mechas e deu-lhe um beijo no
rosto. Ela abriu os olhos castanho amadeirados, confusa, o cenho franzido. Seu
nariz de bolinha arrebitando-se enquanto não entendia o porquê despertara. Até
que no fundo da mente a confusão passou e percebendo o que e quem lhe acordara,
irritou-se.
- Perdeu o sono, é?
- Perdi.
- E resolveu me acordar. – sentenciou irritada, virando-se
de barriga para cima, as cobertas destapando-a um pouco, mostrando a curvatura
dos seios.
- Na verdade eu só não resisti de te ver dormindo.
- Sim, e resolveu me acordar.
- É... – deitou-se de barriga para cima novamente, usando as
mãos para sustentar a cabeça, voltou a posição de antes, observando as estrelas
coladas no teto.
- Preocupado com algo?
- Não sei bem.
- Hum. Ta frio né?
- Quase nem sinto.
- Quer água?
- O que?
- Água.
- Não, obrigado.
Ela levantou-se sem
cubrir-se, no escuro do quarto pouquíssimo iluminado, saiu da cama e alcançou
na escrivaninha um copo de água. Ele olhou-a, nua, no meio do quarto, a pele
tão genuinamente branca como um pedaço de maçã suculenta. Parecia saída de
alguma pintura muito antiga. Piccasso, talvez. Os cabelos longos batendo na
cintura, de um castanho que por um tris não tornara-se ruivo. Bebeu da água com
sede e secou a boca com as costas da mão, soltando um suspiro de alivio, então
espiou pela janela e virou-se voltando para a cama.
Não sabia o quanto
ele a observava, mas ele ficou ali, olhando-a até que voltasse a se deitar. E
de súbito, talvez por um pequeno feixe de luz lá fora refletido e batido no seu
rosto, ela o flagrara.
- Que foi?
- Nada.
- Nada não, você
tava me olhando.
- Você é linda
sabia?
Se não estivesse
escuro a veria enrubescer nitidamente, e praguejou pela luz apagada, adorava
vê-la corar.
- Você também não é
nada mal. – disse ela jogando-se de volta para baixo das cobertas.
- Sabe, até alguns
dias atrás eu não pensava que isso podia acontecer.
- Bem, aconteceu não
é?
- É, mas e o seu
namorado?
- O que tem ele?
- Bem, o cara meio
que...
- Nós meio que
terminamos, tecnicamente ele...
- Meio?
[silêncio]
- Olha você não
gostaria de viajar?
- Viajar? Nanda, ta
louca?
- O que que tem,
podíamos fazer uma viajem para Fernando de Noronha. Seria incrível.
- Fernando de
Noronha?
- Não gosta?
- Até curto.
- Então, seria
incrível, podíamos pegar umas mochilas, pegávamos o carro do seu pai, seria
divertido.
- É, divertido...
Mas e o seu namorado Nanda?
- Pô Pedro, o que
tem ele?
- Sei lá...
Ela bufou impaciente
e aproximou-se dele beijando-lhe o peito e, rápido e bruscamente, beijando-lhe
a boca. Então beijou-o ainda mais. Sentia o gosto do brilho labial de cereja
dela, já impregnado na boca. Abraçou-a com força, apertando-a para próximo de
si e retribuiu o beijo. Era forte, daqueles beijos que parece que ficam retidos
dentro da gente todo tipo de magoa, todo tipo de coisas que a gente quer mas
sabe que não pode ter, então para não reprimir é no beijo que ofuscasse toda a
vontade. Foi mordendo-o o lábio que puxou-a ainda mais sobre si, afastando seus
cabelos com cheiro de chocolate para longe e beijando-a. A ideia era essa. E
não fora desde o começo?
Foi na cafeteria
de esquina, a viu lá no fundo, mas ultimas mesas com um livro aberto a sua
frente, bizarro e genial ao mesmo tempo, sobre a máquina do tempo, vestia uma
regata preta de uma banda louca, a pele de leite, os cabelos cacheados e
bagunçados, o lápis de olho azul turquesa e o anel de joana no dedo mindinho.
Teve vontade de morde-la ali mesmo. É claro que ela nem sabia quem ele era,
assim como até cinco segundos atrás ele não sabia quem ela era. Mas quem se
importa? Aproximou-se da mesa onde ela estava e perguntou sobre o livro, o
coração quase saindo da boca quando a viu morder o lábio carnudo, prender a
mecha dos cabelos atrás da orelha e toda confiante explicar toda a teoria da
relatividade de Einsten e o fator passado e futuro, coisas que até então ele
não estava nem um pouco afim de saber. Perguntou seu nome. “Fernanda, mas todo
mundo me chama de Nanda”. Ah sim, Nanda. Teve vontade de beijar Nanda ali
mesmo. Então ela disse, “puxa uma cadeira vai, não mordo”, e ele teve vontade
de morde-la ainda mais.
Nanda afastou-se,
as sardas parecendo dançar no rosto pelos feixes de luz que entravam no quarto.
- Gosto de você,
Pedro.
- Também gosto de
você.
- Ótimo.
“Ótimo”. Ela sempre
dizia ótimo, como se fosse um arremate em uma conversa solta. “Eu curto Pink
Floyd” “E eu prefiro Legião, mil vezes.” “Ótimo”. Era meio que costume seu,
mania. Assim como a sua mania de alongar o corpo todo depois de sair do banho,
ou quando usava saia e ficava o tempo todo olhando as pernas no espelho
observando se, na esperança, não haviam diminuído.
- Ótimo Nanda?
- Sei lá.
- Sei lá?
- Pedro, shh.
- O que houve?
Mas Nanda colocou o
dedo indicador na sua boca antes que terminasse a frase. E voltou a lhe beijar,
agora mais lento, mais tímido, tinha gosto de beijo de despedida. O tipo de
beijo que se da quando não se tem motivo mais para se procurar. Não parou o
beijo, sabia o que vinha depois. E não se surpreendeu ao sentir as mãos de
Nanda pelo seu corpo. Precisas, calmas e macias.
Não fazia sentido
pensar nela como uma forma de salvação.
Mas era.
Ali, perdido no quarto
dela, no centro da cidade, Nanda era sua única salvação. Era o momento real e
perfeito longe de todos os problemas. Odiava o namorado dela, mas se ela não
fazia cerimônia, então tudo bem. Tinha seu momento real e perfeito e procurava aproveitá-lo.
Até que voltasse para casa, deitasse em sua cama e ouvisse o burburinho da
capital lá fora rugindo para ele, perdido solitariamente.
Quando sentiu o
ápice de todas as emoções fustigadas na pele, pegou Nanda pelos pequeninos
braços e beijou-a delicadamente, até que a sentisse por inteiro. Mas sentir por
inteiro já era fato, ali, nus, deitados em uma cama, coisa mais intima do que
aquilo não seria mais possível. Talvez, se pegasse uma lupa e observasse além,
além das áureas e pensamentos do outro, enxergando as coisas mais duras e
frias, e feias e todos os poços escuros, então tornaria-se mais intimo.
- Pedro. Talvez
seja hora de você ir embora.
Ela sempre dizia
isso. Ela sempre falava assim, vezes doce, vezes autoritariamente, uma candidez disfarçada.
- Tudo bem. Mas posso voltar amanhã? Podíamos
pegar as bicicletas e ir até o parque, ou até aonde você quiser.
- Não sei. Amanhã a
gente vê. – deitou-se de bruços novamente, escondendo o rosto no travesseiro.
- Tudo bem.
Levantou-se
sentindo a rajada do frio pelo corpo. Vestiu as roupas e amarrou os sapatos.
Ergueu-se pela cama e inclinou-se para lhe deixar um beijo, mas seu rosto ainda
estava enterrado entre o travesseiro. O maldito travesseiro de cerejeiras. Será
que dormia? Analisou-a pela forma como sua coluna erguia-se, não parecia
dormir, o som da sua respiração era lento, mas não vazio de emoção.
- Vou embora.
- Cuide-se.
Cuide-se?
Caminhou até a
porta, parecia que de repente havia amarrado ambos os cadarços dos pés um no
outro, dificultando-o de caminhar.
- Sabe Pedro,
talvez seja bom a gente não se ver mais. Mas cuide-se ok? Nos vemos no show na
sexta que vem.
Quando olhou para
trás a viu sentada na cama, parecia triste, o lábio inferior tremia
involuntariamente, parecia te-lo mordido muito porque uma marca vermelha
circulava a boca até o queixo. A juba de cabelos bagunçada envolta do rosto
longo. Os seios redondos transparecendo pelo lençol azul.
- Está brincando?
- Não. Acho que
pode ser melhor assim. Só isso.
- Não pode simplesmente fazer isso agora.
Tinha noção do quão
patético estava, ali parado, com o cabelo bagunçado, a roupa amassada, os olhos
injetados, a voz tremula, implorando para ficar. Para permanecer.
- Entenda. Eu não
quero machucar você só isso.
- Está fazendo isso
agora.
- Pedro...
Saiu pela porta
fechando-a atrás de si. Quando deu por si, o ar cortante da noite já açoitava-lhe
o corpo, na rua, a quilômetros de casa. Não sabia que horas eram, olhou para o
céu, como se pudesse encontrar algum relógio dependurado acima da sua cabeça e
avistou-o com pouquíssimas estrelas.
Lembrou-se das
estrelas no teto do quarto de Nanda. Começou a caminhar. As pernas duras, o
corpo dolorido, parecia que a vida havia mudado de direção e tudo não fazia
mais sentido.
Lembrou-se de que
uma vez lera em um dessas revistas velhas do consultório dentário, uma revista
sobre astronomia, e na edição continha algumas coisas sobre estrelas. Leu
superficialmente, mas se recordava de ler sobre uma em especial, Eta Carinae,
gigantesca, magnífica, e letal em sua gama de luzes.
Eta Carinae.
Astronomia para ele
fazia tanto sentido quando o horário político local. Mas agora já não era mais
um assunto a ser descartado.
Enfiou as mãos nos
bolsos, sobre um céu quase limpo de tudo, em uma noite limpa, confusa,
deliberadamente estranha, seguiu caminhando pelas alamedas de ruas também
estranhas. Talvez em algum lugar do tempo, pudesse ter feito algo diferente,
agora já era tarde. Havia se apaixonado e sentia na pele as dolorosas faíscas
de luzes da enorme estrela, lambendo seu corpo, usurpando as réstias de
sanidade com seus raios ultra potentes e vorazes. Já não havia mais volta.
Annabel Laurino.